Capítulo 37

Querido diário, consegui! Demorei cerca de seis meses, mas consegui!

A teoria do Elias é, simplesmente, genial! É tudo o que sempre quisemos. Uma nova vida, num novo planeta. E agora tenho dados suficientes para poder afirmar que a teoria tem uma probabilidade de 95% de estar correta.

O meu marido era um excelente biólogo, mas nunca se contentou em ter um curso apenas. Tirou química, física, geologia, e só não tirou mais, porque... não teve tempo para isso.

Acontece que eu não tenho a sede de conhecimentos científicos que ele tinha. Nunca tive. Não obstante, a minha organização, concentração e espírito crítico fizeram-me chegar longe na carreira da física. Isso e uma estranha particularidade que tenho: identificar, reconhecer e interpretar rapidamente padrões que passam despercebidos à maior parte da população. E a estrutura física e química do Universo é isso mesmo! Um enorme aglomerado de padrões lógicos relacionados ou não entre si. Foi dessa mesma constatação que surgiram as constelações. E era esse mesmo olhar analítico e matemático que faltava na teoria do Elias.

Durante este tempo também me tenho andado a perguntar o motivo pelo qual o Elias manteve esta teoria em segredo. Quer dizer, porque é que não me disse nada? É uma teoria complexa e exigente. Ele deve ter demorado anos para a conseguir deixar no ponto em que eu a encontrei. Facilitou-me muito o trabalho, mas deixou-me a pensar que havia um grande segredo entre nós, sabe-se lá desde quando.

O Elias passou os seus três últimos anos de vida em permanentes altos e baixos. E, durante esse tempo, nunca esteve a 100%. Quando o nosso filho nasceu, ele deixou a ciência, a carreira, os estudos, tudo numa prateleira bem lá no fundo do armário, inacessível para todos, mas, principalmente, para ele próprio. Ele dizia que mais nada fazia sentido, a não ser a sua pequena família perfeita. E que se não podia tornar o mundo de todas as outras pessoas melhor, pelo menos ia fazer de tudo para que o mundo de nós os três o fosse. E ele conseguiu, sem dúvida. Mesmo nos dias em que estava de cama, ligado a inúmeras máquinas, praticamente inconsciente no nosso quarto, inacreditavelmente, ele arranjava as forças necessárias só para nos ver sorrir.

Por isso, eu sei que ele desenvolveu a teoria muito antes desse tempo. Talvez até antes de descobrir que todos os seus órgãos tinham decidido lutar contra ele, e deixarem, lentamente e progressivamente de funcionar. Na altura em que recebemos o diagnóstico já sabíamos de que doença se tratava. É a doença do século XXII. Devido à temperatura elevada e à falta de oxigénio as células do nosso corpo começam a degenerar-se e a não conseguirem multiplicar-se em número suficiente para garantir o total bom funcionamento do nosso corpo. Mais tarde ou mais cedo todos nós passamos por essa doença. E o tempo que demoramos até lá chegar só depende do nosso sistema imunitário e do nosso idiossincrático e ainda enigmático ADN. Ou seja, estamos dependentes da sorte.

Independentemente da altura em que o Elias se dedicou ao desenvolvimento desta teoria, acho que sei porque não me contou nada.

O meu pai era um idealista, que tal como o meu marido, também acreditava na salvação da humanidade. Desenvolveu três teorias que supostamente iriam ser a resolução de todos os nossos problemas. Com cada nova teoria, que ele relatava a mim e à minha mãe, uma enorme euforia e esperança preenchiam os nossos corações. Mas, rapidamente, esses sentimentos eram substituídos por uma enorme desilusão, preenchendo o tudo com o nada. Ficava apenas a sensação de um vazio.

O Elias sabia disso. Sabia o quanto eu sofria com essas falsas esperanças. Talvez por eu não ser idealista, ou, pelo menos, não tanto quanto eles. Sempre os invejei por isso, por não desistirem. Por não esmorecerem a cada novo obstáculo. Por acreditarem e lutarem pelos impossíveis.

Deste modo, sei que guardou cada vitória, cada avanço na sua teoria só para si, não por egoísmo, não por falta de confiança em mim, mas por me amar. Por não me querer ver desiludida. Por não me querer ver sofrer. De certo, pensou: "Contar-lhe-ei tudo, mas só quando tiver a certeza." Só que nunca chegou a tê-la. Morreu sem saber se a sua teoria era real.

Por agora, despeço-me querido diário, voltarei assim que tiver novidades. E espero que não leves a mal, mas gostaria de deixar para ele as últimas palavras desta passagem:

"Elias, meu amor, conseguimos! Juntos, nós os três, a nossa pequena família perfeita, descobrimos uma nova casa para a humanidade."

Até à próxima,

Celeste Bacelar


Uau! Ela conseguiu mesmo! Não pode ser uma coincidência, certo? O que eu sei é que se não for, isso significa que se estamos aqui hoje, nesta nave, é por causa deles. Dos meus bisavós. E isso é, simplesmente, inacreditável.

Eu tenho que ler mais. Eu preciso de ler mais. Tenho que ter a certeza absoluta que a minha família foi, de alguma forma, por muito pequena que seja, importante na história da comunidade.


Querido diário, já te sentiste no auge da felicidade, percebendo de repente que tudo valeu a pena e que a tua vida tem um propósito, quando, de um dia para o outro, te vês no fundo de um poço, de mãos e pés atados, sentindo-te impotente, com um vazio no peito, sem saberes como voltar a subir, como voltar a respirar? Talvez não, porque afinal de contas não deixas de ser papel. Se fosses humano, compreender-me-ias? Ou serei eu a única a fazer estas viagens emocionais extremistas?

Quando o meu pai me contava das suas teorias e mais tarde vinha a perceber que não iriam dar em nada, sentia-me assim. Com a morte do Elias, também foi algo do género. E, entretanto, achava que nunca mais iria experienciar essa queda livre de emoções. No entanto, ontem, voltei a senti-lo novamente.

Estive numa reunião com a equipa responsável da NASA. Talvez não me tivessem recebido, se eu e o Elias não tivéssemos conquistado tanto prestígio no mundo da ciência. Não é que tivessem largado tudo para me receber, tive que aguardar um mês. Isso deu-me tempo para preparar os relatórios e a apresentação para os conseguir convencer. Porém, falhei redondamente nessa missão. Só que não era uma missão qualquer. Era a missão!

As palavras exatas do Thomas New, atual líder do departamento científico da NASA, foram: "Isso seria o mesmo do que procurar uma agulha no meio de 10.000 toneladas de fardos de palha. Não, seria ainda mais difícil do que isso. Espera mesmo que alguém invista tempo, dinheiro e até a própria vida numa possível miragem? Só um louco o faria!"

Aparentemente, para a NASA não é suficiente ter uma teoria que seja estatisticamente significativa, porque, neste caso, estamos a falar duma percentagem de erro de 5%, associada a uma percentagem de risco acima dos 50%. De facto, tendo em conta as condições das naves que a NASA tem atualmente, seriam necessários cerca de 100 anos para chegarmos ao novo planeta, o que significa que muitos morreriam pelo caminho. Segundo eles, todos morreriam.

Disse-lhes que não tínhamos outra opção. A Terra já não nos oferece segurança e proteção e daqui a uns anos nem vida nos conseguirá oferecer. Marte está a ser explorado há anos, mas ainda não é capaz de criar nem suster vida por si próprio. Se vamos morrer de qualquer forma, mais vale investir o nosso tempo num planeta que possa oferecer aquilo que tanto queremos e precisamos, mesmo que quem venha a usufruir disso não sejamos nós, mas, sim, a nossa descendência.

Não me ouviram é claro. Saí da sala a gritar a plenos pulmões que estavam a ser idiotas e que estavam a matar a humanidade com essa decisão egoísta, e garanti-lhes ainda que iria fazer de tudo para levar a minha avante. Ao fechar a porta ouvi Thomas New a sussurrar aos colegas que eu era louca e todos eles limitaram-se a concordar em uníssono.

Serei mesmo louca em acreditar nesta remota hipótese? Será sequer possível? Será que alguém iria querer embarcar nesta viagem sabendo que, muito provavelmente, nunca iria chegar a conhecer o novo planeta? Eu iria querer, porque o meu filho poderia ter essa hipótese e o meu neto. E, quem sabe, o meu bisneto.

Sim, certamente, que o faria. Só resta saber como.

Estou decidida a arranjar uma solução, pelo Elias, pelo meu filho e pelos seus futuros descendentes.

Até à próxima,

Celeste Bacelar


Conseguiste mesmo, não foi, bisavó? Conseguiste dar-nos uma oportunidade de vida. A mim e a todos os que estão aqui nesta nave. Não sei como, mas lá deste o teu jeito. Estamos vivos e de boa saúde, graças a ti. Será possível orgulhar-me ainda mais de ti?

Agradeço-te muito bisavó. Obrigado por seres louca.



− Não achas que já está na hora do meu anjo voltar? – pergunta-me a Teresa que interrompeu o que estava a fazer no computador e olha agora fixamente para mim.

Estamos sozinhas na enfermaria a analisar um novo relatório que chegou do laboratório de saúde. Quer dizer, ela está, porque eu estou com a cabeça bem longe deste mundo.

− O que queres dizer com isso? – O meu corpo todo treme. Não quero que ela perceba que existe alguma coisa de errado comigo. Não quero que me pergunte no que eu estava a pensar, porque aí terei de mentir. − Eu estou bem aqui, olha. Do teu lado.

− Sim, estás. Ou melhor, o teu corpo está. Não estás aqui por inteiro. E não é só hoje. Ultimamente, tens andado bem ausente.

− Peço desculpa... Eu... − hesito. O que é que eu lhe posso dizer? Que o meu mundo desabou? Que já nada faz sentido? Que só me apetece ler os diários da minha bisavó, porque esta vida que me deram não me interessa? – Tem sido complicado − limito-me a responder. Complicado é um eufemismo, mas não quero preocupar a minha mentora.

− Acredito. O Salvador era importante para ti, não era? Tenho reparado que se andam a evitar.

Anuo, simplesmente. Se tudo se resumisse apenas ao Salvador... Seria tudo tão mais fácil! Mas o que está em causa aqui é algo bem mais profundo. É a minha identidade. É a minha vida inteira!

− Guardaste bem esse segredo. Sempre que te perguntei pelo Salvador, reagiste com indiferença, como se não sentisses nada por ele. E afinal... Mas eu entendo. Já reparei que a comunidade não gosta lá muito da vossa proximidade.

− É apenas uma estúpida regra − protesto dando um pontapé na secretária com força suficiente para fazer o ecrã fino do nosso computador estremecer. Felizmente que estava sentada, senão o impacto do movimento teria sido maior.

− Meu anjo... − a voz da Teresa ainda é calma, apesar de ver no seu olhar alguma surpresa relativamente à minha reação claramente exagerada. – Mesmo que penses isso, não o podes dizer. Sabes que estou do vosso lado, mas nós não temos poder nenhum para mudar as regras. E andar por aí a protestar, não só não vai adiantar, como poderá trazer consequências negativas para ti.

Eu sei disso. Por isso, é que me tenho mantido isolada. Não quero perder o controlo e acabar por fazer algo de que me arrependa. Se nem a minha bisavó conseguiu manter o controlo quando a NASA se recusou a ajudá-la e ainda desvalorizou a teoria que deu tanto trabalho aos meus bisavós, como é que eu haveria de o conseguir?

Claro, as situações são diferentes. Nós somos duas pessoas diferentes. Porém, a essência é a mesma. Fomos as duas desprezadas e maltratadas apenas por acreditarmos e defendermos algo diferente. Só que eu tenho que lidar constantemente com essas mesmas pessoas que me olham de lado e me julgam, ao contrário da minha bisavó.

− Teresa, − começo quebrando o silêncio que se instalara entre nós, − quem é que achas que criou estas regras? Quer dizer, quem é que criou tudo isto?

− Bom, não sei. Nunca tinha pensado nisso. Julgo que terá sido o 1º comandante inicial. Miguel Serrano, era o nome dele. Mas estamos a falar da criação de uma vida alternativa, de um novo mundo. E a não ser que esse homem se assemelhasse a Deus, não penso que o tenha conseguido sozinho. Estarão muitos homens por detrás disto − acrescenta apontando com as duas mãos para as paredes que nos rodeiam.

− E mulheres? Achas que estará alguma mulher por detrás disto tudo?

− Talvez, é provável. Seria bom se estivesse, não?

Queria dizer-lhe que sim.

Espero mesmo que a minha bisavó tenha contribuído de alguma forma para esta nossa realidade. No entanto, não quero que ela tenha nada a ver com as regras que regem a nossa comunidade, porque se ela tiver, não sei se serei capaz de continuar a amá-la.



Entro no quarto apressada e suspiro de alívio quando percebo que se encontra vazio. Corro para a minha cama e pego no diário da minha bisavó, que se encontra debaixo da minha almofada, exatamente onde o deixei.

Esta é a minha parte preferida do dia. A única onde consigo respirar normalmente, na verdade.

Sento-me na minha cama, que protesta com o meu peso, e com o diário aberto sobre as minhas pernas volto a voar para bem longe desta realidade que me envolve e tenta sufocar todos os dias.


Querido diário, tenho uma excelente notícia para te dar. Se tudo der certo, havemos de estar dentro de uma nave em direção a um novo mundo completamente inexplorado pelo ser humano dentro de alguns anos.

Pois é, eu disse-te que não iria desistir. Estou a tentar ser mais como o meu Elias. A pensar constantemente: "Se ele estivesse cá, como é que ele agiria?". Acho que isso me está a ajudar. Ironicamente, isso faz-me sentir mais livre.

Tu não sabes, mas eu e o Elias ganhámos bastante dinheiro com as nossas últimas investigações e descobertas. E se já não erámos pobres antes disso, depois só ficámos milionários. Sempre pensei que era dinheiro a mais. Nunca fomos pessoas de vícios, nem de gostos extravagantes. Então partilhámos uma vida simples, comprando apenas o estritamente necessário.

Acho que já começas a adivinhar a nova utilidade que arranjei para o dinheiro que tenho a acumular no banco. Sim, vou ser eu a louca a investir nesta viagem da humanidade para a sua nova casa. Já contratei a minha própria equipa de investigadores para conseguirmos desenvolver um protótipo de nave que permita que cheguemos sãos e salvos ao nosso destino. Fiz questão que todos estivessem tão interessados e entusiasmados por este projeto e, mais do que dispostos, desejosos de embarcar, literalmente, nesta viajem comigo. Até encontrar os meus dez fantásticos colaboradores, tive que ouvir muitos nãos. Mas o que importa é que consegui.

Um deles já trabalhou para a NASA como engenheiro mecânico durante quinze anos, mas despediu-se, porque, segundo ele, estava farto de trabalhar em projetos que investiam consecutivamente num planeta que insistia em não colaborar. "Marte nunca nos vai levar a lado nenhum, só vai fazer com que permaneçamos eternamente num planeta que nos está a matar lentamente", proferiu cabisbaixo antes de eu lhe fazer a minha proposta. Depois disso tive a certeza que ele iria fazer parte da equipa e fiquei felicíssima com isso. Ele pensava como eu, e isso era o mais importante. No entanto, não posso dizer que a sua experiência na NASA também não seja exatamente aquilo de que precisamos.

Quando penso nos dias e no caminho que ainda temos pela frente, sinto-me balançar. Estremeço, não pelo simples medo do fracasso, mas por medo de ser tudo em vão, e não conseguirmos um projeto viável a tempo de salvar a humanidade.

Neste momento, mais do que nunca, vou precisar de ti, para partilhar todos os avanços e recuos desta aventura que só agora começou.

Até à próxima,

Celeste Bacelar

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