Capítulo 49
Fecho a porta atrás de mim e, com as pernas ainda bambas, forço-me a avançar pelo longo corredor em que me encontro. O Salvador ficou de sair uns minutos mais tarde para não corrermos o risco de alguém nos ver sair juntos do mesmo quarto.
De facto, o corredor está mais cheio agora do que há pouco. A maioria das pessoas que passa por mim segue em direção à grande porta que dá acesso à sala central, tal como eu. O refeitório a esta hora já serve refeições, então é normal que assim seja.
Entre o mar de vultos, consigo rapidamente distinguir a silhueta dos meus avós maternos, que apesar de distantes, não me poderiam passar despercebidos. Estão de mãos dadas. O meu avô inclina-se ligeiramente na direção da mulher para a ouvir melhor. A estatura diferenciada deste casal chamaria qualquer um à atenção. O meu avô é uns trinta centímetros mais alto do que a minha avó, que tem apenas um metro e meio de altura. No entanto, as dissemelhanças não ficam por aí. O meu avô tem uns curtos cabelos completamente grisalhos que contrastam com os cabelos ondulados meio ruivos, meio brancos da minha avó. E a pele morena do meu avô parece a sombra da pele demasiado branca da mulher. A esta distância parecem um casal estranho, demasiado diferentes para se encaixarem. Mas a verdade é que por dentro são tão iguais, que só podiam ser feitos um para o outro. Ambos foram mesquinhos e insensíveis ao se manifestarem contra a própria filha, só porque não queriam que esta casasse com o neto de uma louca.
Volto a lembrar-me da história que o Salvador me revelou ontem à noite. Todos ficaram contra a minha bisavó, inclusive os meus avós maternos. O único que a tentou defender foi o avô do Salvador. Mas ele sabia a verdade, ou, pelo menos, desconfiava. Porque haveriam todos os outros de acreditar numa mulher que mal conheciam?
Estaco. Havia mais uma pessoa que conhecia bem a minha bisavó e sabia que esta dizia a verdade. Como é que não me lembrei disso antes? A Sra. Prazeres era a sua melhor amiga, ela sabia melhor do que ninguém quem era a minha bisavó.
Recomeço a andar, mas, desta vez, na direção contrária à multidão.
− Posso entrar? – Pergunto espreitando pela penumbra da porta.
− Claro, Aurora. Ia agora sair para jantar, mas prefiro passar um tempo na tua agradável companhia antes.
Entro no quarto e fecho a porta atrás de mim. A Sra. Prazeres encontra-se de pé perto da cama. Enverga um simples vestido roxo que lhe chega quase até aos pés e é largo o suficiente para disfarçar a sua figura franzina.
− Vou ser direta, − começo, sem avançar nem um único passo na sua direção. – Porque é que não defendeu a minha bisavó quando a acusaram de louca? Você sabia perfeitamente que tudo o que ela dizia era a mais pura das verdades.
− Então também já descobriste essa parte da história. Mais tarde ou mais cedo isso ia acontecer, é claro! – A Sra. Prazeres senta-se na grande e vazia cama de uma forma tão serena e calma, que me sinto vacilar. Quando entrei neste quarto estava preparada para desmascarar uma feiticeira terrível, como Circe, aquela que enganou todos os companheiros de Ulisses. Porém, agora já não tenho assim tanta certeza das malignas intenções ocultas desta mulher. Talvez haja uma explicação plausível, penso. − É melhor sentares-te para que te possa contar a minha história − sugere. Acedo ao seu pedido gentil e sento-me do lado dela. – Quando a tua bisavó me contou todos os seus planos para a humanidade, fiquei eufórica. A ideia de construir uma vida longe da podridão que invadira o nosso planeta era demasiado aliciante.
"O que eu mais desejava na altura era ser mãe, mas não o podia ser. Não naquele planeta. Não podia ser egoísta ao ponto de fazer com que o meu próprio filho vivesse num mundo violento, doente e cansado, que nada de bom lhe traria. Mas depois tudo mudou. Comecei a fazer planos com o meu marido. A pensar numa vida ideal, com que nunca ousara sequer sonhar, e que poderia, por fim, tornar-se real.
Quando embarquei com o meu marido, senti-me a mulher mais feliz do Universo. Mas, claro, uma tamanha felicidade não poderia durar muito tempo. Três dias depois, o meu marido adoeceu muito rapidamente e... − Faz uma longa pausa e, por momentos, penso se não me vai revelar mais nada da sua história. Com a mão a tremer limpa uma lágrima que desce lentamente pelo seu rosto. − Ele morreu. Não foi o único, mais três homens e uma mulher morreram, porque o organismo não se adaptou ao novo ambiente. – Lembro-me de o Salvador me dizer que o 1º Comandante inicial foi também uma das pessoas que morreu dessa doença. Que tragédia deve ter sido! − Com ele, foram-se todos os nossos sonhos e projetos. A vida que eu tanto queria desmoronou-se de um dia para o outro. Senti-me arrasada e culpei a tua bisavó.
Tens que entender, eu só aceitei embarcar nesta viagem louca para poder trazer ao mundo um filho. Pelo menos, um filho. Mas sem o amor da minha vida do meu lado, isso já não fazia sentido. E, dessa forma, senti-me amaldiçoada. Teria de viver uma longa e triste vida, quando poderia ter vivido uma vida curta, mas, minimamente, feliz ao lado do homem que escolhi para a vida."
− Mas a minha bisavó não teve culpa.
− Eu sei. Hoje, sei. Mas eu estava ferida, completamente arrasada, por isso tive que culpar outra pessoa qualquer que não eu, para que conseguisse manter a minha sanidade mental. Fui falar com ela e ofendia-a de todas as maneiras possíveis e imagináveis, trouxe até histórias nossas do passado, para estragar um pouco a sua felicidade. Discutimos como nunca antes e disse-lhe que nunca mais seriamos amigas. Mas fiz pior! Uma semana depois, a tua bisavó é chamada de louca e eu, não só não a defendo, como também alimento essa ideia. A todos aqueles que falaram comigo, garanti que ela era mesmo louca. Muitos deles sabiam que eramos amigas, tinham-nos visto juntas nos primeiros dias. Então foi fácil estragar a imagem da mulher que outrora tinha sido a minha melhor amiga. Eu sei que não foi bonito. Mas um sentimento de vingança apoderou-se de mim e eu agarrei-me, com todas as minhas forças, a ele, porque sempre era melhor do que a solidão e dor que sentia quando me lembrava do que havia perdido.
− Mas arrependeu-se... − digo, afastando-a da mágoa que revive mais uma vez. Quantas vezes não terá ela sofrido ao lembrar-se desta história? Tenho que tentar trazê-la para o lado bom, fazê-la reviver sentimentos bem mais positivos.
− Sim. Passei anos mergulhada no trabalho, porque era a única forma de fugir à minha vida. Mas depois, acabou-se. Tive que me reformar. Isso fez com que passasse horas a fio, sozinha neste quarto, entregue a tortuosos pensamentos. Foi aí que não tive outra hipótese senão reconhecer que tinha errado. A culpa de tudo o que se tinha passado era minha.
− O que lhe aconteceu foi uma fatalidade e ninguém teve culpa disso. Sei que é difícil de aceitar, mas nem sempre tudo o que acontece tem uma razão ou uma lógica inerente.
− És uma rapariga da ciência, Aurora. Sabes que é difícil compreender as coisas para as quais não arranjamos explicação. − Ela tem razão. Não estudo, nem me dedico, a ciências exatas como a minha bisavó, o meu avô e o meu pai, porém, ainda assim, agarro-me sempre à crença de que tudo tem uma explicação. Sou curiosa e procuro sempre por uma resposta, mesmo que tema que esta não me vá agradar. Mas existem casos para os quais não existe, simplesmente, uma explicação. E este é um deles. Estou para lhe dizer isso mesmo, quando ela volta a falar, – mas há uma coisa de que tenho a certeza. Perdi a melhor amiga que já tive somente por minha culpa. Fui eu que decidi passar o resto da minha vida abandonada neste quarto, sem ter ninguém com quem chorar e partilhar as minhas mágoas. Agora aguardo apenas que a morte seja misericordiosa e me leve o mais rápido possível.
A forma como o diz faz-me sentir um calafrio. Fala como se fosse uma coisa banal, sem qualquer importância. A morte para ela é uma bênção e isso causa-me estranheza. Nunca pensei que alguém ansiasse por isso. Mas suponho que para alguém que viva como ela, isso faça sentido. Passou tantos anos a limitar-se a viver, só porque sim, só porque o seu coração ainda bombeava o sangue, que não a consigo recriminar. Ainda assim, lembro-me de todas as pessoas que vivem na sala secreta e lutam todos os dias pela esperança de uma vida melhor. Não têm sequer privacidade para tomar banho e pouco mais fazem do que comer, dormir e conversar uns com os outros. No entanto, por mais estranho que pareça, para eles a vida é que é uma bênção.
Porque é que eu aceitei o convite do Salvador?, recrimino-me mentalmente. Ontem à noite, na sala secreta, o Salvador disse-me que queria apresentar-me à mãe dele. Não fiz grande caso do assunto, mas só porque pensei que se tratava de um plano para um futuro longínquo. Quem sabe talvez para a semana. Nunca hoje. Mas aqui estou eu, na grande sala central, de olhos postos no relógio à espera de entrar no refeitório, trinta minutos antes do seu horário de funcionamento.
Raios! Porque é que estou tão nervosa? O Salvador garantiu-me que a mãe dele está do nosso lado e que foi ela que insistiu para me conhecer. Mas, sei lá! E se ela não gostar de mim? Acho que não ajudou o facto de ele me ter confidenciado que a relação que tem com a mãe é muito especial, que são mesmo muito próximos.
O problema é que agora já não posso voltar atrás.
O ponteiro dos minutos avança mais um pouco e eu estremeço ao perceber que se detém sobre o número sete. Inspiro profundamente e depois de verificar que sou a única pessoa na sala, avanço a passos largos para o refeitório. O melhor é não prolongar este sofrimento e enfrentar, de uma vez por todas, a situação.
− Boa tarde − cumprimento ao fechar a porta atrás de mim.
O Salvador e a mãe encontram-se no centro do refeitório, cercados por mesas de todos os lados. Os seus corpos tão distintos estão quase colados um ao outro, denunciando a proximidade da sua relação.
Dois pares de olhos enormes e brilhantes, do mesmo tom azul, concentram-se demoradamente em mim. Sinto-me congelar. Não sei o que fazer. Não sei o que dizer. É suposto aproximar-me deles? Não quero ser percecionada como uma ameaça. As mães têm o instinto de proteger as suas crias. E se ela achar que eu só lhe quero roubar o filho? Ou pior, magoá-lo?
O Salvador acena quase impercetivelmente com a cabeça e são precisos alguns segundos para eu entender a mensagem que tal gesto pretende transmitir. Ainda assim, mantenho-me estática no mesmo lugar. E só quando este me sorri, consigo finalmente mover-me na direção deles.
− É... É... Um... prazer conhece-la − gaguejo ao parar a dois passos deles. – Quero dizer, nós já nos conhecemos, mas... Sei lá! Suponho que agora seja diferente − sugiro nervosa. Isto não podia estar a correr pior, penso.
− Sim, tens razão − concorda Lurdes Dias, a mãe do Salvador. – Esta é realmente uma situação inédita. Na verdade, nunca pensei que o meu filho fosse capaz de algo do género.
Olho confusa para o Salvador, mas não lhe encontro os olhos. Aparentemente, o chão que pisamos é mais interessante que eu. Terá ele mentido? Mais uma vez? Não, não faria sentido. Com que intenção ele me traria aqui se a mãe estivesse contra nós? Será que esperava que eu fosse capaz de a fazer mudar de ideias? Que a poderia levar a acreditar que sou a pessoa certa para o seu filho? Mas se assim fosse, porquê mentir? Bom, talvez porque se dissesse a verdade, se me tivesse dito que a mãe dele me odiava, eu jamais teria concordado com este estúpido encontro.
Tudo seria mais fácil se ao menos ele dissesse alguma coisa. A sério que só vai ficar aqui especado a olhar para o chão? Sem dizer nada? Sem sequer me lançar um olhar encorajador? Parece que acabaram de me fechar numa sala escura para enfrentar um grande perigo que não me é visível, de todo.
− E acho que a grande culpada és tu, não é assim? – continua, ao ver que nada digo.
− Eu... − hesito. Como é que pude acreditar que esta mulher poderia entender a minha proximidade ao seu filho? Sou apenas uma ameaça, nada mais do que isso! Ela só quer ver o seu filho feliz e julga que do meu lado, ele nunca o vai conseguir ser. Eu já sabia que essa era a opinião do pai do Salvador e agora também sei que é a da mãe. Isto só serviu para perceber que as nossas famílias nunca nos apoiarão.
− Estás tão calada, minha filha. – Sobressalto-me. – Desculpa, presumi que te podia tratar por filha. Mas se não quiseres...
− Não entendo − interrompo-a abruptamente. Os meus pensamentos ganham uma velocidade estonteante na minha mente. Correm, voam, e emaranham-se entre si. Os nós que formam são mais que mil e torna-se difícil produzir qualquer som. Não quero soar incongruente ou dizer algo que depois me arrependa. Uma ponta clara de um pensamento acena-me de forma desafiadora e eu agarro-me a ele com todas as forças, para poder trazer cá para fora qualquer coisa. Qualquer coisa que acabe com este pesado silêncio, e que me permita sentir um pouco menos constrangida do que me estou a sentir agora, com dois confusos pares de olhos azuis eletrizantes presos em mim. – Quando mencionou que pensava que o seu filho nunca seria capaz de fazer algo do género, a que se referia exatamente?
− Não é que pensasse que o meu filho não seria capaz de amar. Ele tem um coração de ouro. – A Sra. Lurdes afaga gentilmente a face do filho, um gesto que transpira de orgulho, carinho e admiração. – Os poucos que ama protege de alma e coração. Porém, desde muito novo que o meu filho se isola. A professora Júlia e a professora Ema fartaram-se de me avisar que a timidez do meu filho seria prejudicial para ele. Nas aulas mantinha-se calado e no seu canto, não interagia com ninguém, e só falava quando as professoras lhe perguntavam algo diretamente a ele. Mas por mais que eu o aconselhasse a fazer amigos, não adiantava. E quando ele se tornou mensageiro, isso apenas piorou.
− Mãe... − adverte o Salvador num tom de voz ríspido. Os olhos novamente voltados para o chão, como se não se sentisse confortável com o rumo da conversa.
− É verdade, Salvador − salienta a Sra. Lurdes, sem olhar na direção do filho. Eu continuo a ser o alvo de toda a sua atenção. – Quando me casei com o pai do Salvador, já sabia que ele guardava um segredo. No entanto, até hoje, não sei qual é. O meu marido sempre quis manter-me afastada dessa história, mas não conseguiu fazer o mesmo pelo filho. O meu sogro arrastou o meu pequeno Salvador para o seu grande segredo, quando este tinha apenas cinco anos, já que o seu próprio filho parecia não se enquadrar no papel de cúmplice que ele tanto desejava. Sejamos sinceros, o meu marido sempre foi um cobardolas. – Arregalo os olhos com tal confissão. A naturalidade com que o diz apanha-me de surpresa. É quase como se, o que estivesse a dizer, não fosse um insulto, mas antes uma verdade inquestionável. – É verdade. Eram poucas as vezes que o meu marido aceitava acompanhar o meu sogro, quase parecia que fugia dele. Mas o meu Salvador, não. Ele adorava o avô e, de alguma forma, o meu sogro encontrou no pequeno Salvador de cinco anos a coragem que sempre procurou no filho, mas que nunca encontrou. No entanto, isso mudou-o. Sim, o Salvador já era um pouco tímido na altura, mas piorou bastante depois disso. Talvez o segredo fosse demasiado pesado para que fosse colocado de forma despreocupada nos ombros de uma pequena criança.
Sei a que segredo se refere. E posso dizer, por experiência própria, que é um segredo demasiado pesado para qualquer pessoa, de qualquer idade. Contudo, compreendo como o conhecimento desse segredo pode facilmente moldar a personalidade de uma criança. O Salvador não seria, certamente, o mesmo, se o avô tivesse escolhido esconder toda a verdade do neto.
− Sabes, Aurora, foi como se o seu coração ainda tivesse imensos lugares livres, mas ele tivesse fechado a porta muito antes da lotação estar sequer perto de esgotar. E o pior de tudo é que nem se apercebeu que, com esse gesto, também ele tinha ficado do lado de fora dessa porta. Decidira colocar a felicidade dele em segundo plano. Por isso, fiquei tão feliz quando percebi que afinal essa porta não tinha sido fechada à chave. E tu, Aurora, foste astuta o suficiente para o constatar. Com a maior das facilidades, giraste a maçaneta e ainda te sentaste no lugar mais importante que havia para ocupar.
− Mãe!
− O que foi filho? Não estou a dizer nenhuma mentira. Não te preocupes que a Aurora não vai deixar de te amar por saber estas coisas. Não é verdade, querida?
Raios! O que é que é suposto eu dizer agora? Se concordar, estarei a admitir que o amo. Sem dizer as palavras, é facto. Mas ainda assim será como dizê-lo. Porém, será essa a verdade? Estou completamente apaixonada por ele e já me interroguei, uma ou duas vezes, se o profundo sentimento que sinto por ele será amor. Namoramos há muito pouco tempo e o amor não é aquele sentimento difícil que precisa de tempo para crescer e se desenvolver fortemente no peito? Se assim for, será que já houve tempo o suficiente?
Olho para o Salvador. Vejo-o passar a mão, nervosamente, pelos curtos cabelos castanhos, que se desalinham numa perfeição incongruente com o gesto. O azul dos seus olhos parece mais intenso, mais vivo do que nunca. Encolhe os ombros, como que a dizer que agora é comigo. Que sou eu que para variar tem de falar, enquanto ele se regozija com as minhas reações.
− De facto, − começo, sem desprender os olhos do Salvador, − quanto mais aprendo sobre o seu filho, mais gosto dele. – Sorrio ao belo homem que me fita encantado. Sorrio por ter conseguido dar a volta à situação, como ele faria, com mestria, se estivesse no meu lugar. Sorrio por ter conseguido usar a verdade a meu favor, sem precisar de mentir a esta gentil mulher, que não só não parece ter nada contra mim, como ainda parece admirar-me. E sorrio pela preciosa expressão de devoção que consegui, miraculosamente, arrancar ao Salvador.
− Como o meu filho parece outro, quando te olha! Até dá gosto de ver!
Sinto-me ruborizar e dou graças a Deus por a Sra. Lurdes estar a prestar atenção ao seu amado filho e não a mim. Nas palavras desta doce mulher, eu sou uma heroína ou, talvez, uma santa, que operou um verdadeiro milagre. Mas não me revejo nessa posição. Sim, talvez tenha conseguido entrar no coração do Salvador. Contudo, o mérito não é todo meu. Se ele não o quisesse, de nada adiantaria a minha persistência. Além de que, quantas vezes não desisti eu de lutar por esse tal lugar tão especial de que ela falou? Não, não foi de todo algo fácil. E, certamente, que o papel principal desta história, não foi o meu, mas sim do Salvador, que nunca desistiu de nós.
− Agora tenho que voltar para a cozinha, antes que alguma das minhas colegas venha aqui verificar o motivo de eu me estar a demorar tanto, numa simples conversa com o meu filho. Mas antes disso... − A mãe do Salvador aproxima-se de mim e envolve-me num terno abraço. Os meus músculos enrijecem imediatamente devido ao inesperado gesto que me parece tão íntimo. Mas numa questão de segundos envolvo também eu os meus braços em torno dela. Como parece fácil gostar desta mulher, penso. – Não me chegaste a responder. – A Sra. Lurdes termina o abraço, mas continua a agarrar-me docemente os braços. Os seus olhos azuis faíscam de alegria. – Posso tratar-te por filha?
− Claro. Ficarei lisonjeada se o fizer.
− Então está decidido. Serás para mim como a filha que nunca tive. E, agora, aproveitem para namorar um pouco, antes do refeitório abrir. – A mãe do Salvador recua um pouco e agarra na mão do filho, juntando-a à minha. A minha pele reconhece de imediato o calor que cobre a minha mão. – Mas não se demorem.
Sigo com o olhar o percurso que a Sra. Lurdes faz até à cozinha, mas antes mesmo dela atravessar a porta, o Salvador puxa-me para si e beija-me avidamente.
− Gostaste da minha mãe? – pergunta-me timidamente.
− Como poderia não gostar? − A minha respiração ainda está entrecortada e o meu corpo parece pouco estável, mas, felizmente, os braços do Salvador envolvem-me a cintura e impedem-me de cair. – Depois de ela falar maravilhas a meu respeito? Pareceu-me uma excelente pessoa, talvez até melhor do que o próprio filho.
− Ora! Acaso estás a pensar trocar-me pela minha própria mãe?
− Quem sabe? – respondo entre risos. – O abraço que me deu soube-me muito bem. Será que beija melhor do que o filho?
Sinto um beliscão na anca direita que me faz estremecer, não de dor, mas de prazer.
− Não, a sério! Não sabes o quanto isto significa para mim! As duas mulheres da minha vida a darem-se bem, a gostarem uma da outra.
Pouso a palma da minha mão na testa do Salvador e percorro lenta e suavemente metade do seu rosto até me deter sobre os seus lábios cheios e bem-delineados. Ele deposita um pequeno beijo na minha atrevida palma e eu sinto-me derreter com esse simples gesto.
− Obrigado por tudo isto − digo. A minha mão desce até à sua nuca e aloja-se aí.
Trocamos abafados murmúrios entre beijos. Mas nenhum de nós entende muito bem o que o outro diz. Não importa. O que as palavras não conseguem dizer, o nosso corpo consegue.
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