Capítulo 50

Saio do refeitório cinco minutos depois com um largo sorriso estampado no rosto.

− Então era aí que estavas! – grita a Maria, que corre na minha direção. Dois homens, que conversavam perto da porta que dá acesso ao corredor dos seniores, voltam os seus rostos curiosos na nossa direção. – O que é que estavas a fazer aí dentro? O refeitório ainda não está no seu horário de funcionamento.

− Enganei-me a ver as horas − explico numa mentira rápida que me surge instantaneamente. Ainda bem que o Salvador ficou para trás, combinámos que sairia dez minutos depois de mim.

− Já estou à tua procura há cerca de 20 minutos. Ninguém sabia de ti. Fui ao teu quarto e aos dos teus familiares e nada. Já estava quase a desistir! Estavas no refeitório durante todo este tempo?

− Sim − murmuro. Não lhe posso mentir, porque se lhe dissesse que tinha estado na capela, ou em qualquer outro sítio plausível da nave, ela poderia facilmente verificar que não estive lá. Bastava fazer algumas perguntas às pessoas certas. – Estava tão silencioso que me senti tentada a permanecer no refeitório por mais alguns minutos. Devias experimentar um dia − acrescento animada, numa tentativa de tornar a história mais verosímil.

− Pouco importa isso agora! – cospe as palavras com um visível desagrado. – Precisamos de ti no departamento médico para um parto. Está a ser um caso bastante complexo e quantos mais cérebros e pares de mãos lá estiverem, melhor.

O sétimo filho de Graça Aguiar, concluo de imediato.

− Do que é que estamos à espera? Vamos lá! – grito a plenos pulmões enquanto corro na direção do corredor que dá acesso ao centro de saúde.

Este será o meu primeiro parto, nada pode correr mal.

Sinto a Maria a correr atrás de mim, mas o meu cérebro está demasiado ocupado para se deter por muito tempo nas informações sensoriais que chegam do exterior. Um único pensamento surge repetidamente, numa dança viciada, na minha mente. Como será trazer ao mundo um novo ser?


− Nada ainda? – questiona a minha mãe pela terceira vez. Está posicionada aos pés da pequena e estreita cama. As suas mãos seguram os joelhos abertos da mulher impávida que se encontra deitada à sua frente. Vejo a cabeça da minha mãe pender, para cima e para baixo, alternando entre o rosto de Graça Aguiar e a estreita abertura de onde se espera que saia um pequeno e novo ser.

− Nada − responde simplesmente a mulher.

− Não percebo − comenta a minha mentora. A sua mão, há longos minutos, agarra inutilmente a mão da parturiente, que está estranhamente relaxada. − A esta altura a injeção já deveria ter surtido efeito.

Olho para a minha mão direita enluvada e vejo que ainda seguro a seringa que administrei no antebraço da Sra. Graça. Sei que não cometi nenhum erro. Foi fácil de encontrar uma veia saliente no seu braço esguio e ela nem pestanejou quando a agulha perfurou a sua pele morena. Então era de esperar que o líquido invasivo já estivesse a surtir efeito.

− Talvez se a mudássemos de posição isso pudesse ajudar... − sugere a Maria por detrás da minha mãe. A sua voz transmite claramente a ansiedade que a parece corroer por dentro. Conhecendo-a como conheço, qualquer outra situação médica, mesmo uma cirurgia ao cérebro, fariam com que esta ficasse entusiasmada. Mas este parto, não. Este parto está a fazer com que se sinta desconfortável. Não sei se por não saber o que fazer, ou se por temer, pela primeira vez, pela vida de um paciente. Quem sabe dois.

− Mudar a posição do corpo da mãe só ajudaria se esta estivesse com contrações − informa pacientemente a minha mãe. − E estas parecem não querer surgir. Nem o soro ajudou.

− Talvez seja a altura de executar o plano B − constata a Teresa de olhos fixos na única médica existente no quarto, no caso, a minha mãe.

Pouso a seringa vazia sobre o tabuleiro metálico que emite um curto estalido ao reencontrar o instrumento. Deixo as minhas mãos trabalharem mecanicamente na preparação do anestésico. Apesar de nunca ter colaborado num parto anteriormente, sei o que a ausência de contrações implica.

− Muito bem − ouço a voz segura da minha mãe atrás de mim. Desvio-me ligeiramente para lhe facilitar o acesso às luvas de latex, que se encontram numa pequena caixa junto ao tabuleiro metálico. – Graça, − pronuncia docemente o nome com as mãos já enluvadas, − teremos de fazer uma cesariana. É a única opção que nos resta.

− Nem pensar! – exalta com o rosto totalmente encarnado. Pelo menos agora está com o aspeto de uma mulher que está em pleno trabalho de parto, penso ironicamente. – Tive seis filhos. Seis − repete enfaticamente, estendendo seis curtos dedos rechonchudos à frente dela. – Se ter filhos fosse uma profissão, eu estaria, certamente, no topo! EU-SEI-TER-FILHOS – pronuncia lentamente as palavras num tom de voz, claramente, exacerbado.

− Ninguém está a colocar em causa a sua capacidade − diz a Teresa numa tentativa de a acalmar. A mão dela continua no colchão, mas agora sozinha, sem nenhuma outra para amparar ou fortalecer. – São coisas que acontecem.

Coisas que acontecem. Chegar atrasada à enfermaria, é uma coisa que acontece. Derramar um pouco da nossa refeição sobre o tabuleiro, é uma coisa que acontece. Tropeçarmos nos nossos próprios pés, é uma coisa que acontece. Agora, o nosso corpo não reagir na altura em que é suposto termos um filho, isso não é uma coisa que, simplesmente, acontece. Ainda para mais, quando já se teve seis filhos anteriormente. Seria de prever que o corpo dela já se tivesse habituado a este ritual. Mas, não. Parece que o corpo dela quis, propositadamente, entrar em greve, como forma de protesto pelo sétimo ser que a Graça decidiu trazer ao mundo.

− Já estás com 42 semanas de gravidez, o teu útero dilatou apenas dois centímetros e a membrana que protegia o feto rompeu há mais de 24 horas − relata a minha mãe num tom de voz paciente que invejo, por momentos. − Estamos há seis horas a fazer exercícios para ajudar na dilatação e há 30 minutos demos-te uma dose de soro com ocitocina sintética e o teu corpo, simplesmente, não reage.

− Injetem mais uma dose dessa coisa − profere a parturiente ao estender o braço na minha direção. Os seus olhos castanhos fitam de forma destemida a seringa que seguro firmemente. Se ela soubesse que se trata da anestesia que dará inicio à cesariana, o seu olhar ofuscaria de fúria, e não de determinação.

− Seria demasiado arriscado. Uma dose excessiva poderia prejudicar-te a ti e ao teu bebé. Uma cesariana é totalmente segura, não corres qualquer tipo de risco.

− Corro, sim. Dra. Helena, o meu marido já mal me liga, imagine se eu ficar com uma cicatriz horrível.

− Ao utilizar-se o selador, só ficará uma ténue linha clara na zona do abdómen, − explica a minha mentora, quando vê a minha mãe suspirar de exasperação, − que será apenas visível sob uma forte luz a incidir sobre ela.

− Ainda assim. Prefiro ficar aqui uma semana à espera que as contrações cheguem, do que ficar marcada para todo o sempre.

− Já chega − grito a plenos pulmões. Sinto quatro pares de olhos sobre mim, mas apenas fixo os da Sra. Graça, que se arregalam perante a minha inesperada reação. – Não percebe que o que está em causa é algo muito mais importante do que uma ridícula linha, quase invisível, com a qual ninguém se vai importar! Estamos a falar da sua vida. Da vida do seu bebé! Isso não lhe diz nada? E como é que acha que o seu marido vai olhar para si, se souber que perderam a criança, porque a senhora se recusou a fazer uma cesariana por motivos estéticos e puramente egoístas?

Sinto a mão da minha mãe sobre o ombro direito e percebo que tenho a ponta afiada da seringa apontada ao rosto da nossa paciente como se fosse uma arma.

Deixo descair o braço. Talvez tenha ido um pouco longe demais. Mais uma vez, deixei-me levar pelas emoções. Que erro de principiante! Quem cuida da saúde dos outros, até pode ter emoções, mas tem de saber guardá-las para si. A paciência tem de ser a nossa maior qualidade. Talvez esta não seja a profissão certa para mim, concluo, não é que isso faça diferença, até porque, agora, já não posso escolher outra.

− Deus! – exclama a nossa paciente. Os ombros descaem de frustração. – Ainda nem nasceu e já me está a causar tantos problemas. Enfim, que seja. Quando decidi ser mãe sabia que estava a sacrificar a minha vida por eles. Posso fazer isto por este ingrato diabinho, que parece não querer nascer.

Lanço um olhar recriminador à mulher que está deitada à minha frente, mas ela nem reage. Quase parece anestesiada, mas a seringa continua intacta entre os meus dedos fechados. Deve ser um problema de consciência, melhor dizendo, da falta dela. Só pode! Para conseguir dizer as coisas que diz, sem demonstrar um mínimo de arrependimento ou inquietação.

Ao menos aceitou fazer o necessário procedimento cirúrgico, penso. Não pelos filhos como insinuou, mas por ela. Percebi a forma como reagiu ao meu comentário sobre o marido poder não ficar satisfeito com as consequências da sua obstinação. Só quer ficar bem na fotografia, mais nada.

Imobilizo Graça Aguiar de costas para mim e passo um desinfetante pela zona da pele que será perfurada.

Espeto a seringa no meio da coluna vertebral e não consigo evitar sorrir quando a vejo estremecer de dor.


− Como és bela − digo emocionada ao retirar a última mancha de sangue do ouvido da pequena criatura irrequieta que braceja no ar.

Embrulho-a numa manta branca e ela parece gostar do rápido e fácil calor que cerca o seu frágil e pequeno corpo.

Trago-a para junto do meu peito e deixo-a ficar aí por alguns minutos, sem nem eu, nem ela pronunciarmos um único som.

Quando a minha mãe, finalmente, conseguiu tirar um quieto e silencioso monte de carne ensanguentado de dentro do abdómen da Sra. Graça, cheguei a temer pelo pior. Sabia que a súbita entrada de ar nos pulmões do bebé, deveria fazê-lo chorar. Mas por baixo da enorme quantidade de sangue encrustada na pele da pequena criatura, conseguia vislumbrar o tom arroxeado, que parecia não querer sair. Aqueles segundos assemelharam-se a uma verdadeira tortura e julgo que se tivesse sido eu a segurar o bebé naquela altura, o teria, certamente, deixado cair, tal era o meu estado de pânico.

Confesso que derramei umas lágrimas, quando o tão aguardado ser escancarou a boca e chorou a plenos pulmões, reivindicando o direito que tinha à vida. O som forte e irritante que emitia, fez-me sentir feliz e abençoada por poder testemunhar a forma como um novo ser se agarra tão fortemente à vida. Porque é apenas isso que importa quando saímos do útero materno. Viver.

Dei por mim a enxugar as lágrimas e a olhar para entre as pernas do bebé, para saber algo mais sobre ele do que a cor negra do seu cabelo. Uma menina, constatei, uma linda menina. Não é que ela parecesse particularmente bonita nessa altura, até porque a maior parte das suas feições estavam camufladas por entre as vivas manchas de sangue da sua mãe. Mãe, essa, que nem quis segurar a filha nos braços, e pediu para que eu a fosse lavar antes de a entregar. Pobre criança, pensei na altura.

Afago a cabecinha da bebé, ainda sem nome, como forma de a confortar pela sua triste sorte. As mães não se escolhem e a verdade é que nem todas as mulheres estão preparadas para assumir um papel tão importante como esse. E ainda se o único problema que ela fosse enfrentar fosse esse...

Tenho que lho dizer. Ela pode não me compreender, mas irá certamente ouvir-me. E isso terá de ser suficiente. Se não por ela, por mim.

− Eu queria poder dizer-te que serás amada, muito bem cuidada e protegida, mas não te posso mentir − sussurro, apesar de sermos as únicas pessoas presentes no berçário. − Este mundo onde vivemos já está cheio de realidades ocultas e a verdade parece-me, cada vez mais, um bem demasiado precioso para não o valorizarmos.

"Poderia dizer-te que podes vir a ser feliz aqui dentro, mas estaria a enganar-te. Aqui, é a comunidade que define quem deves amar. Aqui, é a comunidade que define como te deves comportar. Aqui, imprimem-te um rótulo à nascença − passo o meu polegar sobre a sua testa quente e rosada, tentando em vão apagar o rótulo de que lhe falo. − Aqui, cortam-te as asas e impedem-te de voar."

Sinto-a estremecer nos meus braços como se entendesse as palavras que lhe dirijo. Como se já receasse a vida que lhe espera, fora das quatro paredes deste pequeno berçário.

− Lá, será, definitivamente, melhor − comento, com um sorriso nos lábios que ela não vê por ter as pálpebras fechadas. − Lá, na nossa nova casa. Lá, entre as árvores e os rios plantaremos a semente da Humanidade e permitiremos que floresça livremente. Lá, conhecerás, por fim, a verdadeira felicidade.

Um pequeno sorriso desenha-se no rosto rechonchudo da bebé que seguro fortemente entre os braços. Por momentos, penso se ela não terá alguma forma de entender palavras que ainda nem sequer aprendeu. Penso também se pelo meu tom de voz, ela poderá perceber que estou a falar-lhe de uma coisa boa. Porém, a minha racionalidade não me permite divagar durante muito tempo por essas crenças ilusórias. Sei que é demasiado nova para sorrir genuinamente. O gesto não passa de um simples reflexo. Algo, completa e inteiramente, irrefletido.

− E, no meio disto tudo, não sei que conselho te dar. Estamos no meio de uma luta invisível, todos rodeados de um denso nevoeiro, que não nos permite avançar, ou sequer antever o caminho que nos levará à vitória. E se antes acreditava convictamente que a verdade era a melhor arma, agora, por mais que me custe admitir, percebo que quando se trata de salvar vidas a mentira é o nosso único caminho possível.

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