Capítulo 44
Será que ele vem?
Devia ter vindo para cá antes do jantar, mas não consegui. Um grupo de crianças decidiu fazer do corredor que dá acesso ao piso inferior da nave um quarto de brincadeiras. Quando era criança também o fazia, por vezes. Se ocupássemos a grande sala central ou qualquer outro corredor, rapidamente corriam connosco e diziam que estávamos a perturbar. Isso não acontecia com o sossegado corredor que quase ninguém frequenta.
São só crianças, que mal tem? Poderia arriscar, cheguei a pensar enquanto as via a correr alegremente de um lado para o outro. Porém, a minha racionalidade impediu-me de seguir cegamente esse pensamento fugaz. A verdade é que as crianças são curiosas por natureza. A probabilidade de me seguirem ou de virem mais tarde a perguntar aos pais se também podiam ir ao piso inferior da nave como a "Aurora fez", era gigante. Quase de 100%.
Acabei por decidir entrar na capela vazia para os ficar a vigiar e aguardar, assim, pelo momento certo. Momento esse que nunca chegou. Sempre que se cansavam duma brincadeira, alguém se lembrava logo de outra ainda mais animada que a anterior. Uma hora depois, vi-me obrigada a voltar para o quarto, a torcer para que o Salvador pudesse aparecer depois do jantar.
E se ele pensa que eu mudei de ideias, que mais uma vez desisti de nós?
Começo a andar de um lado para o outro. De vez em quando, paro e fico a tentar perceber se o nível da água da máquina já baixou de uma forma percetível. A conclusão é sempre a mesma, claro. Todavia, tento enganar o meu próprio cérebro, entregando-lhe essa ridícula tarefa, para não entrar em desespero.
Porque é que não combinámos uma hora? Não houve propriamente tempo para isso, respondo a mim própria. Disse-lhe que voltava e depois fui-me embora, com medo de ser apanhada. Mas poderia ter gasto mais uns segundos. Não iria fazer diferença, ou ia?
Ouço uns passos atrás de mim. Será ele? E se não for?
Preparo-me mentalmente para um possível interrogatório. Para todos os efeitos, estaria aqui por mera curiosidade. Nada nos impede de visitarmos o piso inferior da nave. Nós, adultos, claro. A história com as crianças já é totalmente diferente. Existem inúmeras máquinas cá em baixo e o risco de se magoarem é demasiado grande.
Sim, apanharem-me aqui sozinha não é problemático. Conseguiria, facilmente, lidar com a situação.
Uma mão toca-me no ombro. Sobressaltada, viro-mo e peço por tudo o que é mais sagrado para que seja o Salvador e não outra pessoa qualquer.
− És tu! – Exclamo aliviada.
Envolvo o seu tronco robusto com os meus braços e pouso a cabeça sobre o seu quente e confortável peito. Ele não hesita e cerca-me igualmente com os seus.
− É claro que sou eu. – Consigo sentir as vibrações da sua voz grave a serenar cada célula do meu rosto. − Não estavas à espera que eu viesse? Nunca perderia a oportunidade de estar mais uma vez contigo, a sós. Por nada!
Olho para cima e procuro o seu rosto. Um azul eletrizante recebe-me prontamente.
Num movimento calmo e terno ele encosta os seus lábios aos meus. Todo o meu corpo reage com fervor ao seu contido gesto. Entreabro os lábios e deixo-o conduzir o beijo.
Sem pressa, ele explora docemente a minha boca. As investidas lentas e sucessivas fazem-me estremecer de desejo.
− Estive aqui mais cedo − confessa afastando o seu rosto do meu.
Atordoada tento obrigar-me a processar o que acaba de me dizer. Como é que ele espera que eu entenda alguma coisa do que ele diga, depois de me beijar desta forma?
− Eu não consegui vir − admito constrangida. – Digamos que estavam uns guardas bem pequenos e curiosos junto às escadas.
− O quê?!
− As crianças − esclareço. − As crianças brincavam no corredor e eu não pude descer. Fiquei uma hora à espera na capela e nada! Elas não saíram de lá.
− Se eu algum dia disser que quero ter filhos, lembra-me deste dia, por favor.
Um sorriso matreiro desenha-se no seu rosto.
− Isso quer dizer que não queres ter filhos?
− Criar um filho no meio deste ambiente não passa propriamente pelos meus planos. Seria egoísta da minha parte.
Ele tem razão. Como sempre. Contudo, até a Elisa sonha com isso.
Será assim tão errado querer ter pequenos seres que vamos amar para o resto da nossa vida? Um amor igual ao que os nossos pais sentem por nós. Um amor incondicional. Ajudá-los a crescer e a vencerem os seus medos. Ensiná-los a amar e a respeitar os outros... Mas e quanto a fazê-los felizes? Não será essa a parte mais importante? Aqui, a felicidade nunca é vivida no seu todo. É sufocada e controlada por rígidas regras que não fazem qualquer sentido.
Então, por muito tentadora que seja a ideia de ter filhos, vejo-me obrigada a concordar com o Salvador
− Sim, não seria certo.
Encosto novamente o meu rosto ao seu peito e deixo-me embalar pelo ritmo reconfortante da sua respiração. O silêncio que nos envolve é bem-recebido pelos dois. Sem palavras, agarrados um ao outro, parecemos dois amantes rendidos à espera de uma chuva de meteoros que mais ninguém parece ver.
− Como correram as coisas na enfermaria?
− Bem. Ninguém suspeitou de nada. A Maria mal olhou para mim, para dizer a verdade. E ainda bem. Temi que ela percebesse e estranhasse a minha alienação. Ou que, de alguma forma, detetasse a minha felicidade desmedida.
− E posso saber o motivo de tamanha felicidade?
Afasto-me repentinamente do Salvador para estudar a sua expressão. Um frio insuportável envolve-me todo o corpo, assim que o faço. Já é como se a sua proximidade e o seu calor me fossem tão familiares e tão essenciais como a minha própria respiração. Como se sempre tivesse sido assim. Como se sempre estivéssemos estado ligados.
− Não é óbvio?! – fito-o espantada. O seu rosto nada denuncia. Como pode ele fazer-me tal pergunta?! Será que para ele esta nossa proximidade não tem assim tanta importância?
− Não sei se é. Ainda há uns minutos atrás, não querias nada comigo. Isto foi tudo muito repentino e tenho medo que não passe tudo de um sonho. Ou que de um momento para o outro mudes de ideias.
− Não vou – disparo convicta. O brilho triste que encontro nos seus olhos dilacera-me o coração. – Tinha medo. Vivi aterrorizada durante demasiado tempo. Não com aquilo que sentia. Não com aquilo que era o meu presente, mas com aquilo que queria, que desejava, ansiava, fazer do meu futuro. Não com a óbvia felicidade que me esperava, mas com a sua breve tenacidade. Temia que ficando contigo, tudo à nossa volta desmoronasse, colocando-nos a nós dois em risco, mas também a todos os outros de quem gostamos.
− E já não é isso que pensas?
− Não podemos negar o óbvio. Esse risco continua a existir, eu sei que sim. Só que agora... digamos que o peso que atribuía a esse risco diminuiu drasticamente. E tudo graças... − O nome da Elisa quase me escapa pelos lábios. Mas há qualquer coisa em mim que me diz que o mais certo é manter o anonimato dela. Tudo o que partilhou comigo pareceu tão profundo e sincero, algo que lhe saiu da alma e que, provavelmente, nunca teve a força suficiente de partilhar com mais ninguém senão comigo. Sim, manterei a nossa conversa em absoluto sigilo. Se depender de mim, o Salvador nunca irá saber sequer que falei com a Elisa hoje, quanto mais o conteúdo da nossa conversa. – Tudo graças a um anjo.
− Um anjo?! – O Salvador olha ceticamente para mim.
− Sim. Um anjo − confirmo sorridente, satisfeita com a designação que arranjei para a Elisa e, ao mesmo tempo, divertida com a expressão confusa estampada no rosto do Salvador. – Um anjo levou-me a ver que esta era uma oportunidade única na vida e que o risco associado, apesar de grande, tem uma probabilidade de ocorrência muito reduzida.
− Uma probabilidade de ocorrência... hum... Estou a ver... Não sabia desses teus dotes estatísticos − comenta com júbilo. O seu sorriso parece iluminar todo o espaço que nos cerca.
− Mas há muita coisa que ainda não sabes a meu respeito.
− Ai sim?! – Com um pequeno passo, o Salvador encurta a distância que nos separa, reduzindo-a a praticamente nada. Apesar de muito pertos um do outro, nenhuma parte do nosso corpo se toca. − Como o quê?
− Se eu te contasse tudo de uma só vez, não teria nem metade da graça. Acho que vais ter de descobrir por ti próprio.
− Aceito o desafio... Com todo o gosto.
Num movimento impetuoso, o Salvador beija-me. Não é como o beijo de há pouco. Existe uma fúria, uma vontade de viver intensamente, de aproveitar o momento ao máximo, que é partilhada pelos dois.
Respiramos o ar um do outro, num beijo longo e ininterrupto. Todas as partículas do meu corpo vibram e começo a sentir-me a ponto de desmaiar. Não sei se por falta de oxigénio, se por excesso de produção de hormonas no meu organismo.
Talvez pressentindo o meu eventual colapso, o Salvador afasta lentamente os seus lábios dos meus. Sinto vontade de o agarrar pelo pescoço e obriga-lo a continuar aquilo que começou. Mas não tenho forças para isso, é como se todo o meu corpo estivesse anestesiado. Frustrada com a incapacidade do meu corpo, fixo os meus olhos nos do Salvador, talvez assim ele perceba o recado.
Um sorriso travesso aparece no seu estupendo rosto como resposta. Já percebeu, claramente, o efeito que tem em mim. Pouco me importa se pareço desesperada, desde que ele ceda a esta minha vontade urgente de o ter colado a mim.
Contrariamente a todas as minhas expectativas, ele limita-se a dar-me um breve e casto beijo e depois ajoelha-se à minha frente.
− O que estás a fazer?! – pergunto atónita.
− Aquilo que o meu avô disse que deveria de fazer numa situação como esta.
A sua expressão está, agora, séria. O rosto fechado e minuciosamente atento a todas as minhas possíveis reações. Parece nervoso.
Que raio espera ele que eu faça? Será isto um teste?
− Levanta-te, Salvador − peço, inclinando-me para o ajudar a subir.
− Não posso. Tem de ser assim − afirma ao resistir às minhas tentativas vãs de o fazer erguer.
− O que é que tem de ser assim?! Do que estás tu a falar?!
− O meu avô falou-me de uma tradição que havia no planeta Terra. A minha família foi das poucas que se manteve fiel a essa tradição, que caiu em desuso muito antes desta nave desembarcar. A ideia é que quando um homem gosta... muito de uma mulher deve-se ajoelhar perante a mesma e fazer-lhe a pergunta.
− Que pergunta?
Sem me responder, o Salvador pega docemente na minha mão direita. O seu toque é reconfortante e seguro. As faíscas que emanam das nossas palmas em contacto uma com a outra são quase visíveis. Todavia, é no azul eletrizante, que olha para cima obstinadamente fixo no meu rosto, que me concentro. De alguma forma, o olhar que me dirige, agora, tem mais força que qualquer gesto, qualquer palavra que alguma vez me foi dirigida. Porque olha ele para mim desta forma eu não sei. Mas dou por mim a retribuir o olhar, com a mesma intensidade. Não por simpatia, empatia ou compaixão. Não. Simplesmente, porque é o reflexo do que sinto por ele. E ainda não existindo palavras para o descrever, os nossos olhos vão comunicando, sem que percebamos ainda muito bem esta nova e estranha linguagem que parece ser tão natural.
− Aurora, aceitas namorar comigo?
− Tu queres namorar comigo?!
− Claro, senão não estaria a fazer-te esta pergunta. A questão é se tu o queres.
− Mas não poderemos fazer nada do que os namorados fazem: andar de mãos dadas pela comunidade, almoçar e jantar coladinhos um ao outro, beijarmo-nos descontraidamente na grande sala central depois de um longo dia de trabalho, abraçarmo-nos e tocarmo-nos quando e onde nos apetecer, sussurrarmos palavras doces no ouvido um do outro em plena reunião semanal... Não podemos fazer nada disso!
− Sim, tens razão. O tipo de namoro que te posso oferecer não é nada comparado com essa descrição. Mas podemos fazer deste piso o nosso mundo. Aqui, neste espaço, poderemos fazer tudo o que nos apetecer. E se tivermos apenas meia hora de um dia inteiro para estarmos juntos, prometo fazer de tudo para tornar cada pequeno segundo num momento único e especial. Quando os outros homens lá de cima pedem uma mulher em namoro, estão, na verdade, a dizer: "Posso ficar contigo à frente de todos os outros? Beijar-te e abraçar-te para que todos vejam que és minha?". Eu não te peço isso. É algo muito mais simples. Eu quero ficar contigo sempre que puderes e quiseres. É só isso.
− Se ao menos eu pudesse ficar contigo todos os momentos que eu quisesse...
− Isso não te posso oferecer − conclui cabisbaixo.
− Meia hora, dizes tu? Infelizmente, no que depender de mim, vais ter de me aturar um pouco mais de tempo do que isso. Achas que aguentas?
− Isso quer dizer que aceitas?
− Não fui suficientemente clara? – Sorrio em provocação. Como estou a adorar isto! – Quero que este seja o nosso mundo daqui para a frente. Quero viver aqui, do teu lado, sempre que puder. Porque querer? Querer, vou sempre.
O Salvador, radiante, levanta-se de um salto, sem nunca me largar a mão. O seu corpo quente é amparado pelo meu e os meus lábios recebem avidamente os dele.
− De certeza, que não te vai custar vivermos tudo isto em segredo? – pergunto quando volto a conseguir respirar.
− Aurora, eu tenho vivido toda a minha vida dessa forma. Acredita, vai custar-te mais a ti do que a mim.
− Dorme comigo − pede o Salvador sem interromper o movimento tranquilizador da sua mão sobre os meus caracóis.
− Nem há uma hora namoramos e já me fazes pedidos indecentes − comento beliscando o joelho fletido dele, sobre o qual havia pousado carinhosamente a minha mão há uns míseros minutos atrás. O corpo do Salvador estremece debaixo do meu. Não com o meu inofensivo ataque, mas com o riso genuíno e incontrolável que a minha resposta parece provocar-lhe.
− Prometo que nem te toco, se assim o quiseres − contra-argumenta assim que recupera o controlo do seu próprio corpo. Como que para exemplificar, afasta rapidamente as mãos. A mão direita deixa de me afagar docemente o cabelo. A mão esquerda deixa de estar enlaçada à minha, que repousa, agora, solitariamente, sobre o meu ventre. Contudo, as pernas dele continuam a ladear-me e o seu tronco serve ainda de suporte ao meu.
− Dormiríamos no mesmo espaço, mas sem nos tocarmos?! Qual o intuito, então? Até porque este espaço é extremamente confortável e acolhedor − acrescento sarcasticamente de olhos fixos no vazio que tenho à minha frente. Mesmo sem a ver, a imagem da estranha máquina que se estende por detrás de nós vem-me à memória.
− Poderia ver-te dormir, adormecer com o teu cheiro e acordar-te com doces beijos. Não te parece suficiente?
− Mais do que suficiente. – Estremeço só com a ideia. – Seria um sonho! Mas não passa disso, de um sonho. Não durmo sozinha ou já te esqueceste? Uma das raparigas poderia facilmente dar pela minha falta. E não ponho as minhas mãos no fogo por nenhuma delas. A não ser pela Analu, claro. Nela, sei que posso confiar cegamente.
− Sim, tens razão − murmura num fio de voz marcado pelo desanimo.
− Não fiques assim. – Viro-me o suficiente para o poder ver. Encosto confortavelmente as minhas costas à perna fletida do Salvador e estendo as minhas pernas sobre a sua outra, fletindo-as ligeiramente para não ter de suportar todo o meu peso neste homem gentil que me acolhe junto a si sem qualquer resistência. – Talvez um dia possamos vir a dormir juntos.
− Talvez?! – Os seus olhos arregalam-se de tal forma que sinto uma enorme vontade de rir. Não obstante, mantenho-me impávida e serena. – Para bem da minha sanidade mental e... − Hesita. Os seus olhos estudam-me o rosto à procura, talvez, de uma reação. Será isto uma espécie de um jogo? É suposto eu adivinhar o resto da frase? – E física, − completa num tom de voz mais sussurrado, − espero que isso um dia venha mesmo a acontecer.
− Continuamos a falar apenas de dormir, certo?
Sorrio ao vê-lo mover-se desconfortavelmente sobre a grande máquina que ampara grande parte do seu peso. Ambos sabemos que o desconforto que sente não se deve à inocente máquina, mas sim às palavras que trocamos, que de inocentes não têm nada. Eu, por outro lado, estou a adorar vê-lo assim, sem saber o que fazer ou dizer. Parece tão mais novo neste momento. Agora, sim, estou diante do jovem rapaz de dezanove anos e não do adulto de trinta em que a vida o obrigou a transformar-se. Pisamos um novo terreno. Os dois. Juntos.
− Claro − responde depois de clarear a garganta. – Lembras-te da noite em que dormimos juntos?
Aquiesço. Como me poderia esquecer? Foi nessa noite que entrei pela primeira vez no gabinete do 1º Comandante. A forma como me falou, as palavras que me disse, o olhar recriminador que me dilacerou por completo. Tudo isso ainda está tão fresco na minha memória, como se tivesse sido ontem. A dor é a mesma ou ainda maior depois de tudo o que descobri e vivi, entretanto.
− Foi tão estranho, − confessa com o olhar preso no fundo da sala. – Senti-me impotente, derrotado, revoltado. Queria poder ter-te defendido dele, mas sabia que não o podia fazer. Isso doeu mais do que tudo por que já passei. Mas ao mesmo tempo, − acrescenta voltando o seu deslumbrante rosto para mim, − senti-me o homem mais feliz do mundo por poder ter-te aninhada no meu colo. Por saber que confiavas em mim e que te sentias protegida nos meus braços. Como me tranquilizou poder tocar-te e dormir com o teu cheiro tão presente!
O Salvador acaricia o meu rosto ternamente. O seu toque, seguido duma revelação tão íntima, aquece todo o meu corpo. Gostaria que aquela noite tivesse tido o mesmo significado para mim, mas a verdade é que estava tão ansiosa, aterrada e exausta que adormeci sem aproveitar como devia a oportunidade de estar tão próxima dele.
Foi ele que me fez rir e também foi ele que me devolveu a esperança nessa mesma noite, poucos minutos depois da experiência mais assustadora de toda a minha vida. Ele descansou o meu coração o suficiente para que conseguisse adormecer em paz. E, por isso, sinto-me enormemente grata. Mas tendo em conta as suas palavras, o momento foi tão mais especial para ele do que para mim, que até me sinto culpada. Porém, nada posso fazer para alterar o passado. E sei que teremos novas oportunidades para estar tão ou mais juntos do que tivemos nessa noite.
Beijo-o. Beijo-o por gratidão por essa noite. Beijo-o para o compensar do sofrimento por que passou por minha causa. Beijo-o pela confissão que me acaba de fazer. Mas acima de tudo, beijo-o por ele ser como é.
− Não queria estragar este momento, mas tenho de ir. Não quero que estranhem a minha ausência.
− Tudo bem. Mas prometes que amanhã voltas? – pergunta-me ansioso.
− Sim. Quer dizer, − acrescento ao lembrar-me de algo, – prometi ao meu avô que ia à sessão de cartas amanhã, depois do jantar. Ele praticamente me obrigou. Disse-me que se eu não fosse, levava a sessão até ao meu quarto. Tive que me render, não tinha outra hipótese. Ele tem orgulho delas, sabes, dessas sessões. Vá-se lá saber porquê. Mas tu podias vir comigo, − sugiro, por fim, no tom de voz mais doce que consigo colocar.
− Lamento, Aurora, mas esse jogo não tem nada a ver comigo. Não gosto de partilhar e expor segredos, muito menos por um jogo.
− Já calculava − confesso. Sei que ele teve de passar a vida toda a esconder segredos. Isso faz parte da sua identidade. Mais do que ninguém, ele sabe a importância de se lutar para manter uma verdade oculta de todos, uma verdade que exposta poderia prejudicar inúmeras pessoas. Para ele, não passa de um estúpido jogo. Mas fico feliz por não mo dizer diretamente, afinal de contas, foi o meu avô quem o inventou. – Mas podias vir para me fazeres companhia. Eu também só vou ficar a assistir. Nunca joguei, e não faço questão de o começar a fazer agora.
− Pensei que a ideia era sermos discretos.
− E vamos ser. Pode ser apenas uma coincidência. Não seriamos os únicos a aparecer por lá para assistir. Há cada vez mais pessoas da comunidade interessadas nessas sessões. Pelo menos, poderíamos partilhar o mesmo espaço, mesmo que não nos pudéssemos tocar.
− Não seria credível. Todos sabem que eu não sou propriamente sociável. Além do mais, isso assemelha-se mais a uma tortura. Ver-te, estar no mesmo espaço que tu, e não te poder tocar. – A mão do Salvador procura rapidamente pela minha. Os seus dedos longos entrelaçam-se nos meus, criando uma viciante corrente de energia entre os dois. − Detesto a ideia.
Eu própria estou a começar a convencer-me disso, enquanto o Salvador se entrega com afinco e mestria à tarefa de tocar e acariciar cada pequena partícula da minha mão. Como é que isto pode saber tão bem? Quer dizer, ele está apenas a tocar-me na mão! Mas ao olhar-lhe nos olhos e ao sentir o calor da sua pele, não posso deixar de me sentir levitar. Sinto que poderíamos passar horas apenas assim.
− Então teremos de nos encontrar antes do jantar. Não há outra hipótese. Podíamos encontrar-nos na sala secreta.
− Sim, mas se não apareceres, vou ver-me obrigado a ir lá acima buscar-te. E não vão ser umas criancinhas que me vão impedir.
− Não vai ser preciso. Seria muito azar. Eu vou conseguir vir para cá. Agora tenho mesmo, mesmo de ir.
− Vais ao menos sonhar comigo?
− Não sei...é provável − respondo surpresa com a pergunta. Não é que eu mande nos meus sonhos. Porém, se pudesse escolher, seria, certamente, com ele que sonharia. − E tu, vais?
− Não tenho sonhado com outra coisa nos últimos tempos.
Enlaço-me nele e trocamos um longo e sentido beijo. É um beijo de despedida. Mas não é um beijo de "Até nunca", é um beijo de "Até já". E sabe-me maravilhosamente bem.
Depois de alguma relutância, o Salvador consegue largar-me e deixa-me partir. Percebo porque é que lhe custa tanto. Tem medo que eu não volte. Eu própria não consigo evitar sentir uma pontada de hesitação. E se nos descobrirem? E se este tiver sido o nosso último beijo?
No entanto, ergo a cabeça e enfrento a escuridão dos corredores frios e silenciosos que me esperam. Não consigo evitar sorrir. Porque apesar de todos os medos e dúvidas, encontrei alguém que me quer do seu lado em todos os momentos, quer esteja acordado ou num sono profundo.
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