Capítulo 51
− Salvador?! – digo espantada ao deparar-me com o meu namorado sentado no chão, à porta do meu quarto.
− Até que enfim! – exclama aliviado ao reconhecer a minha voz.
A fraca luminosidade do corredor permite-me antever os contornos do seu corpo a moldarem-se a uma posição na vertical. Sem perder tempo, vejo-o a caminhar na minha direção. A forma ágil como se move faz-me pensar que os seus olhos devem estar muitíssimo adaptados à escuridão. Não admira, afinal de contas, ele viveu grande parte da sua vida na sombra da comunidade, nos recantos da nave onde ninguém o pudesse, realmente, ver.
O Salvador envolve-me fortemente entre os seus braços. O calor da proximidade do seu corpo faz-me estremecer.
– Estava tão preocupado – sussurra-me ao ouvido. – O que é que te aconteceu? Onde é que estiveste? – dispara as questões, sem fazer qualquer tipo de pausa entre elas, como se fossem uma só. Como se estivessem interligadas de tal forma, que uma não pudesse existir sem a outra. Os olhos dele faíscam com luz própria, desafiando a escuridão que nos cerca.
− Estava no centro médico a ajudar num parto complicado − admito. O meu tom de voz transmite o derrotismo que não consigo deixar de sentir. Não por não ter conseguido arranjar uma solução para evitar a operação cirúrgica que a minha mãe teve de realizar. Até porque, provavelmente, essa opção nem existia. Mas, sim, por saber que nada posso fazer para evitar que aquela criança seja criada por uma mãe que, claramente, não quer saber dela. – Só saí de lá agora. Mas está tudo bem com a mãe e com o recém-nascido.
− Oh! O sétimo filho da Graça Aguiar, suponho. Essa mulher devia de ser proibida de gerar filhos. No outro dia, encontrei o Sebastião completamente sozinho e abandonado no refeitório a empilhar os tabuleiros e a tentar subir para a pouco segura e equilibrada torre que acabava de construir. Cheguei mesmo a tempo de evitar uma desgraça. E o rapaz só tem três anos, por amor de Deus!
− Pois, mas não há nada a fazer. – Enlaço os meus braços em torno do seu pescoço. Como é bom saber que estamos em sintonia e que nos revoltamos com as situações que todos parecem não ver ou simplesmente preferem ignorar. – É uma menina, sabes? E senti-me tão bem quando a segurei nos meus braços. É tão pequena e frágil, mas, ao mesmo tempo, parece tão segura de si. Da sua existência. Parece não querer saber de nada, não se importar com mais nada, senão em sobreviver. Fez-me pensar que essa é a nossa verdadeira essência. Sabes? A do ser humano. Mas o tempo parece apaga-la. Depois surgem outros interesses. Como a sede do poder, a sede da vingança... E surgem sentimentos que enegrecem o coração. Como a inveja, o ódio e a raiva − concluo, ao lembrar-me do 1º Comandante e da Sra. Prazeres, que apesar de serem dois casos bastante diferentes, ambos foram corrompidos por desejos obscuros e completamente desnecessários à sobrevivência.
Quando nascemos importamo-nos apenas connosco. O nosso código genético, que nos define como seres humanos, nessa altura, não nos transmite mensagens muito distintas das mensagens que outras criaturas recebem quando nascem. São apenas duas as necessidades que nos toldam, por completo, o pensamento: comer e dormir. Aprendemos a andar e a falar só porque isso nos facilita a atingir esse nosso único grande objetivo de sobreviver. Mas quando nos tornamos fortes o suficiente, ficamos mais ousados e ambiciosos. Começamos a querer aprender outras coisas, que em nada influenciam a nossa sobrevivência, como ler ou fazer contas. Mas não nos contentamos com isso. Passamos a querer aprender tudo o que pudermos para nos tornarmos melhores. Uns para se tornarem melhores versões de si mesmos, outros para se tornarem melhores do que todos os outros. É com este segundo tipo de pessoas que nos devemos preocupar.
− Sim, é verdade. Mas também somos invadidos por uma enorme vontade de amar outras vidas para além da nossa própria. E isso é bom, não é?
Anuo e um sorriso desenha-se no meu rosto como reflexo do dele.
− Porque é que estás aqui? – pergunto ao tomar consciência de que a presença do Salvador à porta do meu quarto por volta das duas da manhã não é propriamente normal. – Quero dizer, como é que soubeste que estava "desaparecida"?
− Caso não te lembres, combinámos de nos encontrar depois do jantar. Mas tu nunca chegaste a aparecer. Pensei que tivesses ficado retida pela Analu, mas depois vi-a com a Camila. Tentei convencer-me a mim mesmo que estava tudo bem, que devias de estar com os teus pais ou avós. Porém, não conseguia adormecer. Estava com um mau pressentimento. Por isso, esperei que todos estivessem a dormir e vim até aqui ao teu quarto...
− E não me encontraste − completo.
− Exato.
− Por isso, decidiste montar guarda à porta?
− Eu sei que pode parecer um pouco excessivo, mas temi pelo pior. Não iria aguentar passar a noite toda sem saber se tinhas ou não voltado sã e salva para o teu quarto.
− Não precisas de te preocupar. – Acaricio, ternamente, a sua sobrancelha hirta de apreensão, como se o gesto fosse capaz de a apagar. – O 1º Comandante já mal olha para mim durante as reuniões semanais. – Não é verdade. Ele continua a fazer questão de me lançar olhares atentos e até, por vezes, ameaçadores para que eu me mantenha no meu lugar. Para me relembrar que é ele quem manda. Contudo, não posso dizer isso ao Salvador. Isso só o deixaria mais sobressaltado. – Eu prometo que vou ser muito mais ponderada e cuidadosa do que fui no passado. Não vou arriscar tanto.
− Não vais arriscar de todo, queres tu dizer.
− Claro, – faço um gesto com a mão para desvalorizar a diferença entre as minhas palavras e as dele, − vai dar ao mesmo. Mas confesso que gosto de ter o meu próprio guarda-costas.
− Ai sim? – questiona com o ar matreiro de uma criança que se prepara para aprontar alguma. – Então poderias recompensar-me por isso − sugere. As suas mãos detêm-se nas minhas ancas e puxam-me para mais perto de si. Os nossos lábios ficam a meros milímetros de distância.
− Um beijo. Parece-te bem?
A boca do Salvador entreabre-se, mas é rapidamente sugada pela minha. Era uma pergunta retórica. Eu sei que ele queria este beijo tanto como eu.
− Não foi mau − comenta com uma certa malícia no olhar.
− Não foi mau?! – repito atónita.
− É que estava a pensar noutro tipo de recompensa.
− E posso saber que recompensa poderia ser melhor do que um beijo meu? – interrogo, com um tom de voz repleto de indignação.
− Tu dormires comigo, esta noite − múrmura. – Elas sabem que não vieste dormir a horas − explica, acenando com a cabeça para a porta que se encontra atrás de si. – Agora, é igual se entrares no quarto às duas da manhã ou às seis. Elas dormem ferradas, nem notaram quando entrei à tua procura.
É um ótimo argumento. Eu sei que nenhuma delas vai dar pela minha chegada, quer eu entre agora ou daqui a quatro horas. Sei que vou ter de explicar o motivo de não estar na cama à hora do recolher, mas isso eu já teria de fazer.
Então porque é que continuo sem saber o que lhe responder?
A proposta não é totalmente inesperada. O Salvador já tinha partilhado comigo esta sua vontade de dormir do meu lado. Na verdade, fê-lo logo no dia em que começámos a namorar. E não é que tenham passado muitos dias depois disso. A verdade é que continua a parecer-me errado. Parece-me que poderá ser uma terceira necessidade a falar mais alto. A necessidade de reprodução e propagação da espécie. E isso assusta-me. Não por ele, por mim. Não sei se consigo resistir ao impulso mais instintivo e primitivo que tenho a correr pelas minhas veias. E se não for forte o suficiente? Não somos casados, não temos direito a qualquer tipo de proteção anticoncetiva. Eu sou demasiado nova para trazer um novo ser para este mundo!
Ainda assim, dou por mim a acenar afirmativamente com a cabeça e a sorrir quando o Salvador entrelaça os seus dedos nos meus e me puxa dali para fora.
Mantenho-me em pé. O Salvador coloca a almofada, que foi buscar ao seu quarto antes de virmos para aqui, entre a parte superior das suas costas e a grande máquina geradora de água. Ele não está totalmente deitado, mas também não posso dizer que esteja propriamente sentado. Encontra-se numa posição algures entre essas duas.
− Anda, deita-te aqui − pede, pousando a mão sobre o seu abdómen. – Se preferires, posso dar-te a almofada − acrescenta apressadamente. – Fico satisfeito só por dormir no mesmo espaço que tu.
Ajoelho-me junto a ele e detenho o braço dele no ar, antes mesmo de este conseguir alcançar a almofada já moldada ao seu corpo.
− Dispenso a almofada. – Encosto a minha cabeça sobre o seu peito e aninho todo o meu corpo ao redor dele. – Isto, − acrescento ao pousar a minha mão sobre o seu coração pulsante, − parece-me muito mais confortável.
Sinto o tronco dele enrijecer por debaixo das minhas caricias. O coração parece acelerar exponencialmente e os pulmões parecem encher-se de um ar que se recusa, teimosamente, a sair.
Ergo o meu rosto na direção do seu. Surpreendo-me ao deparar-me com uns olhos enormemente esbugalhados. Os lábios encontram-se fechados e contraídos. As duas mãos agarram a cabeça como se tivessem medo que esta caísse, fazendo com que os seus braços, fletidos num ângulo de quarenta e cinco graus, pareçam um prolongamento das suas orelhas. As sobrancelhas posicionam-se mais acima do que é habitual.
− Podes respirar Salvador − relembro-o. Não consigo evitar sorrir com a figura dele. A boca abre-se, ligeiramente, e eu volto a sentir o seu peito a subir e a descer de uma forma exacerbada. − E podes tocar-me, se quiseres − acrescento com as faces ruborizadas.
As mãos dele descem sobre mim. Uma delas embrenha-se nos meus indomáveis caracóis ruivos, e a outra acaricia as minhas costas sobre o tecido da t-shirt branca que trago vestida.
Permito que o meu coração se contagie pelo ritmo frenético do dele e que as nossas respirações entrem em sintonia. Sem conseguir evitar, dou comigo a içar o meu corpo ligeiramente para cima, com a ajuda das minhas mãos, que esmagam firmemente o seu peito robusto.
Os nossos lábios encontram-se num movimento repentino e desesperado. O beijo adensa-se e atinge contornos nunca antes alcançados. Debaixo de mim, o Salvador produz um som gutural, que faz vibrar todo o meu corpo. Com a mão que ainda se detém sobre as minhas costas, pressiona o meu corpo para mais perto do seu. Arquejo e procuro sentir os seus abdominais bem delineados por debaixo da inútil t-shirt negra, que pouco pode contra os meus avanços.
O Salvador deixa a minha boca e desce até ao meu pescoço, sugando-o de uma forma tão intensa que me faz estremecer. A mão que segurava os meus cabelos revoltos desce até se juntar com a outra e, juntas, ousam explorar a pele das costas que ferve por debaixo do puro tecido branco, que se rende aos dedos engenhosos do homem que me faz arquear de desejo.
− Acho que é melhor pararmos por aqui − sinto as palavras a vibrarem no meu pescoço. Mas não sou eu que as digo. – Porque não serei capaz de o fazer, se continuarmos com isto por muito mais tempo. – Deposita um pequeno beijo casto no meu pescoço, antes de voltar a encostar a cabeça sobre a almofada esquecida por detrás das suas costas. – Só não sei como vou conseguir adormecer depois disto.
A deceção invade todo o meu corpo ainda quente e marcado pelos beijos e toques ousados que recebeu há instantes. Fulmino-o com os meus olhos cristalinos. Como é que ele é capaz de me dar tanto e depois deixar-me assim, no vazio, e de uma forma tão repentina?
− Aurora, não me faças mudar de ideias − sussurra num fio de voz. A sua determinação parece a ponto de o abandonar. – Se continuas a olhar-me dessa forma, eu juro que não me responsabilizo pelas minhas futuras ações.
− Como queiras − respondo vitoriosa. A verdade, é que eu queria ter continuado. Fui fraca ao ponto de não resistir aos impulsos que o meu código genético repetidamente me enviava por todo o corpo, inebriando a minha consciência. O Salvador pode ter tido a força que me faltou para tomar o controlo da situação, mas se eu recuar agora, será ele o frustrado, e eu ficarei por cima. Bom, literalmente, por cima.
Retiro as minhas mãos do calor da sua pele rija do abdómen e volto a posicioná-las, inocentemente, sobre o tecido negro amarrotado da sua t-shirt. Sorrio quando o vejo sentir-se vacilar pela ausência do conforto do meu toque.
A minha cabeça e corpo voltam a reivindicar para si o mesmo espaço de há pouco. As mãos do meu namorado, desta vez, ficam inertes no chão. E eu não me atrevo a desafia-las, novamente. Se o fizesse, nenhum de nós conseguiria voltar a recuperar o controlo da situação.
Aninho-me um pouco mais no aconchego do quente calor que o Salvador emana e fecho, finalmente, os olhos.
− Vai ser uma longa noite − ouço-o murmurar entredentes. Depois adormeço de exaustão.
Subo para o último degrau ainda um pouco ensonada. A mão quente que segura a minha impede-me de cair no sono.
Ouço ruidosas e cúmplices gargalhadas altas o suficiente para me alarmar. Ainda estamos em plena madrugada, não era suposto haver ninguém a pé a estas horas.
Olho ao meu redor e detenho-me na porta da pequena capela da nave. Um homem e uma mulher trocam beijos apaixonados e caricias, sem sequer repararem na nossa presença. São apenas dois apaixonados, que como nós, decidiram aproveitar para ficarem este tempo a sós, sem ninguém que os pudesse incomodar. Pela forma como se beijam e se agarram, são capazes de ter ido um pouco mais longe do que nós. E, pelos vistos, escolheram a capela para isso. Que falta de decoro!
O Salvador puxa-me a mão e tenta fazer-me sinais para irmos embora, para sairmos daqui o mais rápido possível. Mas não consigo deixar de me sentir curiosa para saber a identidade dos dois amantes. Por isso, limito-me a resistir às suas tentativas de me empurrar dali para fora e continuo a fixar o olhar na direção do casal ousado e desrespeitoso que adorna incongruentemente a porta da capela.
Mas a tarefa que me atribui parece demasiado exigente. Os dois encontram-se muito afastados de nós, além do mais, o homem está de costas para nós e é alto o suficiente para encobrir a mulher quase na totalidade.
− Vamos, Aurora − sussurra-me o Salvador, com uma nota, clara, de desespero na voz.
Olho para o Salvador. É capaz de ele ter razão. Aqui estou eu, a arriscar-me mais uma vez, desnecessariamente. Tudo por causa da minha maldita curiosidade.
O rosto do Salvador transforma-se diante do meu escrutínio. A boca e os olhos abrem-se descomunalmente invadidos subitamente por uma enorme estupefação. Mas não é em mim que o seu azul eletrizante descarrega, mas, sim, num ponto algures atrás de mim.
Giro sobre os meus próprios calcanhares, sem largar a mão do homem forte que me promete proteger de tudo e de todos, e preparo-me para o pior.
Não.
Não pode ser!
Como é que eles foram capazes?
Agora o casal está, finalmente, separado e de olhos pousados em nós. Provavelmente, foram alertados pelo tom de voz do Salvador, que, aparentemente, não foi baixo o suficiente.
Reconheço bastante bem aquele rosto esguio de olhos verdes proeminentes; a pele pálida e o cabelo fino e longo de um tom de chocolate amargo. É a Olívia! Mas o pior é de quem é que ela está acompanhada. Nada mais, nada menos, do que o homem que acabou de ser pai, pela sétima vez, há pouco mais de seis horas. O marido de Graça Aguiar!
− Como pudeste? – lanço a questão no ar, ao sentir um sabor azedo a subir-me à boca. Não sei bem a quem a dirijo. Suponho que a pergunta se adeque perfeitamente aos dois.
− Nem te atrevas a vir com os teus moralismos, Aurora − dispara a Olivia ao encaminhar-se com passos decididos na minha direção. A cabeça mantém-se erguida e a arrogância continua a transbordar pelos seus poros. – Pelo que vejo, tu também aproveitaste muito bem esta madrugada.
Sigo o olhar da minha companheira de quarto e percebo que se detém na almofada que o Salvador trás consigo por baixo do braço esquerdo.
− É diferente. Ele, − digo ao erguer a cabeça na direção do homem que se arrasta pelo corredor atrás da mulher decidida que lhe abre o caminho, − é casado, tem sete filhos e ainda tem o dobro da tua idade. Já para não falar que a mulher dele está internada no centro médico a recuperar da cesariana, enquanto vocês estavam aqui a... bom... todos sabemos muito bem o que vocês estavam aqui a fazer!
O homem estaca com as minhas palavras e parece vacilar. O aspeto dele é horrível. Parece atordoado, não, mortificado com a realidade indesejável que acaba de atravessar o seu caminho. Está pálido e as pernas bambas, o corpo todo parece tremer.
− Acontece que se eu me envolvi com um homem casado, tu envolveste-te com um homem que pertence à base da hierarquia. Ambas errámos, Aurora. Ambas atravessámos a linha proibida e deleitamo-nos com isso.
− Nem compares − grito ao sentir o estômago às voltas com as suas insinuações. – Tu estás a estragar uma família!
− Eu não estou a estragar nada. Até porque o que os olhos não veem, o coração não sente. Ninguém descobriu, até agora, e isso vai continuar assim.
− O que é que me impede de ir contar tudo à Graça Aguiar? – O homem estremece à menção do nome da mulher. Já a Olivia mantem o seu longo e estreito nariz arrebitado, como se nada do que eu lhe dissesse a conseguisse afetar.
− Nem tu, nem o teu namorado, − começa, olhando para mim e depois para o Salvador, − vão dizer nada, porque vocês também não querem que a comunidade saiba do vosso tórrido romance, ou querem?
Eu e o Salvador entreolhamo-nos. Sei o que ele está a pensar. Que não vale a pena arriscar. Que por ele, mantemo-nos em silêncio, porque não quer perder a oportunidade de viver momentos como aquele que acabámos de partilhar lá em baixo. Mas eu também não quero perder tudo isso. Não o quero perder a ele. Não quero perder todos os maravilhosos e únicos momentos a dois que ainda nos aguardam. E, definitivamente, não quero perder quem eu sou e quem eu ainda poderei ser estando ao lado dele.
Contundo, estamos a falar de uma traição. Uma mulher que está a ser enganada e que partilha o seu marido com outra, sem sequer desconfiar disso. Um pesado segredo que se revelado pode mudar tantas coisas. Pode mudar tantas vidas, tantas pessoas. Mas não é uma mudança para melhor. Muito pelo contrário.
Se eu não contar nada, ninguém sofre. Continuam todos felizes, a seguir a sua vida, normalmente.
Sim, o certo seria contar. Mas então porque é que manter tudo em segredo parece uma opção tão mais viável? Além do mais, não é a mim que cabe contar essa verdade.
− Tudo bem, eu não vou contar nada a ninguém − concluo decidida. – E o Salvador também não. Mas, Rómulo, − acrescento ao olhar na direção do homem que se encontra cinco passos atrás da Olivia, − não gostaria de estar na sua pele. Com a consciência tão pesada, como é que consegue dormir tranquilamente durante a noite?
Apesar do homem nada dizer, consigo ver-lhe os remorsos a corroerem-lhe as feições. E nos seus olhos sulcados a fria perceção de que todas as suas próximas noites serão marcadas por assoladores pesadelos.
Sinto pena da forma como se conseguiu enganar a si próprio. Quase que o consigo ver, no passado, a entoar mil vezes um cântico viciante para si mesmo: "Não há nada de mal em envolver-me sexualmente com outra mulher, desde que não passe disso", até que se conseguiu convencer de que essa era a verdade. Pobre homem, aquele que se enganou a si próprio, que caiu na armadilha por si montada. Mas deste homem que tenho à frente não tenho pena nenhuma. Este está totalmente consciente dos sucessivos erros que cometeu e das possíveis implicações que poderão ter. É pena que só se tenha apercebido disso agora, quando foi apanhado em flagrante.
− Ah, e caso lhe interesse saber, − digo, detendo-me na porta entreaberta que leva à sala central, − está tudo bem com a sua mulher e com... a sua filha − anúncio, fechando com força a porta atrás de mim.
Enquanto avanço a passos largos pela grande sala central, dou-me conta de que a nossa nova integrante da comunidade, não só tem uma mãe que pouco se importa com ela, como um pai que nem se lembra que ela existe.
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