Capítulo 45
2k de visualizações? Como assim? Muito obrigada a todos que continuam aí desse lado a torcer pela felicidade da nossa Aurora e acredito que ansiosos para saberem o desfecho da sua história. Estamos basicamente em contagem decrescente para o final!
Para comemorar os 2k, deixo aqui um capítulo muito especial que serve um pouco de reflexão sobre o tão aguardado final 😍😍
Aviso: Acho que já deu para perceber, mas rapariga é equivalente a garota, em português de Portugal. Só estou a avisar porque vai ser uma palavra bastante usada (e comentada) neste capítulo.
Espero que gostem.
− A rapariga decidiu ser forte e corajosa e seguiu mais uma vez o pequeno rapaz estranho.
Suspiro e penso em olhar para trás, para a porta. Contudo, se o fizesse, seria já a trigésima vez hoje. Não quero parecer obcecada, porém talvez seja um bocado tarde para isso.
Mas onde é que ele estará?
− E depois? O que aconteceu depois, Aurora? – pergunta o Gabriel puxando o meu braço para ele, de forma a captar a minha atenção.
− Ela descobriu o que ele andava a esconder? – oiço a pequena e curiosa voz da Rita, a rapariga mais nova do grupo que tenho à minha volta.
− Sim − afirmo olhando-os, à vez, a todos nos olhos. Ao sentir o pé direito dormente, descruzo as pernas e volto a cruzá-las, deixando, desta vez, o pé esquerdo por baixo. O chão daqui é frio e duro, nada confortável. Mas as crianças não parecem importar-se nem um pouco com isso. Olham-me expectantes, ansiosas para saberem o desfecho da história. – O rapaz escondia um lugar mágico repleto de criaturas únicas e maravilhosas. – Afago a pequena cabeça do Gabriel que me olha deliciado.
− Mas porque é que o rapaz não lhe disse logo a verdade? – questiona confuso o Afonso.
− Porque foi um idiota. Não percebeu que nela poderia confiar sempre.
Levanto-me de um salto ao ouvir a voz quente e sussurrada do Salvador.
− O que é que te aconteceu? – pergunto alarmada ao vê-lo coberto de inúmeras manchas negras. A t-shirt que usa, antes branca e imaculada, parece húmida e esborratada por uma mancha disforme que cobre todo o seu estômago. No rosto, uma pequena mancha cobre o lado direito do seu queixo estendendo-se um pouco mais até quase chegar ao nível do nariz. E na testa parecem existir dois traços negros quase dissociados, como se fossem dois longos dedos estendidos.
− Peço desculpa pelo atraso. Estava com o meu pai quando uma das máquinas começou a verter óleo descontroladamente. Tive que o ajudar. Só estávamos lá nós os dois. Todos os seus homens já tinham sido dispensados.
− Não teria sido melhor teres chamado por ajuda? – Olho para as suas mãos que quase não são visíveis debaixo da cor negra do óleo.
− Não era nada que eu e o meu velho não conseguíssemos resolver. Não precisas de te preocupar. Estou bem, não vês? – Aproxima-se de mim para que o possa ver melhor.
− Não te magoaste, pois não? – Aperto-lhe as mãos com as minhas. Sinto-o estremecer subtilmente com o toque, mas sei que não é de dor, porque eu senti o mesmo que ele. A energia pulsante que se gera sempre que nos tocamos.
− Eu se fosse a ti não fazia isso, − diz num tom gutural que lhe parece sair das entranhas.
− Porquê?
− Porque não vais querer denegrir essa linda e branca pele, − sussurra-me ao ouvido. Todo o meu corpo vibra de antecipação, de desejo.
− E se eu quiser?
Os nossos rostos estão praticamente colados. O ar à nossa volta parece crepitar. O meu coração dispara a uma velocidade cada vez mais descontrolada.
Respiro com alguma dificuldade. Entreabro a boca para facilitar a entrada do oxigénio. Uma chama parece acender-se nos olhos azuis do homem por que tanto anseio. Num movimento impetuoso, reclama os meus lábios com os seus. Perdemo-nos num longo beijo, que parece não saciar em nada a nossa vontade. Muito pelo contrário, só a parece aumentar.
Separamo-nos bruscamente ao apercebermo-nos de um ruído estranho à nossa volta. Parecem...
São aplausos, confirmo ao olhar para tantas pessoas de pé a fitarem-nos embevecidas. Fito boquiaberta a Elisa, que tal como todos os outros, parece radiante com a situação. Sorrio-lhe e lanço-lhe um agradecimento mudo, que espero que ela perceba. Se não tivesse sido ela, eu e o Salvador continuaríamos a ser apenas amigos.
Concentro-me novamente na pequena e calorosa multidão que nos cerca. Por momentos, finjo de que se trata da comunidade. Como seria bom, se também as pessoas lá de cima se alegrassem com a nossa união. Mas se beijasse o Salvador da forma como o fiz agora, à frente de toda a comunidade, a reação seria tudo menos positiva. Ficariam até escandalizados pela audácia de tamanha intimidade.
Coro. Como pude beijá-lo desta forma à frente de tantas pessoas? Em que é que eu estava a pensar?
A verdade é que me sinto bem aqui. No meio destas pessoas. É quase como se fossem família. Contudo, isso não justifica nada. O que seria se beijasse o Salvador desta maneira à frente dos meus pais? Nem quero pensar nisso! Que vergonha!
Olho para o Salvador e vejo que está tão encabulado quanto eu. As suas faces ligeiramente rosadas, os seus olhos concentrados no chão.
− Finalmente! – grita a Ângela ao encostar as suas mãos frias e enrugadas sobre os nossos braços, que estão ainda estendidos e unidos através das nossas mãos. – Vocês são feitos um para o outro. E juntos serão felizes e fortes como nunca. – Fala de uma forma tão segura, que me pergunto se não saberá mais sobre o nosso futuro do que nós próprios. Parece um presságio.
− Obrigado, Ângela − agradece um Salvador notavelmente emocionado.
Ele vê nestas pessoas uma família. Uma verdadeira família. E a bênção delas à nossa relação significa muito para o Salvador. Era esta a reação que ele gostaria de ter dos pais, mas ambos sabemos que isso não vai acontecer. Não por não gostarem de nós, é precisamente pelo contrário. É pelos nossos pais quererem o nosso bem, por não nos quererem ver sofrer. Ficarmos juntos é o mesmo que nos atirarmos em espaço aberto sem qualquer fato de proteção, penso ao lembra-me das palavras da minha avó.
− Aurora − chama-me o Gabriel, puxando-me gentilmente a t-shirt para baixo. – Tu e o Salvador namoram?
Troco um olhar cúmplice com o Salvador.
− Sim, pequeno. Namoramos − confirmo sem largar as mãos do Salvador.
− Agora já não vais ter tempo para mim!
Ajoelho-me junto ao pequeno rapaz. Está cabisbaixo e os seus lábios fazem beicinho.
− Não é verdade. Vou continuar a estar contigo. Tenho tempo que sobra para os dois. − Não é que o tempo esteja mesmo em sobra. Terei pouco tempo, tanto para um como para o outro. Mas terei de conseguir dividir esse pouco tempo pelos dois de forma a que nenhum deles fique de algum modo chateado ou triste.
− Então vem. Tens que continuar a história.
Dirijo um pedido de desculpas silencioso ao Salvador, que se limita a sorrir-me e a piscar-me o olho. Ele compreende. É claro que compreende. Tenho vontade de o abraçar, mas depois lembro-me que isso deixaria a minha roupa toda suja. E eu não estou com vontade nenhuma de inventar histórias mirabolantes. Por isso, sento-me novamente com as crianças e continuo a história, que de imaginária tem muito pouco.
− Onde é que nós tínhamos ficado? Ah, sim − acrescento ao lembrar-me da interrupção do Salvador. − O estranho rapaz queria proteger as criaturas maravilhosas que habitavam aquele mágico lugar, e por isso não tinha contado nada à rapariga. A verdade, é que um grande e terrível monstro não gostava nada dessas criaturas e recusava-se a deixá-las irem morar para um lugar melhor. Porque queria que nesse sítio apenas vivessem pessoas parecidas com ele. Mas o rapaz e a rapariga uniram esforços e fizeram de tudo para os proteger.
− E eles conseguiram levar as criaturas para o lugar bonito? – questiona a Rita parecendo verdadeiramente preocupada com as personagens da história.
Com o olhar percorro, rapidamente, a sala e encontro o Salvador num dos cantos. A imagem com que me deparo deixa-me sem palavras. E uma tarefa tão simples como respirar torna-se, de repente, demasiado exigente.
O Salvador está apenas de boxers. Os músculos dos braços distendem e contraem enquanto este esfrega a espuma pelo seu tronco e logo depois verte água, com a ajuda de um balde, por cima de si para tirar toda a sujidade impregnada na pele. Água escura, quase negra, escorre pelo seu corpo musculado e sai pelo grande ralo circular que tem debaixo dos seus pés. As manchas na cara ainda não desapareceram por completo, mas as mãos estão tal e qual como me lembro delas.
− Continua, Aurora − suplica o Gabriel ao perceber em que direção tenho presa a minha atenção.
− Pois...humm... − digo atrapalhada. Sangue quente aflora-me ao rosto. Tenho que tirar a imagem que acabo de ver da minha mente, senão não vou conseguir terminar esta história. E quanto mais rápido o fizer, mais tempo terei para estar com o Salvador. Fixo os olhos num ponto aleatório do chão, que talvez coincida com o ponto central da nossa pequena roda humana. – O rapaz e a rapariga decidiram dar umas poções mágicas a todas as criaturas.
− E o que faziam essas poções? – questiona o Gabriel, parecendo feliz com o rumo da história.
− As poções tornaram-lhes invisíveis. Assim, conseguiram viajar todos juntos e felizes até ao novo lugar tão ansiado por todos. Como aquele novo mundo era tão grande, quando o efeito da poção passou, as criaturas já estavam muito longe do sítio onde o monstro se tinha instalado com os seus companheiros. O monstro nem suspeitava que partilhava o mesmo ar e o mesmo chão com todas as criaturas que tanto desprezara. E, desse modo, conseguiram todos viver felizes para sempre.
− A história não pode acabar assim − reclama o Gabriel, indignado. – Não aconteceu nada ao monstro!
− E por que tinha de acontecer? O que importa não é que as criaturas tenham conseguido ser felizes?
− Não, porque não é justo! Elas nem podem ser totalmente felizes sabendo que o monstro vive no mesmo sítio que elas. Devem ter muito medo que um dia ele as encontre.
Será que o Gabriel tem razão? Estas pessoas arriscam tudo, arriscam a própria vida, só para chegar a uma nova casa com melhores condições. Chegando lá, não vão ter outra hipótese senão fugir, porque representam uma ameaça a autoridade e poder do 1º comandante. Mas mesmo que se consigam afastar bastante, o medo não desaparecerá por completo. E poderão ter de viver eternamente em fuga. E esse não me parece o grande final feliz que estas pessoas merecem.
Poderia insistir no desfecho óbvio, naquele que irá acontecer na realidade. Mas isso não seria o mesmo que dizer ao Gabriel que depois da vida miserável que teve, a esperança de um final feliz é uma ilusão? Não seria como esmigalhar o resto de esperança a que esta criança tanto se agarra para o seu próprio final feliz? Seria dizer-lhe: "Não, Gabriel. Tu nunca poderás vir a alcançar a felicidade plena".
− Então que final sugeres tu para esta história, Gabriel?
Se for ele a escrever o final desta história fantasiada, talvez perceba uma mensagem mais importante. Que ele pode ter poder sobre o caminho que irá trilhar na sua vida. Que um verdadeiro final feliz depende sempre de quem conta a história. Eu própria tento agarrar-me a essa crença com todas as minhas forças.
− Hum... − Gabriel passa a mão incessantemente pela sua cabeça calva. O gesto cessa assim que um brilho toma conta dos seus pequenos olhos muito abertos. − O monstro encontrou umas malas cheias de comidas deliciosas e ele e todos os seus companheiros comeram tudo de uma só vez. Só que a comida estava estragada e eles não sabiam. Morreram todos. Fim.
− Parece-te justo que os companheiros tenham o mesmo final que o monstro?
− Sim, porque não ajudaram as criaturas − responde como se fosse a coisa mais óbvia de sempre. Penso na comunidade, nos meus pais, nos meus avós, na Analu e um calafrio percorre todo o meu corpo. Não posso deixar que o Gabriel deseje mal a todas essas pessoas, até porque elas não têm culpa.
− Mas já pensaste que talvez eles não soubessem da existência das criaturas. Lembras-te da rapariga da história? – O Gabriel acena timidamente com a cabeça. Está a resultar. Ele já não está assim tão certo de que o seu desfecho para a história seja o melhor. – Ela também não sabia, não é? E quando descobriu decidiu ajudar. Aos outros, aos companheiros do monstro, não lhes foi dada escolha alguma.
− Então... então já sei! – a luz retorna aos seus olhos atentos, desta vez, de uma forma ainda mais intensa. Ele sente-se importante por ser ele a dar o final justo à história. – O monstro encontrou umas malas cheias de comidas deliciosas, mas decidiu comer tudo de uma só vez, porque não queria partilhá-las com os seus companheiros. Comeu, comeu e comeu. Comeu tanto que... PUM! – grita entusiasmado lançando os seus finos bracinhos no ar. – Explodiu.
− Ninguém explode de tanto comer! – reclama o Afonso nada convencido com aquele final que todas as outras crianças parecem achar hilariante. Riem-se a plenos pulmões. A pequena Rita está deitada no chão. Agita as pernas e os braços no ar e as suas pálidas bochechas adquiriram uma forte cor vermelha que parecem transformá-la numa criança totalmente diferente. Já nem parece a criança frágil e franzina de há pouco.
− Não, é verdade! Pode acontecer não pode, Aurora?
O Gabriel olha-me expectante. Quer que valide o seu final. Que diga que o fim que proclamou é possível, porque de outro modo teria, mais uma vez, de enfrentar a crua realidade de nem sempre existirem finais felizes para as histórias.
Tenho de admitir que faria sentido ser a ganância a matar o tal monstro que queria um mundo enorme só para os seus, como se não houvesse espaço para mais ninguém!
Em teoria e na prática, a capacidade elástica do estômago permite a ingestão de uma quantidade absurda de comida, mesmo que nós não precisemos dela. Mas o estômago não consegue aumentar o seu tamanho infinitamente, então surge o plano B do organismo. Vomitamos. Porque é assim que estamos programados. A lutar até ao fim pela nossa sobrevivência e o nosso corpo não se deixa influenciar pelas nossas más decisões. Por muito que quiséssemos dizer ao nosso corpo: "Para! Deixa-me atolar de comida se assim eu o desejar!", ele não nos vai dar ouvidos. Então, não. Não me parece ser plausível. Mas não é isso que o Gabriel quer ouvir. E, no entanto, também não me parece certo mentir-lhe.
− Gabe, na nossa cabeça podemos tudo − afirma o Salvador preenchendo o topo da cabeça do pequeno rapaz com a palma da sua mão. – E esse parece-me um final perfeito.
Um sorriso orgulhoso cola-se no rosto esguio do Gabriel. Não sei se terá sido a melhor estratégia, mas pelo menos o brilho da esperança continua lá. Na sua alma, no seu pequeno coração.
Levanto-me e dirijo-me para o único colchão vazio da sala, deixando as cinco crianças, que brincam entre si, para trás. Sinto o coração acelerar quando o Salvador me segue, calmamente, apenas uns segundos depois.
− Toma. – O Salvador estende-me uma pequena toalha húmida.
− Para que quero... − Calo-me ao olhar para as minhas mãos. As palmas estão cobertas por uma fina camada negra compacta e do outro lado umas manchas ocasionais salpicam-me a pele de negro.
Pego rapidamente na toalha e dedico-me à árdua tarefa que tenho, literalmente, entre mãos. O Salvador senta-se do meu lado. Sinto o seu olhar atento sobre mim.
− Irias fazer furor com as mulheres lá de cima se andasses por lá com esses... − Analiso-o da cabeça aos pés. O seu cabelo castanho está mais escuro do que o usual e quase parece negro, por causa do excesso de água que absorveu. Consigo perceber que nem o escovou e que deve ter passado apenas a mão por entre os fios uma ou duas vezes. Sinto uma vontade arrebatadora de lhe pentear com as minhas próprias mãos os seus cabelos desgrenhados e húmidos. O tronco continua desnudo e à volta das pernas traz apenas uma pequena toalha branca, que quase nem lhe chega aos joelhos. Engulo em seco. – Com esses trajes.
− Acontece que não quero impressionar nenhuma delas. É que sabes, − aproxima-se do meu ouvido, − tenho namorada. − Estremeço ao sentir a sua respiração quente tão perto de mim.
− E achas que ela gosta?
− De quê?
− De te ver assim − acrescento sentindo as minhas faces ruborizarem mais um pouco.
− Diz-me tu.
− Acho que... − Ela adora é óbvio, penso responder-lhe. – Não, porque se ela te visse assim, provavelmente seria muito difícil para ela se controlar.
− E como eu queria que ela se descontrolasse − confessa, naquele tom gutural que parece ecoar em todo o meu ser.
Molho os lábios em antecipação. Todo o meu corpo grita para que ele me tome nos seus braços. Torço a toalha que tenho entre as mãos e algumas gotas caiem sobre as minhas calças pretas, que as absorvem de imediato. Consigo sentir um frio subtil através do tecido recentemente molhado, mas não é, nem de perto, suficiente para diminuir a minha temperatura corporal.
− A minha vontade era beijar-te aqui e agora − sussurra.
− E porque é que não o fazes?
− Porque temos demasiada audiência. – Lanço um olhar fugaz pela sala e vejo mais olhos do que gostaria concentrados em mim e no Salvador. Somos novidade. Num sítio como este, em que não se passa quase nada, é normal uma nova relação como a nossa despertar-lhes o interesse. – Além do mais, teria de voltar a lavar o rosto.
Perscruto-o confusa.
O Salvador limita-se a estender a mão direita e, ternamente, desliza a ponta do polegar sobre o meu pequeno queixo.
− Refiro-me a isto − explica estendendo o polegar diante dos meus olhos. Está novamente negro, o que significa...
Raios!
Passo a toalha por todo o meu rosto, demorando-me um pouco mais na zona do queixo, que é a única parte em que tenho a certeza de que está suja de óleo. Terá sido do beijo? Ou terei eu tocado no meu próprio queixo enquanto contava a história às crianças? Não me lembro disso, mas posso tê-lo feito num movimento irrefletido.
Esfrego até não conseguir encher a toalha com mais nenhuma mancha de óleo. Quando termino, a toalha está mais negra do que branca.
− O que foi? Do que te ris? – Pergunto-lhe.
− Ficaste com o rosto todo vermelho de tanto esfregares − responde entre gargalhadas.
− Não sei porque te ris, então. Foste tu o culpado.
− Eu?! Eu avisei-te e mesmo assim beijaste-me.
− Que mentiroso! Foste tu que me beijaste.
− Ok. Mas tu provocaste-me e ainda correspondeste ao beijo.
− Está bem − admito enfadonha. – Os dois tivemos culpa. Vamos deixar-nos destas criancices.
− Estava a ver que nunca mais dizias isso! Vamos sair daqui e comportar-nos como adultos − sugere com um sorriso travesso.
− Sim, mas é melhor vestires alguma coisa antes. – Os meus olhos voltam a percorrer os abdominais claramente marcados no seu peito.
− Tens a certeza que é isso que queres?
Vacilo. Não, o que quero é passar as minhas mãos por cada um dos pequenos traços perfeitamente delineados do teu abdómen, apetece-me responder-lhe.
− Sim, tenho a certeza − respondo com os olhos completamente fechados, não vá eu mudar de ideias.
Embrenho os meus dedos nos curtos cabelos ainda molhados que ocultam a nuca do Salvador. As suas mãos puxam o meu corpo para mais perto do seu, como resposta. Arquejo quando as suas mãos mergulham por debaixo da minha t-shirt e massajam suavemente as minhas costas. Agarro firmemente os seus cabelos com medo de desfalecer.
As nossas bocas estão tão ou mais ocupadas do que as nossas mãos, que se dedicam uma à outra com exímia mestria.
Afasto o rosto do Salvador e abro os olhos, rendida à necessidade urgente de respirar. A escuridão que nos envolve, impede-me de ver com exatidão o seu rosto. Mas consigo perceber que a sua respiração está tão alterada quanto a minha.
Desço as minhas mãos até ao seu peito para conseguir sentir o batimento acelerado do seu coração sob a minha pele.
− Não sabia que tinhas roupa tua guardada na sala secreta − comento ao sentir a fina textura de uma t-shirt preta que o vi a vestir antes de sairmos da sala.
− É só para prevenir. Na eventualidade de incidentes como os de hoje. Para não ter de ir de propósito ao meu quarto trocar de roupa.
− O que achaste da história que contei às crianças? Sei que ouviste grande parte dela.
− O que posso dizer? Não me pareceu lá muito criativa, quase que ia jurar que já ouvi a mesma história, com pequenos detalhes alterados, em algum lado.
− Às vezes a vida real é tão ou mais mirabolante do que qualquer história imaginada.
− Mas tiveste que lhe dar um final.
− Sim, foi difícil. Dei à história o final mais óbvio e credível, mas não foi suficiente para as crianças.
− Eu gostei do fim que o Gabe inventou. Foi justo e inesperado. É isso que as pessoas esperam de uma boa história.
− Sim, mas fez-me pensar. Enquanto o 1º comandante respirar, estas pessoas não vão viver em paz. Será que uma vez livres, irão tentar fazer justiça com as próprias mãos?
− Não me parece. Eu conheço estas pessoas. São como se fossem parte da minha família. E nenhum deles sujaria as mãos com sangue de outra pessoa. Dão demasiado valor à vida para o fazer. Já viram a morte demasiado perto mais do que uma vez. Vão limitar-se a ser aquilo que foram até aqui: sobreviventes.
Lá está. Não será o típico "E viveram felizes para sempre", mas ao menos serão muito mais felizes lá do que aqui. Já será um grande progresso. Suponho que se possam contentar com isso.
− E podes dizer-me porque é que na tua história me decidiste intitular de "rapaz estranho"? – pergunta, beliscando-me suavemente uma parte das minhas costas. Sobressalto-me com o movimento inesperado. Quase que ia jurar que as suas mãos já se tinham fundido à minha pele de tão quietas que tinham estado até agora.
− Porque era o que tu eras para mim. Um rapaz extremamente misterioso, cheio de segredos e manhas, que parecia não sentir qualquer tipo de emoção.
− Ao menos agora sabes que a última parte não é de todo verdade.
No escuro não consigo perceber a aproximação do Salvador e, por isso, quando cola os seus lábios aos meus sou apanhada desprevenida. Mas não preciso de muito tempo para me adaptar às suas lentas investidas, que me fazem sentir derreter.
− Se sei! – exclamo completamente arrebatada.
− Mas se eu tinha esse nome na história, porque é que tu eras apenas a "rapariga"?
− Vieram-me inúmeras opções à mente na altura, mas nenhuma me pareceu apropriada.
− E que tal rapariga do cabelo de fogo?
− Só porque o meu cabelo é ruivo? – Agarro num cacho do meu cabelo, mas o escuro que nos envolve não me permite perceber se o Salvador repara nisso.
− Não, não só por isso. O fogo é capaz de atrair todos os olhares pela sua beleza, mas é também forte, determinado e praticamente indestrutível. Além do mais, faz com que os seres que se aproximem demasiado sintam um calor desmedido, o que faz todo o sentido tendo em conta que me deixas sempre a arder de desejo. – As suas mãos retomam a exploração da minha pele nua das costas e, por momentos, duvido se o fogo não será antes ele.
− Mas sabias que o fogo no planeta Terra foi uma das maiores causas de desflorestação? O poder dele é destrutivo. Acaba com tudo aquilo por que passa.
− Continuo a achar que a descrição te assenta que nem uma luva. O poder de que falas destrói, mas também fortalece. No planeta Terra usavam o fogo para cozinhar os alimentos, por exemplo. Ele era usado para o bem, mas também para o mal. Está nas tuas mãos decidir o que fazes com todo esse poder que reside dentro de ti.
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