Capítulo 40
− O senhor sabe que agora os check-ups só são obrigatórios de três em três meses, não sabe? – questiono gentilmente.
Abro a gaveta e tiro uma caixa branca. Quanto tempo passou desde a última vez em que a abri? Duas semanas? Não, foi exatamente há três semanas que o 1º Comandante informou a comunidade da nova regra, que foi, na verdade, proposta por mim. Também foi nesse dia que eu comecei a ler os diários da minha bisavó. O saldo desse dia, contudo, não foi lá muito positivo. Normalmente, recordo-o como o fatídico dia em que o Salvador perdeu o controlo e saltou para cima do Leandro e em que eu perdi todo o respeito e consideração que a comunidade tinha por mim.
− Eu sei, mas o meu caso é um bocadinho diferente, minha jovem – responde sombriamente.
Pouso a caixa sobre a cama da enfermaria e ajudo o Sr. Nicolau a sentar-se também sobre ela.
Sei ao que se refere. Para além da idade avançada, este homem de 79 anos está diagnosticado com Esquizofrenia, uma doença psicológica considerada altamente perigosa e incurável. Vê e ouve coisas acessíveis a mais ninguém senão ele. Foi há 7 anos atrás que foi diagnosticado.
Lembro-me do seu primeiro surto como se fosse hoje.
− Calem-se! Calem-se todos! – grita aterrorizado um homem que acaba de subir para uma das mesas centrais do refeitório. As pessoas sentadas à sua volta desviam-se sobressaltadas e levam consigo os tabuleiros para uma das pontas da mesa, aquela que lhes está mais perto.
Todos os presentes da sala se calam. Todos ficam atentos ao homem que se comporta de uma forma estranha. Também eu o faço, de repente, muito pouco interessada no recipiente quase cheio de comida que tenho diante de mim.
− Calem-se! Calem-se todos! – volta a gritar. Os seus braços golpeiam o ar incessantemente. – Não, eu não vos posso ajudar! Não posso! A culpa não é minha! Não é! – o seu tom de voz é agora mais urgente. Os olhos arregalam-se, o seu corpo treme violentamente. Está em choque, está em pânico. – Eu fiz tudo o que pude! – Grossas lágrimas começam a escorrer-lhe pelo rosto. – Eu não contei a ninguém, juro. Eu não contei a ninguém!
O homem cai pesadamente sobre os seus próprios joelhos. A mesa range e abana com a força em si investida, mas não cai, talvez por ele se encontrar no centro. Alguma da água contida nos poucos copos em cima daquela mesa é vertida sobre os tabuleiros.
Sussurros espalham-se por todo o refeitório. Eu não consigo perceber o que está a acontecer e, pelos vistos, não sou a única. Do que é que ele está a falar? E, mais importante ainda, com quem é que ele está a falar?
− Vocês estão bem, eu sei que estão – afirma, mas parece não ter certeza das suas próprias palavras. Soluça e arqueja por ar enquanto fala. As suas mãos tapam-lhe o rosto, mas sei que continua a chorar. − Então, deixem-me em paz – pede desesperado.
As suas mãos afastam-se do rosto e um olhar perdido, vazio, fita o ar à sua frente.
Fica imóvel.
Talvez os outros julguem que tudo terminou. Mas, de alguma forma, consigo antever que se enganam. Sei que é uma falsa serenidade.
Um, dois, três segundos se passam. Tento não pestanejar à medida que os longos segundos decorrem. Permaneço quieta no meu lugar, com os meus pequenos olhos pregados no rosto do homem. Mais um segundo avança e eu começo a vê-lo. Um súbito franzir das sobrancelhas, rugas que se acentuam em torno dos olhos e por toda a extensão da sua enorme testa, lábios que se entreabrem e mostram uns dentes fortemente unidos. A sua expressão vai contorcendo-se de raiva diante dos meus olhos atentos.
− Vocês não estão aqui! – brada precipitando-se agilmente para uma das extremidades da mesa. – Vocês estão lá! – Impetuosamente vai derrubando tabuleiro atrás de tabuleiro. Cada um provoca mais confusão que o anterior, embatendo fortemente no chão. − Vocês estão lá! Vocês estão lá! Vocês estão lá!
Antes de se dirigir para a outra extremidade da mesa e arruinar os restantes tabuleiros, também eles cheios com comida e água, dois guardas agarram-no fortemente pelos braços. O homem tenta bracejar, mas rapidamente percebe que é inútil.
Os seus pés vão pontapeando o ar, ocasionalmente, enquanto os guardas o arrastam pelo refeitório afora, talvez só para se recordar que, pelo menos, sobre o seu próprio corpo ainda detém algum controlo.
Não sei se foi a primeira vez que aconteceu. Todavia, foi a primeira vez que a comunidade o testemunhou.
Poucos dias depois, o 1º Comandante relatou que o Sr. Nicolau Andrade estava gravemente doente. "Não do corpo, mas da mente", acrescentou com voz firme e decidida. Descansou toda a comunidade ao garantir que não era contagioso e que a medicação e uma quase total reclusão no seu quarto iriam garantir que ninguém se magoaria. E eu, com apenas 10 anos de idade, comecei a perguntar-me se isso incluiria o próprio do Sr. Nicolau. Se também ele não se magoaria ao ficar sozinho e longe de todos nós. Ao ver as expressões aliviadas que me circundavam, percebi que era a única com tal preocupação.
Talvez fosse estranha, ou apenas tola, mas senti uma grande necessidade de cuidar desse homem. Acho que foi nesse momento que tomei a decisão de vir, um dia, a trabalhar no centro de saúde.
− Sente-se bem, menina? – Os seus olhos atentos perscrutam-me.
− Sim – apresso-me a dizer em resposta.
Olho para as minhas mãos que agarram firmemente o pequeno dispositivo eletrónico de análise ao sangue. Tento esconder a surpresa ao ver o resultado da análise, que pensava ainda não ter sequer realizado, a aparecer no ecrã. Tenho de ser mais cuidadosa. O meu inconsciente tomou conta da situação enquanto o meu consciente divagava por memórias do passado. Que tipo de enfermeira sou, se espeto uma agulha no braço de alguém num segundo e no outro nem sequer me lembro de o ter feito?
− Como se tem sentido durante estes últimos dias? – pergunto ao constatar que no sangue dele nada de anormal é detetado.
− Como de costume. Vazio. Distante... dos outros e de mim – relata como se estivesse a descrever algo tão insignificante como a cor e forma deste espaço.
Tremo com a sua resposta. Supostamente, é um bom sinal. Os medicamentos que toma estão a fazer efeito. São designados de supressores e inibem a vivência de fortes estados emocionais, mantendo o paciente num estado quase total de letargia emocional. Os seus pensamentos e ações passam a focar-se no presente, e o passado e o futuro deixam de ser considerados de forma consciente por quem consome estes supressores. Talvez impeçam os surtos de se manifestarem, mas não é apenas isso que afastam do Sr. Nicolau. Somos seres humanos. Somos feitos de memórias e emoções. Somos feitos do presente, mas também do nosso passado e futuro. Não será, então, um mau sinal aquilo que estamos a fazer? Não estaremos nós apenas a desumanizar este pobre e velho homem?
A Teresa já tentou convencer o laboratório de saúde a desenvolver um novo tratamento, quem sabe uma cura, para a esquizofrenia. Porém, enquanto existir apenas um paciente com esta patologia a bordo e os medicamentos atuais garantirem a sua sobrevivência e a dos restantes, nenhum esforço será feito, nem nenhum recurso será gasto nesse sentido.
− O que tem achado das novas refeições, Sr. Nicolau? – Se não posso fazer mais nada, ao menos posso afastá-lo da constatação do vazio dos seus sentimentos e trazê-lo para um mundo do qual não está privado: o das sensações. Pouso a campânula sobre o seu peito desnudo e franzino e este estremece com o frio.
Inspira e expira. Inspira e expira. Só depois reponde à minha pergunta.
− Estão bastante mais saborosas, não é? – Um ligeiro sorriso desenha-se no seu rosto. – Pensava que era impressão minha... – acrescenta num murmúrio.
Um som agudo, estridente e ininterrupto soa do altifalante por cima da porta da enfermaria. A sirene, constato. Sei que, neste momento, este mesmo som percorre todos os restantes espaços da nave. É um aviso. Um aviso para toda a comunidade se dirigir ao observatório.
Olho para o meu paciente que continua estático e sentado na cama como se nada fosse. Para ele não passa de um som. Não teme, nem deseja o que este possa eventualmente significar.
Por respeito a ele, continuo o meu trabalho. Finalizo o check-up que lhe estou a fazer ao ritmo que me é normal. Sem me apressar. Recuso-me a sair daqui e a deixá-lo para trás. Afinal de contas, isso é exatamente aquilo que temos feito, constantemente, a este homem durante sete longos anos.
Quando abandono a enfermaria para me dirigir ao observatório, alguns minutos depois, sinto o coração tranquilo e a consciência muito menos pesada, ainda que a ansiedade quase me corroa a alma.
Entro na enorme sala e não me surpreendo ao constatar que está apinhada de gente.
Este espaço é quase tão grande como a sala central, mas a sua forma ao invés de ser hexagonal é circular. Sendo um observatório, metade da superfície das suas paredes é de um material translúcido, permitindo visualizar claramente o espaço exterior à nave.
Todos os presentes se encontram de costas para mim e por isso nem se apercebem da minha chegada tardia. Alguns falam animadamente entre si, mas a maioria mantem-se em silêncio de cabeça erguida a fitar o horizonte. Não detenho o meu olhar na multidão por mais do que uns míseros segundos, também eu quero saber o que de tão importante ou impressionante se encontra lá fora para ter soado o alarme.
Uma enorme esfera achatada com magníficos e finos anéis embeleza a escuridão que a rodeia. A sua superfície parece ter camadas de diferentes tonalidades de amarelo que quase parece irradiar luz apesar de eu saber que não é uma estrela e que por isso mesmo não tem a capacidade de libertar radiação. Está tão perto que é ainda possível constatar a presença de uma das suas luas a orbitar em seu torno.
Já passámos por muitos corpos celestes e assistimos a alguns fenómenos astronómicos verdadeiramente impressionantes, mas ver um planeta como este de perto é, com toda a certeza, algo que não vou esquecer nunca. Quase parece que estou diante do próprio Saturno. Sei, no entanto, que não é ele, mas é quase como se fosse.
O meu coração começa a bater aceleradamente. Não pela beleza estonteante do planeta por que passamos, mas pela constatação do que significa avistar tal planeta. Agora sei em que zona do imenso Universo nos encontramos. Navegamos no Sistema Solar Paralelo. Não nos deparámos com os planetas idênticos a Neptuno e a Úrano, nem com nenhum dos planetoides que os antecedem, porém estamos próximos do planeta que é similar a Saturno. Isso significa que não podemos estar a mais de um mês de distância da nossa nova casa! E, mais importante ainda, que ela pode realmente existir!
Sinto algumas pessoas a passarem por mim para voltarem ao seu trabalho, mas não olho para perceber quem o faz. Não me interessa. Mantenho-me fixada no grande planeta inerte e estável, que me faz sentir flutuar.
Uma súbita tristeza cai sobre mim. A minha bisavó deveria de estar aqui, penso. Ela, mais do que ninguém, merecia estar aqui! Lutou bravamente para que este sonho se tornasse realidade. E, agora, parece que estamos tão perto disso. Mas também sei que ela não o fez por ela, fê-lo pelos seus descendentes, fê-lo pelo meu bisavô Elias e fê-lo, acima de tudo, pela humanidade.
− Aurora − a doce cadência da voz da minha mentora desperta-me para a realidade. Encontra-se mais perto de mim do que eu pensava, a uns meros 50 centímetros de distância. A multidão que ainda há pouco se estendia por esta sala, já dispersou quase toda. – Se quiseres, podes ficar aqui mais alguns minutos, eu e a Maria damos conta do recado.
Fito-a com curiosidade, sem conseguir perceber o intuito do convite. Talvez tenha percebido o quão fascinada fiquei com a observação deste planeta.
− Não é... − começo, mas interrompo-me a mim própria ao vê-la virar-se para trás. Perto da parede translúcida um homem forte e imponente concentra toda a sua atenção na imagem que se lhe apresenta à frente. Está de costas para nós e bastante afastado do sítio onde me encontro, visto que cheguei atrasada e não pude escolher propriamente um lugar com vista privilegiada, mas conseguiria reconhecer aquela silhueta em qualquer situação, em qualquer lugar. A sua postura rígida, inerte e imponente parece desafiar a de Saturno. Uma coisa é certa, a beleza e força de ambos é inquestionável. – Talvez fique mais uns minutos − afirmo contemplando ainda a pessoa que me fez mudar de ideias. – Obrigado, Teresa − acrescento ao vê-la sorrir de forma genuína.
− Ora, essa! Não tens de agradecer.
Assim que a última pessoa sai do observatório, eu avanço até ao local onde se encontra o Salvador.
− É muito idêntico a Saturno, não é? – questiona sem olhar uma única vez para trás. Saberá que sou eu? Fico em silêncio, sem saber o que dizer. Estou pasmada e nenhuma palavra parece querer sair. – Aurora, estamos quase a chegar.
− Como é que... − A estupefação em que me encontro impede-me de formular o resto da pergunta.
− Como é que sabia que eras tu? – O Salvador vira-se, finalmente, na minha direção. O seu sorriso chega-lhe aos olhos, que parecem conter o brilho que contemplei em Saturno. – Pelo teu cheiro. – O meu coração dispara. Subtilmente, procuro sentir o aparente cheiro único que me envolve, que é tão facilmente detetável e reconhecível. Sou agradavelmente surpreendida ao apenas encontrar no ar a fragância forte e inebriante do Salvador. – E, claro, pelo teu reflexo, − acrescenta com um sorriso malandro.
Pelo meu reflexo? Claro! Olho para a parede translúcida que se estende atrás do Salvador e lá está ele. O meu reflexo. Os meus longos caracóis ruivos, soltos, a emoldurarem um rosto pequeno e oval. A cor dos meus olhos ou as minhas sardas não são claramente visíveis, mas tudo o resto é.
− Raios! Sou tão ingénua! – Reclamo entre risos. – Por momentos, pensei mesmo que me tivesses identificado através do meu cheiro.
− Não o fiz, mas julgo que o conseguiria fazer.
− O meu cheiro é assim tão horrível?
− Muito pelo contrário − admite. Os seus olhos faiscam intensamente à procura de algo nos meus. Está a tentar ler-me. A tentar perceber o que estou a pensar, o que estou a sentir. Sinto-me exposta sob o seu olhar. Inebriada pelas palavras e por tudo o resto que recebo dele, mesmo sem nos tocarmos.
Aproximo-me e coloco-me do lado dele, de frente para o planeta por que passamos. É uma forma de escapar daquele azul eletrizante que tem a estranha capacidade de me tornar vulnerável. Quando ele me olha assim, sinto que é ele quem tem o controlo do meu corpo e da minha alma.
− Quase ninguém percebeu o que isto significa − comento amargamente. A minha mão direita colada à parede fria e transparente, a única coisa que me separa do Espaço aberto que sustém o peso da nave e do planeta que me lembra Saturno. Pelo canto do olho consigo ver o Salvador a virar-se também na direção da grande esfera lá fora. – Não sabem a verdade. Pensam que é só mais um planeta. Talvez até se apercebam das semelhanças com Saturno, mas nunca irão relacionar isso com o planeta que tanto procuramos. Estão todos entorpecidos, tal como o Sr. Nicolau.
É isso, não é? Não estão medicados, mas é como se estivessem. O Sr. Nicolau ao olhar para este novo planeta pode admirar a sua beleza, o seu tamanho, até mesmo, eventualmente, lembrar-se de que já antes vira um planeta idêntico nos livros, porém não pode perceber o significado que este carrega. Tal como a comunidade, que sem ter conhecimento da teoria do Sistema Solar Paralelo, está tão às escuras como ele.
− Sempre te preocupaste com ele. Desde o início.
− Com quem? – Viro-me para ele confusa.
− Com o Sr. Nicolau. – O Salvador imita o meu movimento e ficamos de frente um para o outro. − Lembro-me da forma como olhaste para ele quando, há cerca de sete anos, ele teve aquela crise no refeitório. E também da tua expressão indignada quando o 1º comandante relatou o que tinha sido decidido para o futuro daquele homem, que todos temiam por agir de forma estranha, menos tu.
− Mas como é que...?! Estavas a olhar para mim, nessa altura?! Não percebo.
− Não só nessa altura, antes disso também – o seu tom de voz é doce e quente. As palavras saem naturalmente, sem preocupações, sem hesitações. Está a ser verdadeiro e a abrir-se pela primeira vez, para mim. Não consigo evitar um sorriso, não sei se por reação às palavras que me dirige ou pela constatação de um Salvador livre, sem receios, nem reservas relativamente a mim.
A Olívia tinha-me dito que o Salvador olhava para mim desde sempre, que não era algo de agora. Mas disse também que outros rapazes o faziam. Insinuou, na verdade, que todos o faziam. E, por isso, não acreditei. Não faria sentido. Mas e se ela tivesse razão no que dizia respeito ao Salvador? Não é isso que ele me está a tentar dizer?
− Desde quando? – Formulo a pergunta ao ganhar coragem.
− Desde a primeira vez que te vi. Tu nunca olhaste para mim, mas... − Passa a mão nervosamente pelo cabelo, num gesto demorado, como se dessa forma as palavras pudessem surgir mais facilmente. – Eu olhava. Havia qualquer coisa em ti que me fascinava. Qualquer coisa que fizesses, qualquer coisa que dissesses... Um simples gesto, conseguia prender a minha atenção. Não sabia porquê. Não sabia o que me prendia a ti. Mas depois percebi. Percebi que não eras como eles. Que te incomodavas, que te preocupavas e que te indignavas com pequenas ou grandes coisas que achavas serem erradas. Estava obcecado por ti.
− Estavas... Já não estás? – sussurro timidamente. O meu coração parece que vai sair pela boca a qualquer momento.
− Não, não estou. – Baixo a cabeça, ligeiramente desiludida. Não é justo exigir de alguém a sua atenção constante em mim, quando eu mal reparava na sua presença no passado. Oh! Mas como eu queria que ele, agora mais do que nunca, quisesse ficar do meu lado o máximo de tempo possível! – Agora, é algo diferente. – Vejo os seus pés a aproximarem-se dos meus. O calor e aroma do seu corpo ficam mais intensos. Consigo ver o movimento do seu peito que procura por ar tão frequentemente como o meu. – Aurora – a sua mão toca gentilmente no meu queixo e ergue-o para que consiga ver o meu rosto. – Agora, é algo mais profundo. Aurora, eu abdicaria da minha própria vida por ti. Até consegui suportar estar longe de ti durante estas últimas semanas. Doeu, mas eu aguentei. Mas uma vida onde tu não existas de todo, isso eu não iria suportar.
Dou um passo na sua direção, sem saber o que fazer, sem saber o que pensar. Obedeço simplesmente a um desejo pulsante que crescia cada vez com mais força dentro de mim. Um desejo de o ter perto de mim.
O Salvador envolve a minha fina cintura com o seu braço direito e puxa-me ainda para mais perto dele, preenchendo o seu corpo com o meu. Num movimento terno, mas decidido. A minha respiração torna-se irregular.
Pouso as minhas pequenas mãos sobre o seu robusto e quente peito. A fina t-shirt branca que separa as nossas peles, não me impede de sentir o conforto do seu calor e o acelerado bater do seu coração.
Os seus olhos detêm-se demoradamente sobre os meus lábios. Ouso olhar também para os dele, que se entreabrem assim que o faço. Fecho os olhos e sinto a sua boca na minha. Um beijo delicado e subtil. Não o afasto, nem o quero fazer.
A sua mão esquerda agarra-me carinhosamente o rosto e uma eletricidade desenfreada percorre todo o meu corpo. Abro a boca sobre a dele e o beijo torna-se mais intenso, mais urgente. A sua boca explora a minha como se mais nada existisse, como se mais nada importasse, a não ser eu e ele. A mão que detinha sobre o meu rosto, desce até ao meu pescoço estreito e acomoda-se aí. Todo o meu corpo estremece. Respirar torna-se uma tarefa cada vez mais exigente, mas não quero afastar os meus lábios dos dele. Ainda não.
As minhas mãos deslizam suavemente do seu tronco até ao pescoço e entrelaçam-se aí, para não ser apenas ele a prender-me a si, mas também eu a prender o seu corpo ao meu.
Entrego-me ao longo e maravilhoso beijo com toda a minha alma. Um beijo que nunca ninguém saberá que existiu, senão nós dois e um planeta que se assemelha a Saturno.
− Não − protesto ofegante. As minhas mãos descem para os ombros do Salvador. Ambos respiramos pesadamente. – Isto é um erro. – Tento afastá-lo de mim, mas sem sucesso. Os seus olhos fitam-me dilacerados sem entenderem o que se passa.
O que se passa é que agi por impulso. O meu coração e o meu corpo aceitaram o beijo, mais do que isso, ansiaram por ele, desejaram-no intensamente. No entanto, a minha cabeça diz-me que não podemos seguir por este caminho. É arriscado e não nos vai levar a lado nenhum. Um futuro comigo e com o Salvador juntos, a tentar construir a nossa própria família, não pode existir. A comunidade nunca o irá permitir. Não temo as possíveis e imprevisíveis consequências por mim, mas pela minha família e pelo Salvador. Não quero que sofram, de maneira alguma.
− Tu correspondeste ao beijo − retruca confuso. As suas duas mãos agarram-me firmemente pela cintura, impedindo-me de fugir do conforto do seu calor. – Senti-te estremecer com o meu toque, tornei a tua respiração ofegante e o teu coração batia ao ritmo acelerado do meu. Não posso ter imaginado isso tudo.
− Foi apenas um beijo − minto, desviando os meus olhos dos dele. – Desculpa, mas não sinto nada por ti, a não ser amizade. – As suas mãos perdem a força e eu aproveito para me afastar dele. A ausência do seu corpo, torna o meu frio, débil e pequeno, muito mais do que ele alguma vez já fora. Minto, quando não gosto de o fazer. Afasto-o, quando nunca o quis mais perto de mim do que agora. Mas é por uma boa razão. Não posso investir numa relação que não tem qualquer futuro. Seria masoquista se o fizesse. – Quero que continuemos a ser amigos, apenas isso. E, para isso, é melhor esquecermos que este beijo aconteceu.
− Pedes-me o impossível. Para ti pode não ter significado nada, mas para mim foi... − Aguardo ansiosamente para que continue a frase, mas não o faz. O que terá significado o beijo para ele? Terá gostado? Terá alguma vez beijado outra rapariga antes de mim, ou terá sido também o seu primeiro beijo? Sendo que nunca o vi próximo de nenhuma rapariga da comunidade, mantendo-se sempre afastado e quieto no seu canto, suponho que a resposta à última pergunta seja previsível. Gosto da ideia de ter sido eu a primeira. – Não vou esquecer. Nunca.
O Salvador sai do observatório apressado, como se tivesse um compromisso inadiável e eu estivesse a retê-lo aqui contra a sua vontade. A verdade, é que não tento impedi-lo, nem sequer vou atrás dele.
Olho à minha volta e encontro uma sala vazia. O planeta continua visível apesar de mais distante. Também ele se está a afastar de mim.
Não foram muitas as vezes que visitei este espaço. Vim sempre que a sirene tocou, que não foram mais do que trinta vezes. E a minha bisavó e o meu pai, por vezes, traziam-me para aqui, quando o observatório estava vazio, para me falarem das estrelas, dos planetas, dos buracos negros, de toda e qualquer espécie de matéria ou energia que os fazia vibrar de entusiasmo. Não aprendi nem um terço do que me tentaram ensinar. Pareciam-me coisas demasiado distantes, demasiado quietas. Mesmo os cometas, que atingiam velocidades impressionantes, me pareciam carentes de alma, de vida. Ao contrário das pessoas, que sempre me surpreendiam, sempre despertavam a minha atenção e curiosidade. "As pessoas são mais difíceis de ler do que as estrelas", disse-me muitas vezes a minha bisavó. Suponho que esteja certa, mas sempre gostei de um bom desafio. Só que agora dou comigo a fugir de um.
Acho que de hoje em diante, nunca mais vou olhar para esta sala da mesma forma. Sempre que aqui estiver, vou lembrar-me do Salvador. Vou lembrar-me do que senti quando me tocou, quando me agarrou. Mas, acima de tudo, vou lembrar-me do meu primeiro beijo e de todas as sensações que conseguiu despertar em mim.
E o beijo finalmente chegou! Demorou, ein? Mas a Aurora continua a complicar as coisas, garota difícil esta! Mas não desesperem, momentos bem in love estão prestes a chegar em catadupa.
Até Domingo.
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