Capítulo 53


Oi,

Hoje temos capítulo duplo. Para compensar o capítulo que não coloquei ontem, e porque, na verdade, não resisti em não partilhar já convosco o capítulo 53. Este é o maior e mais importante capítulo até agora. É ele que irá conduzir aos arrebatadores momentos finais da obra. Digamos que será a gota que fará transbordar o copo! Depois deste espera-nos ação, suspense, drama e muita emoção. Agarrem esses coraçãozinhos para que não vos saltem do peito kkkkkk

Relembro que estamos na reta final, a precisamente 6 capítulos do fim da história. 

Espero que gostem.

Três arrepiantes e sucessivas notas ecoam nas paredes da enfermaria.

Eu, a Maria e a Teresa entreolhamo-nos.

Um silêncio mudo instala-se.

O som volta a desafiar-nos. As três notas repetem-se, o mesmo tom, a mesma intensidade. É a prova de que precisávamos para perceber que é real. Que não se trata de nenhuma alucinação coletiva.

− O centro médico recebeu algum paciente novo entre ontem e hoje? – pergunto com um sentimento de pânico a invadir-me a voz.

− Só o Sr. Nicolau... − responde a minha mentora num fio de voz quase inexistente.

Perco as forças das mãos e deixo cair o frasco do medicamento, que não chega a ocupar o lugar do armário que lhe tinha destinado. Os cacos de vidro espalham-se pelo chão e grande parte do líquido viscoso amarelado embrenha-se na sola dos meus sapatos.

− Peço desculpa. – Agacho-me e começo a juntar os cacos numa pequena pilha sobre a minha mão direita.

− Deixa isso, Aurora – a voz da Teresa chega-me aos ouvidos deturpada. É como se estivesse uma espessa parede entre nós. – Ainda te vais cortar. – A mão da Teresa cobre-me parte do antebraço e estremeço de dor. Ela não podia adivinhar. A camisola que trago vestida oculta estrategicamente os tão recentes hematomas. A dor física afasta-me, momentaneamente, da consternação que habita a minha alma. Os seus olhos cinzentos perscrutam o meu rosto, mas eu sei que este não espelha a verdade que ela tanto quer encontrar. – Eu e a Maria tratamos disso. Podes ir. – A mão da minha mentora liberta-me e a dor volta a ocupar todo o resto do meu corpo.

Deposito o pequeno molho de fragmentos translúcidos junto a um dos pés do armário e levanto-me.

Com os sapatos ainda ensopados, caminho pesadamente para fora da enfermaria.


As minhas mãos empurram os vultos amontoados por que passo. As brechas entre as pessoas são tão poucas, mas eu preciso de chegar lá à frente. Eu preciso de ver o corpo.

− Meus caros, estamos aqui hoje reunidos para prestar a nossa homenagem a um grande homem que já não se encontra entre nós – a voz complacente do 1º comandante acelera o meu batimento cardíaco e os meus movimentos tornam-se precipitados. O meu antebraço fica esmagado entre dois corpos e eu quase grito de dor. – Nicolau Andrade foi o engenheiro aeronáutico responsável pela implementação da construção desta nave. Devemos muito a este homem.

Estaco. O meu corpo entalado por pessoas que me olham de lado, como se eu fosse um ser alienígena, alguém que não pertence, de facto, a esta comunidade que me cerca, que me esmaga. Mas eu pouco me importo com eles. Outrora, a opinião que tinham sobre mim era tudo. Agora, não.

Deposito todo o meu peso na ponta dos pés e tento espreitar por entre as duas cabeças demasiado altas que se encontram à minha frente. Seis longas filas de corpos sólidos posicionam-se estaticamente entre mim e o altar. Consigo ver o caixão de metal aos pés da figura de Jesus Cristo. De pé, e não muito afastado, está o 1º Comandante com dois guardas como sombras dele.

− Mas este homem já estava doente há alguns anos, como todos vocês sabem. A medicação impedia-o de viver num mundo de fantasia que o prejudicava a ele próprio e, quem sabe, a todos aqueles que cruzavam o seu caminho. – Olho para cima, para todos os santos que cobrem o teto abobadado da capela. Por momentos, sou arrastada para uma lembrança longínqua de à dois anos atrás. O coração aperta-se-me dentro do peito. − Porém, os testes médicos realizados demonstraram que já não tomava os comprimidos à, pelo menos, três dias. E o organismo não resistiu à omissão dos componentes de que tanto precisava para sobreviver.

Três dias, as palavras parecem duros golpes sobre o meu estômago.

"Sr. Nicolau, não precisa de tomar a medicação", lembro-me de lhe dizer, há exatamente três dias atrás. Não especifiquei nenhum intervalo de tempo. Não lhe disse que me referia apenas àquela noite. E ele, como uma pequena criança, levou as minhas palavras à letra.

Cairia agora de joelhos, se tivesse espaço para isso.

Sou eu a culpada. Não apenas a culpada do sofrimento que viveu ontem. Sou a culpada da sua morte.

O ar parece subitamente rarefeito. As cores vivas das vestes dos homens religiosos que me julgam misturam-se entre si. Os rostos tornam-se indecifráveis e cada vez menos humanos. A luz que é projetada a partir dos cantos superiores da capela encadeia-me os olhos. A minha respiração torna-se irregular, as pálpebras pesam-me sobre os olhos e aos meus ouvidos chega uma voz distante carregada de altivez. Não me consigo recordar a quem pertence a voz. Mas sei que a conheço. E sei que não gosto. Parece-me um castigo divino: morrer e ser esta a última voz que ouço.

Os meus olhos fecham-se por completo e eu...


Pestanejo. A visão turva não me permite reconhecer o espaço em que me encontro. Os santos, recordo-me, onde estão os santos? Este teto parece-me demasiado vazio.

Oiço vozes que conversam entre si, mas não reconheço nenhuma. Os sons assemelham-se a palavras. Palavras indecifráveis e sem sentido.

Levo a mão à cabeça, que começa a latejar.

− Como é que te sentes? – pergunta uma voz doce feminina que me é familiar. A minha mãe, claro, concluo. O seu rosto sulcado de preocupação desenha-se à minha frente.

− Só uma ligeira dor de cabeça e uma sonolência – as palavras saem-me gastas, quase roucas. – Durante quanto tempo estive desacordada?

− Cinco minutos − informa-me. Quando alguém fica inconsciente durante mais do que 60 segundos, é porque existe alguma disfunção alarmante no organismo. Mas, estranhamente, isso não me preocupa. – Toma, bebe isto. − A minha mãe estende-me um copo de água.

Ergo ligeiramente o tronco e pego no objeto por que a minha boca seca anseia. Sorvo uma pequena quantidade do líquido refrescante.

Permito-me, por fim, analisar o espaço onde me encontro.

Reconheço bastante bem a parede azul que fito. Estou na enfermaria, deitada sobre a cama onde costumam estar os meus pacientes.

Olho ao meu redor e deparo-me com três pares de olhos concentrados em mim.

− O que é que estão todos aqui a fazer? – questiono perplexa. O meu olhar oscila entre o meu pai, que se encontra sentado sobre a secretária, e o meu namorado, de pé com os braços cruzados ao fundo da sala como se não pertencesse a este local. A Teresa quase que passa despercebida, encostada à ombreira da porta.

− Bom, foi o Salvador que te arrancou da confusão que se instalou na capela quando ninguém sabia o que fazer contigo inconsciente − explica a minha mãe. – A capela transbordava de pessoas, por isso, como de costume, eu e o teu pai decidimos ficar do lado de fora. Assim, só nos apercebemos do que estava a acontecer quando ele apareceu, no corredor apinhado de gente, contigo ao colo. Ele trouxe-te até aqui. Foi muito atencioso − confessa enternecida. Consigo detetar na sua expressão um agradecimento mudo. Uma reverência ao homem que não se cansa de me salvar a vida.

Sorrio para o meu namorado, que me retribui timidamente o sorriso. A mão passa-lhe pelo cabelo, desgrenhando-o um pouco mais. Sinto vontade de me levantar e usar os meus próprios dedos para consertar o emaranhado de tom acastanhado que lhe cobre a cabeça. Mas sinto todos os membros do meu corpo demasiado leves para sequer tentar.

– A Teresa encontrava-se na enfermaria quando aqui chegámos − continua a minha mãe. Engulo mais um trago de água. – Estávamos indecisas quanto à causa do desmaio, mas o Salvador garantiu-nos que era de foro emocional, por isso injetámos um calmante na tua corrente sanguínea. – Claro, isso explica a sensação de tranquilidade que invadiu o meu corpo e a minha mente, constato, sentindo-me a pior enfermeira do mundo. Como é que não percebi isso antes? Os sinais estavam lá todos: o tempo que demorei para retomar a consciência; a sonolência; a ausência de emoções fortes, apesar de tudo o que aconteceu. – Aparentemente, o Sr. Nicolau era muito importante para ti. Só não sei como é que não percebi isso antes. Como é que nenhum de nós o percebeu?

Eu também namoro com o Salvador e nenhum de vocês sabe, sinto vontade de responder. Contudo, contenho-me. Esta não é propriamente a altura indicada para fazer uma revelação do género.

− Eu...

− Nós eramos amigos − interrompe-me o Salvador. Não sei se o "nós" que usa me inclui a mim também, afinal de contas eu mal conhecia o Sr. Nicolau. No entanto, isso não me impediu de sentir um enorme carinho pelo velho homem gentil que sempre me tratou bem.

A minha mãe parece aceitar a simples explicação, apesar da clara deceção que transparece no seu olhar. Mas a expressão sorumbática do meu pai, diz-me que as palavras do Salvador não o convenceram nem um pouco.

− Sim, aproximámo-nos recentemente – a minha voz soa-me pouco convincente, ainda que esteja a usar a pura verdade para o ludibriar. – Mas a capela...a multidão...o caixão... foi tudo demasiado. Lembrei-me da bisavó − acrescento tristemente. A verdade, é que me lembrei dela, sim. A memória do dia da comunicação da sua morte assolou-me o pensamento por breves instantes, na altura. Porém, não foi isso que me afetou tão gravemente. Não foi a saudade o que me derrubou, e, sim, um pesado sentimento de culpa.

− Percebo − múrmura o meu pai. Os seus ombros encolhem-se. As mãos raspam nervosamente as calças que lhe cobrem as pernas fletidas sobre o tampo da mesa. Agora não tem como não acreditar nas minhas palavras, quando ele próprio fez a fácil e tão dolorosa associação de que lhe falo. E, certamente, sofreu horrores naquele corredor, mesmo sem ver o caixão, mesmo sem ver todos aqueles santos, mais uma vez, a rirem-se na sua cara.

Bocejo.

As minhas pálpebras começam a tornar-se demasiado pesadas.

Estendo o copo na direção da minha mãe com medo de espalhar mais vidros pelo chão da enfermaria. Ela recebe-o prontamente.

− Talvez seja melhor deixarmos a Aurora descansar um pouco − sugere a minha mentora, despertando-me para a sua presença na sala. – A substância calmante está a ponto de deitar abaixo as suas defesas. Não tarda nada, vai cair num sono profundo e relaxante.

− Eu fico com a Aurora − afirma o Salvador num tom de voz firme e gélido que faz erguer, subtilmente, os cantos dos meus lábios.

− Então, eu também fico − declara o meu pai, que se deixa cair da secretária e firma os pés no chão da enfermaria.

− Querido, − a minha mãe aproxima-se do homem orgulhoso que ergue o peito para proteger a sua cria de um perigo que só ele vê, − não há necessidade de ficares aqui. – A mão livre da minha progenitora assenta no peito inchado do homem, que se esvazia rapidamente com o seu toque suave. – O Salvador já provou que consegue tomar muito bem conta da nossa filha. Temos que confiar nele.

Bocejo novamente.

− Bom... − O meu pai parece aturdido. Coloca as mãos nos bolsos. Retira as mãos dos bolsos. – Suponho que não tenha outra opção. Rapaz, por agora, deixo a vida da minha filha nas tuas mãos − comunica de forma imponente, com os olhos fixos no Salvador. As mãos, finalmente, firmes a ladear o seu corpo. – Se vacilares, não irá existir outra oportunidade.

− Eu não pretendo falhar, senhor.

O azul eletrizante, que tanto adoro, está mais intenso do que nunca, mas não é em mim que se detém. Como queria mergulhar no mar revolto do seu olhar! Será que é este o aspeto do tão aclamado azul do mar? Talvez em alturas de tempestades o seja, penso.

Deixo pender a cabeça sobre a cama, domada pelo cansaço.

− Tu gostas realmente da minha filha, não é? – oiço a voz do meu pai perguntar.

− Sim. Fique descansado. A vida dela para mim vale mais do que a minha própria vida.

Fecho os olhos e adormeço.


Abro os olhos.

O Salvador está sentado numa cadeira que tirou da secretária e trouxe até à cama onde me encontro. O seu antebraço esquerdo descansa sobre o colchão e o braço direito, apenas com o cotovelo pressionado contra a cama, segura o peso da cabeça.

− Estive a dormir durante muito tempo?

− Cerca de duas horas − responde simplesmente. Como se fosse a coisa mais normal do mundo ele ter ficado aqui sentado à espera que eu acordasse!

− Não precisavas de ter ficado aqui durante todo esse tempo. Deve ter sido aborrecido.

− Não foi. Eu gosto de te ver dormir.

Ergo um pouco o meu corpo ainda enfraquecido e deixo-me ficar apoiada nos meus cotovelos.

− Sabes que isso não é muito normal, não sabes? – desafio-o, com um sorriso rasgado no rosto.

O meu namorado apoia os antebraços sobre o colchão, que cede ligeiramente com o peso, e inclina-se sobre mim. Os seus lábios cobrem os meus, num beijo terno e delicado, como se eu fosse feita de vidro.

− Não resisti − confessa, com a cara a meros milímetros da minha, a sua respiração pesada sobre o meu pequeno e redondo queixo. – Ficas ainda mais linda quando sorris.

− Então acho que tenho que acordar mais vezes contigo do meu lado.

− Aceito a proposta − responde com um sorriso travesso. Este é, definitivamente, o sorriso que melhor lhe assenta. O meu coração acelera e eu percebo que o efeito do calmante já se dissipou no meu organismo. A expressão do Salvador torna-se sombria, de repente. – Fiquei desesperado quando te vi desmaiada no meio da confusão.

Impulsiono o peso do meu corpo para a frente. Dobro as pernas e sento-me sobre elas, posicionando a minha figura esguia de frente para o homem cabisbaixo que me observa.

− Eu estou bem, agora − tento consola-lo. Afago ternamente a sua face. As linhas carregadas de preocupação e mágoa apagam-se com o meu toque. – E a Maria? Ela não apareceu por aqui? – tento mudar de assunto.

− Sim, mas eu disse-lhe que a presença dela não era necessária. Que se fosse preciso chamá-la-ia, afinal de contas, sou o mensageiro da nave. E a Teresa está mesmo aqui ao lado, no centro médico com a tua mãe.

O centro médico. O local que tentei aceder ontem consumida pelo desespero. Eu pressenti-o. De alguma forma, eu sabia o que ia acontecer com o Sr. Nicolau. Mas não o pude ver. Não nessa altura. Não agora. Não nunca.

− Só queria, pelo menos, ter tido a oportunidade de o ver com os meus próprios olhos – a minha voz enche-se de uma agonia crescente. − Para conseguir dar um fim a esta história. Ver o corpo tornaria tudo mais real.

− Para te martirizares ainda mais?

− Não. Sei lá. Para me despedir. Para me desculpar. Mas agora também não importa. Desmaiei e perdi a oportunidade de ver... o corpo.

− Prometes-me que não vais sofrer mais, se... − hesita. Os seus olhos perscrutam os meus, estudam-me a alma.

− Se o quê?

− Se vires o corpo.

− Como assim? – Debruço-me um pouco mais sobre ele. Onde é que ele quer chegar com isto? A não ser que... − Tu sabes onde ele está − a frase sai-me como uma afirmação e não como a interrogação que deveria ser usada, neste caso. Mas apesar da incerteza que sinto, algo me diz que é essa a verdade que está por detrás da resistência que me oferece.

− Sei. E posso levar-te a ele agora mesmo.


Acomodo melhor o peso da caixa branca contra o meu peito para que não caia enquanto avanço pelos labirínticos corredores do escuro piso inferior da nave. Os instrumentos mantêm-se silenciosos no seu interior, apesar dos pequenos solavancos.

Antes de sair da enfermaria, um pensamento fugaz passou-me pela cabeça e eu agarrei-me a ele com todas as minhas forças. Pode até ser descabido, mas faz com que sinta alguma remanescência de esperança. Errar é humano e os médicos são humanos. Porém, a minha parte racional grita-me incessantemente que não é com uma simples análise ao sangue que vou descobrir algo que um médico não conseguiu.

É difícil acompanhar a velocidade do meu guia, que se adentra pela escuridão como se fosse parte dela. Mas ele tem razão, não nos podemos demorar. Esquivámo-nos da enfermaria sem dizer nada a ninguém, deixando o meu local de trabalho entregue ao abandono. A ideia é sermos rápidos o suficiente para que eu consiga voltar a repor a caixa na gaveta a que pertence, sem que ninguém se aperceba de nada.

Uma larga porta de metal desenha-se no final do intricado corredor que percorremos. Só pode ser aquele o local, penso.

O Salvador abranda o ritmo dos seus movimentos acelerados e eu consigo, facilmente, alcançá-lo. Lado a lado, cobrimos os poucos metros que nos separam do nosso destino.

Uma roda de metal destaca-se na superfície da porta, que aparenta não ter qualquer tipo de maçaneta ou fechadura. Nunca vi algo do género, mas o meu namorado transpira segurança e tranquilidade. As suas mãos reclamam para si o metal saliente e redondo que adorna a porta, e impigem a força necessária para que este se comece a mover de forma giratória, sob o seu comando.

Um baque surdo faz-me sobressaltar.

Pestanejo. Uma luz intensa contorna toda a porta, que parece ter sido empurrada uns dez centímetros para trás. Num movimento subtil e silencioso, o metal desliza numa só direção e um retângulo de luz crescente contagia a escuridão que nos cerca.

Semicerro os olhos. A luz é tão forte que não consigo ver o espaço que se desenha lentamente à nossa frente. Coloco a mão à frente do rosto e tento espreitar por entre as pequenas fissuras dos meus dedos entreabertos.

A porta metálica desaparece na parede.

Avanço, sem medos.

Os meus olhos demoram apenas uns segundos para se habituarem à luminosidade do espaço. É uma sala comprida e estreita. As paredes, o teto e o chão são feitos de um material acobreado, exatamente do mesmo tom. Quase nem se percebe quando começa um e acaba o outro. Os feixes de luz que saem de uma luminária central, refletem-se por todo o espaço. Duas filas de estranhos contentores translúcidos ladeiam o estreito corredor que ocupa o centro da sala. Do lado direito, os vítreos paralelepípedos parecem vazios. Mas sob um escrutínio mais atento, percebo que estão repletos com algum tipo de líquido. Do lado esquerdo, corpos humanos inanimados descansam, mergulhados no líquido dos contentores.

Quarenta, consigo contar. Vinte contentores de cada lado. Mas ao todo, apenas dez desempenham a função para que foram criados: armazenar mortos.

E se tivessem existido mais? O que fariam ao quadragésimo primeiro de nós que morresse antes de chegarmos ao novo planeta? Suponho que armazenariam noutro sítio qualquer. Porém, algo me diz que estas enormes caixas são mais importantes e complexas do que aparentam.

Não reconheço os primeiros corpos por que passo, mas chama-me à atenção o facto de serem demasiado novos. Morreram demasiado cedo, penso tristemente. Provavelmente, os corpos pertencem àqueles cujo o organismo não resistiu aos primeiros dias de viagem.

Dou por mim a tentar adivinhar qual deles será o 1º comandante inicial, Miguel Serrano, o melhor amigo e companheiro de projeto da minha bisavó. Mas não vou muito longe. Três homens aparentam ter a idade que ele teria na altura. Um deles será o falecido marido da Sra. Prazeres.

Avanço mais um pouco e começo a ver rostos familiares. Contudo, não me detenho em nenhum deles por mais do que um segundo.

Preciso de a ver. Como é que ela estará? Será que vai estar exatamente como me lembro dela? Não, já morreu há três anos. Isso seria impossível! Ainda assim, os corpos parecem todos estar num estado de preservação impressionável. Quase como se tivessem morrido há apenas umas horas atrás. Nitrogénio líquido, constato. Não sei muito sobre elementos químicos, mas lembro-me da Analu me falar das fantásticas propriedades de conservação de tecidos desse composto.

Estaco. Aqui está ela. Mesmo antes do contentor que foi atribuído ao Sr. Nicolau. Coloco-me entre os dois, voltada para a minha bisavó, que me fita de olhos bem abertos. Os seus lisos e curtos cabelos grisalhos estão quase todos ocultos por baixo da cabeça e poucos são aqueles que pousam sobre os seus ombros desnudos. O pequeno queixo e a face redonda, apesar de contidos numa pele demasiado pálida e engelhada, fazem lembrar-me das minhas próprias feições.

Pouso a mão sobre o recipiente que me impede de tocar na pele da mulher corajosa que admiro plenamente: como mulher, mãe, avó, bisavó e patrona da humanidade. Um frio avassalador desperta todas as células sensitivas da minha palma estendida. Provoca-me a estranha ilusão de que me estou a queimar.

Retiro a mão e analiso-a. Não ficou vermelha.

Olho para o sítio do contentor onde alojei a minha palma e consigo ver as minhas impressões digitais a desvanecerem-se.

− Evito vir aqui – sobressalto-me ao ouvir a voz desgastada do Salvador. Ele encontra-se junto aos pés do homem que habita o contentor que antecede o da minha bisavó. – Sinto-me... triste quando o vejo assim.

O homem encontra-se completamente desnudo, tal como a minha bisavó. E a posição do corpo é exatamente a mesma: totalmente estendido com a barriga e a face voltadas para cima. O rosto apresenta umas leves parecenças com o do Salvador e percebo que se trata do seu avô.

− Esta é a sala onde são conservados os corpos dos mortos – digo num tom de voz que oscila entre a afirmação e a interrogação. O Salvador aquiesce brevemente com a cabeça. – Mas as pessoas da sala secreta...

− Não as trouxe para aqui – interrompe-me em resposta a uma questão que apenas havia formulado em pensamento. O número reduzido de corpos mostra-me que os mortos da sala secreta não tiveram direito a entrar aqui. – Tiveram que ser carbonizados, – confessa de olhos presos nas próprias mãos estendidas no ar, − reduzidos a cinzas no interior das máquinas que nos permitem avançar até à nossa nova casa.

Nem na morte as pessoas da sala secreta têm direito a um tratamento digno. Continuam a ser tratadas como se fossem de uma espécie inferior à nossa. O Salvador sente-se culpado, consigo perceber isso pela forma como os seus olhos ardem de forma tortuosa ao vislumbrarem nas suas próprias mãos o sangue de tanta gente. Gente que ele não matou. Mas foi ele que teve de carregar os seus corpos inertes até às labaredas intensas de máquinas devoradoras de homens, não foi? Foi ele que teve de empurrar à força o peso morto de corpos que ele tão bem conhecia e nunca mais iria poder voltar a ver. Foi ele que os viu arder, de pé, sem outra opção sem ser aceitar e esquecer. Aceitar o fim trágico do esquecimento, porque sem o corpo quem se iria lembrar daqueles homens?

− É melhor despacharmo-nos − digo, por fim, ao tomar consciência do motivo que aqui nos trouxe. Não vale a pena prolongar este momento que parece que lhe é tão tortuoso.

Viro-me e encaro de frente o homem idoso que aqui chegou por minha causa. Está inerte e congelado. O olhar vítreo. A expressão do rosto apagada, não transmitindo nenhuma emoção. Será que sentiu dor? Será que sentiu raiva? Será que sentiu sequer alguma coisa antes de morrer? Será que se apercebeu de que estava tão próximo da morte?

A recordação do Sr. Nicolau a ser levado para fora do refeitório pelas mãos dos guardas preenche-me o pensamento. Pareceu tranquilo, talvez feliz até. Comparei-o com Jesus Cristo, mas o profeta sabia que iria morrer e a morte não o assustava. Poderá o mesmo ter ocorrido com o Sr. Nicolau? Não, ele nunca poderia ter imaginado este desfecho. Eu própria ainda não acredito e estou a vê-lo com os meus próprios olhos. Como é que o facto de ele ter deixado de tomar a medicação o condenou a uma morte tão rápida?

− Eu quero analisá-lo − declaro. Os olhos castanhos do morto desafiam-me no fundo da imensidão do líquido que o cobre. – Mas não vejo como.

O Salvador agacha-se junto à base do contentor e a sua mão parece apalpar a parte metálica que lhe serve de fundo. O som de um botão a ser fortemente premido chega-me aos ouvidos atentos.

O corpo começa a subir muito lentamente, deitado sobre uma superfície incolor com pequenos orifícios que permitem a passagem do líquido.

− Como é que sabias?

− No início, vinha cá muitas vezes ver o meu avô. Acabei por dar com o botão e não resisti, tive que ver para o que servia. Acho que, ingenuamente, cheguei a acreditar que poderia ter o poder de o ressuscitar.

Como seria bom se houvesse um simples botão que tivesse essa miraculosa capacidade!

A tampa translúcida do contentor encolhe-se e parece desvanecer na base do grande paralelepípedo. A superfície que transporta o corpo ocupa o seu lugar, tornando-se imóvel com a exposição do corpo às substâncias gasosas que nos cercam.

− Não sei se adianta de alguma coisa, − comento com as mãos trementes sobre a caixa branca dos instrumentos, − o corpo parece congelado. O sangue não pode ter resistido a temperaturas tão reduzidas.

− Já que aqui estamos, não perdemos nada em experimentar.

Aquiesço. Tento abrir a caixa que detenho entre as mãos, mas não consigo alcançar a estabilidade necessária para ser bem-sucedida.

− Queres que te ajude? – O Salvador aproxima-se de mim e pousa a sua mão quente sobre a minha.

− Não. Eu consigo.

− Não tens de te armar em forte à minha frente. Sei que isto é difícil para ti, mas eu estou aqui. Eu vou estar sempre aqui, do teu lado.

A promessa dele aquece-me o coração. Sei que não se refere apenas a este momento, a esta sala. É uma promessa para a vida.

Entrego-lhe a caixa e sinto como se lhe estivesse a dar o meu próprio coração. Toma, ele é todo teu, penso com um meio sorriso no rosto. É claro que a minha felicidade não é plena. Estamos numa sala que pertence aos mortos, diante do homem que a minha ingenuidade e desconhecimento mataram e, para lá deste espaço, uma comunidade inteira inflexível quer nos ver longe um do outro.

O Salvador abre a caixa, sem qualquer problema, e eu retiro de lá a seringa e o dispositivo eletrónico de que preciso para analisar o sangue do Sr. Nicolau.

Respiro fundo e tento relaxar os músculos tensos do meu corpo. É claro que ele não vai sentir dor, se eu espetar a agulha de forma incorreta. Os seus nervos já não funcionam, a sua medula espinhal não funciona, o seu cérebro não funciona. Já nada nele funciona. Todos os órgãos estão congelados, sem nenhum réstio de atividade. Ainda assim, quero respeitar o corpo deste homem a quem devo tanto.

Encosto a seringa à pele pálida e ligeiramente azulada do antebraço do Sr. Nicolau. Primo o embolo, que se encontra na extremidade superior, com o meu polegar. A carne congelada oferece alguma resistência à pressão da agulha. Impinjo um pouco mais de força e as células cedem a passagem do objeto intrusivo. Solto o polegar.

− Devem ter injetado algum soro anticoagulante no sangue − informo, ao ver um líquido vermelho vivo a preencher o recetáculo da seringa. − Algum soro que tenha impedido a aglomeração e cristalização das células das artérias, veias e capilares sanguíneos.

Deposito uma pequena gota encarnada no recetor do dispositivo que seguro com a mão esquerda. Vejo cada análise a aparecer no ecrã, pela ordem do costume. Tudo parece normal. O nível de glicose, de hemoglobina, de eritrócitos, de... Espera lá! 0% de leucócitos?! Como é que isso é possível?

A análise termina.

Será que quando morremos, tudo permanece igual no sangue menos o nível de glóbulos brancos? Os nossos "soldadinhos" simplesmente desaparecem? As células que nos protegem de microrganismos estranhos e potencialmente perigosos simplesmente morrem de imediato connosco? Poderia ser esse o caso, mas... Não faz lá muito sentido, se tudo o resto foi preservado pela substância que inseriram no sistema circulatório.

Volto-me para a minha bisavó. O Salvador imita os meus movimentos ainda que não os perceba. Peço-lhe para que traga o corpo dela à tona e ele obedece em silêncio.

Retiro uma nova seringa da caixa enquanto a superfície perfurada vence, pouco a pouco, o peso do nitrogénio líquido. Carrego no botão do pequeno dispositivo eletrónico que desintegra instantaneamente todos os resíduos de células e ADN contidos no seu interior.

Repito exatamente o mesmo procedimento, de uma forma mecânica, desviando a minha consciência da identidade do corpo que invado.

− Sem leucócitos − constato em voz alta de olhos fixos no ecrã do dispositivo que tenho na mão. – Isso só pode querer dizer que perdemos os glóbulos brancos quando morremos. Uma desintegração instantânea. Mas como é que isso é possível? Nunca ouvi falar de tal característica.

O meu namorado afasta-se de mim e agacha-se junto do contentor do seu avô.

− Não há duas, sem três − anuncia num tom de voz decidido.

Sem perder tempo, executo novamente o mesmo procedimento. O rosto do Salvador dirige-se para o lado oposto da sala, quando pressiono a seringa sobre a pele gelada do homem que lhe serviu de modelo durante grande parte da sua vida.

− Ele tem leucócitos – a estupefação invade a minha voz, como se esta realidade me fosse estranha. Mas a verdade é que isso é que é o normal, não é? Os glóbulos brancos não são uma espécie de células mágicas que se desintegram no exato segundo em que o coração deixa de bombear o sangue. Se essa é a verdade, então... − Porque é que a minha bisavó e o Sr. Nicolau não os têm? – faço a pergunta em voz alta, como se assim a resposta pudesse ser mais facilmente encontrada.

O Salvador analisa-me. A confusão impressa na expressão do seu rosto. Para ele tudo isto é ainda mais difícil de entender. Ele não percebe a importância dos leucócitos, mas eu entendo.

− Os glóbulos brancos, ou leucócitos, são as células responsáveis por eliminar grande parte dos microrganismos que conseguem entrar na nossa corrente sanguínea − digo. A explicação dá-me tempo para organizar os pensamentos. − Sem eles, ficamos com o nosso sistema imunitário completamente fragilizado.

− Então quer dizer que alguém induziu essa condição nos dois.

− Talvez... Mas mesmo eliminando todos os leucócitos seriam precisos dias, quem sabe mais, para que algum vírus se proliferasse no organismo humano a ponto de matar. E isso torna-se ainda mais difícil tendo em conta que estamos num ambiente tão controlado como este. Não estamos no planeta Terra.

− E isso quer dizer...?

− Isso quer dizer que alguém criou um soro capaz de desintegrar de uma forma rápida e eficaz todos os glóbulos brancos de um organismo, mas que também contém um vírus tão potente, que sem qualquer tipo de travão, mata uma pessoa em menos de 24 horas.

− Foi essa a causa de morte do Nico e da Celeste Bacelar. A morte deles foi propositada − profere horrorizado. O rosto dele parece o espelho do meu, marcado exatamente pelas mesmas inquietações e frustrações.

− Sim, e só há uma pessoa que beneficiaria com o desaparecimento dos dois.

Basta olhar para o fundo e redondo azul que me fita para perceber que estamos em sintonia, que o nome que corrói os nossos pensamentos é apenas um: Henrique Serrano, o atual 1º Comandante.

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