Capítulo 35
Boas notícias, a partir de hoje, "Aurora" vai entrar numa fase mais acelerada. Passarei a publicar dois capítulos por semana. Ainda sem dias definidos. Hoje colocarei um capítulo duplo para comemorar esta nova fase.
Nas imagens acima temos a Aurora e a Olívia.
− Acabei de ficar enjoada − oiço a Olívia protestar assim que me sento no meu lugar habitual do refeitório. – Existem pessoas que não percebem mesmo quando não são bem-vindas.
− Estás a referir-te a mim, Olívia? Por acaso fiz-te algum mal? – pergunto irritada. Isto era mesmo a última coisa que me faltava.
Tenho reparado nos olhares e comentários desaprovadores constantes que a Olívia me tem lançado nos últimos dias, mas tenho preferido evitar confusão. O problema é que, neste momento, não me sinto capaz de simplesmente ouvir e calar. Eu não lhe fiz nada! Não há razão alguma para ela me tratar da forma como me tem vindo a tratar. Se a nossa relação já era má, agora parece estar a encaminhar-se para um gigante buraco negro.
− Não te faças de santa, Aurora! Agora que todos viram quem tu és de verdade, ninguém quer estar do teu lado. Na verdade, eu sempre soube. Nunca me enganaste!
− Ai sim?! E posso saber quem sou eu de verdade? – questiono amargamente. O sabor da comida até me parece, por momentos, ligeiramente azedo.
− Uma sonsa, mentirosa, traidora, irresponsável. Queres que continue? Porque a lista ainda é grande.
Ela só pode estar a fazer de propósito! Se o que ela quer é irritar-me, está a conseguir.
− Isso é o que tu pensas! – grita a Analu em minha defesa. Na sua expressão vejo que está tão ou ainda mais enfurecida do que eu. – Lá porque tu pensas assim, não significa que todos pensem como tu.
− Não te metas, Ana Lúcia! – Resmunga a Olívia. − A conversa não é contigo.
− Tudo isso só porque sou amiga do Salvador? – questiono antes que a Analu volte a atacar. Por muito que ela me queira proteger, não posso deixar mais ninguém sair prejudicado por minha causa. Eu não sou assim tão fraca como todos parecem pensar!
− A quem é que tu queres enganar? É óbvio que vocês não são só amigos! Ele deve ser mesmo muito bom na cama!
− Já chega! – brado. Levanto-me da mesa e cerro os punhos de cada lado do meu corpo. Esta é a estratégia do Salvador, talvez funcione comigo também, penso. Já não falta muito para que lhe salte para cima. – Se disseres mais alguma coisa contra mim, ou contra o Salvador, eu... eu...
− Tu o quê? Bates-me? Aparentemente, a agressão é contagiosa. Já te estás a comportar exatamente como o teu amiguinho.
Embato com o meu punho direito sobre a mesa, com força suficiente para derrubar um pouco do conteúdo do meu prato praticamente intocado. Mesmo sem olhar na sua direção, percebo que a Olívia estremece com o meu gesto inesperado. Talvez todos os presentes da mesa o tenham feito, não me admirava nada.
Em completo silêncio, viro costas a tudo, à Olívia, aos meus amigos, à comida, a todos os presentes no refeitório, e dirijo-me para o meu quarto.
Perdi a fome, mas algo me diz que perdi um pouco mais do que isso.
Já nem sei há quanto tempo estou aqui fechada no meu quarto a fazer uma reflexão profunda de um assunto, que não me parece levar a lado nenhum. A única conclusão a que cheguei foi que das duas, uma. Ou a minha sorte esgotou-se e não existem mais recargas. Ou quando a sorte nos abandona uma vez isso cria um ciclo vicioso do qual é muito difícil de se sair. Uma coisa é certa, estou de mãos e pés atados.
Basicamente, parece que já não posso fazer nem dizer nada sem com isso provocar o caos à minha volta. Na verdade, a minha mera existência, neste momento, parece, por si só, contribuir para esse desfecho.
Já ninguém olha para mim como uma simples rapariga, uma sombra no meio de tantas outras. A Olívia tem uma certa razão. Hoje, a comunidade, praticamente, inteira quando olha para mim não vê alguém inofensivo. Muito pelo contrário. Recriminam-me e temem-me. Têm medo de mim, porque já perceberam que sou capaz de colocar os meus ideais e interesses à frente dos da comunidade. De seguir os meus instintos e as minhas regras e não aquelas que dizem que devo seguir, só porque sim. Só que eles não veem o que eu vejo. Se eles ao menos parassem, nem que fosse um segundo, para pensar, talvez percebessem que não sou eu que estou errada, mas, sim, estas normas descabidas que todos defendem cegamente.
− Troco esta refeição deliciosa pelos teus pensamentos.
Sobressalto-me ao ouvir a voz do Salvador, que quebra o silêncio valioso que amparava a minha mente e a deixava viajar a uma velocidade estonteante por entre incontáveis pensamentos.
Encontro-o, descontraidamente, recostado sobre a porta fechada do meu quarto. De alguma forma, conseguiu entrar sem eu me dar conta de nada. Há quanto tempo estaria ele a observar-me?
Tem um recipiente com comida na mão direita e a sua mão esquerda ampara-lhe o estomago, como se este pudesse cair. O gesto não me parece nada natural, mas ignoro. A minha barriga estremece de antecipação, preparando-se já para iniciar o processo da digestão antes mesmo de eu ter sentido sequer o cheiro da comida.
− Como é que soubeste? – questiono ao sentar-me na borda da minha cama, pousando os meus pés descalços no chão frio do quarto.
− A Ana Lúcia contou-me tudo.
− Só podia... − protesto.
Sei que a Analu não faz por mal, mas podia, pelo menos, de vez em quando, fazer aquilo que eu lhe peço. Ela esteve aqui no meu quarto ainda há pouco. Insistiu, insistiu e voltou a insistir na ideia de que eu tinha que desabafar com alguém. Acontece que eu não queria nem ver, nem falar com ninguém. Então acabei por expulsá-la do quarto. Talvez não tenha sido a atitude mais correta, afinal de contas o quarto não é só meu. Mas eu pensava que ela tinha entendido a mensagem. Ninguém é ninguém! Por vezes, ela consegue ser mais teimosa do que eu.
− Ela pediu-me que viesse falar contigo e que te trouxesse o jantar.
− Ninguém te viu a vires para aqui?
− Não te preocupes com isso. Eu sou o mensageiro, ou já te esqueceste? – Um sorriso malandro ilumina-lhe o rosto e eu sinto uma vontade urgente de reduzir a imensa distância que nos separa. – Posso sentar-me aí? – acrescenta, como se soubesse exatamente aquilo que eu quero.
− Não posso dizer que não, o que trazes aí é, exatamente, aquilo de que eu preciso. Estou esfomeada.
− Da próxima vez come e só depois discutes − sugere entre risos.
− Que belo conselho! – O Salvador senta-se do meu lado, o que faz o colchão ceder ligeiramente com o seu peso. – Acontece que não tem grande valor, quando a própria pessoa que o dá não o segue − contra-argumento ao lembrar-me do incidente ainda tão recente com o Leandro e o Matias.
O Salvador estende-me o recipiente com a comida e eu, sofregamente, agarro nele, desesperada por preencher o vazio que ocupa o meu estômago.
− Então, agora já podes contar-me porque é que tu e a Olívia discutiram? – pergunta depois de se assegurar que levei comida suficiente à boca para não desfalecer.
− Ela ofendeu-me − respondo simplesmente, mais preocupada em comer do que em falar de um assunto que está mais do que arrumado.
Não posso continuar a torturar-me eternamente. De certo, era isso mesmo que ela queria. Que eu ficasse a remoer as suas palavras, dia após dia. O problema é que a opinião dela pouco me importa. E, sinceramente, tenho que começar a dar menos importância ao que a comunidade pensa de mim. Caso contrário, a minha vida vai tornar-se num verdadeiro inferno.
− Só isso? Essa miúda insuportável já te ofendeu variadas vezes e tu nunca fizeste nada. Tem de haver mais alguma coisa.
− Admito, exagerei. Foi apenas o acumular de coisas... − Pouso a colher no recipiente, já quase vazio, e olho para o Salvador. Preciso do seu azul eletrizante, mais do que nunca. − Sabes o que eu mais invejo da antiga vida na Terra? É que todos os dias se podiam ver novos rostos, falar com novas pessoas e começar do zero... pessoas que não te julgam, porque não te conhecem de lado nenhum. Aqui isso é impossível. Sinto-me apertada, sufocada. Ninguém aqui me dá o benefício da dúvida. Como é que é suposto eu me sentir bem num sítio onde ninguém me quer do seu lado, onde ninguém me quer sequer ver? Como?
Lágrimas ameaçam surgir dos meus olhos. Tenho que fazer um esforço tremendo para as tentar conter.
− Eu quero... − murmura o Salvador sem largar os meus olhos humedecidos. − Quero-te do meu lado, quero-te ver todos os dias. E cada vez mais quero isso – admite convicto, afastando com a sua mão quente uma lágrima que se soltou no meu rosto com as suas palavras. Sinto um calafrio provocado pelo seu doce toque. – Eu sei que é difícil, mas não lhes ligues. Agarra-te às pessoas que são importantes para ti, às pessoas que nunca te irão julgar, nem virar as costas. Consegues fazer isso?
− Não... não sei... Se ao menos pudesse ir para a sala secreta, estar com aquelas pessoas que não me olham assim.
− Tem que ser, Aurora. Não podemos arriscar... Mas eu tenho aqui algo que é capaz de te fazer sentir um pouco melhor.
O Salvador coloca a mão direita por debaixo da sua t-shirt e, pouco-a-pouco, revela o que me parece ser um livro.
− É um dos diários da minha bisavó! – grito eufórica ao vislumbrar a lombada arroxeada com o número um bordado a branco.
− Bem me parecia que ias gostar − profere sorridente. − Assim vais poder sair desta nave por uns momentos, nem que seja apenas através das palavras da tua bisavó. Julgo que este seja o primeiro, estou certo?
− Sim − respondo ao trocar o recipiente vazio pelo diário que ele tem nas mãos. – Nem acredito que te lembraste de me o trazer! Ele vai salvar-me de toda esta confusão em que me meti.
− Peço desculpa por isso. Se não te tivesses aproximado de mim, nada disto teria acontecido – a voz dele é fria e distante.
− Não digas isso! Eu não me arrependo. A nossa aproximação pode ter trazido coisas más, mas também trouxe coisas muito boas. Tu estás arrependido?
Que pergunta idiota! É claro que está. Eu posso ter crescido com a situação, descoberto algumas verdades, ganho novos amigos... Mas e ele? O que é que ele ganhou por se ter aproximado de mim? Só problemas e preocupações!
− Não − responde-me simplesmente.
Provavelmente não quer dizer mais nada para que eu não me aperceba de que está a mentir. Porém, prefiro fingir que ele disse mesmo a verdade.
Querido diário, confesso que não resisti e aqui estou eu novamente. Quando dei por mim, já estava com uma caneta na mão pronta a partilhar com as tuas páginas mais um pouco de mim e da minha vida.
Agora que o Elias já não está mais do meu lado, há tantas coisas que deixaram de fazer sentido. E outras começaram a ganhar uma maior relevância. É como se, de repente, eu estivesse a ver a vida através de outras lentes.
Hoje, quando acordei, não tive vontade de ir trabalhar. Entrar na empresa onde eu e o Elias trabalhámos durante anos, sem ele, não faz sentido.
Foi ele que me apresentou ao mundo da ciência, foi ele que me convenceu a entrar nessa viagem de sonhos que magicamente se podem tornar realidade. Construímos máquinas e engenhos que ninguém nunca pensou que poderiam um dia vir a existir. A magia da física, da química, da biologia, da matemática e de muitas outras ciências tornaram isso possível. Quem diria que um dia se ultrapassaria o problema da escassez de água potável? É verdade, foi a nossa empresa a construir a máquina geradora de água e foi o Elias que descobriu a fórmula para as moléculas de água se autorregenerarem, tornando-a num recurso sem fim.
No entanto, não é apenas isso. Também não me apetece ter de lidar, constantemente, com os comentários desnecessários que são proferidos supostamente para o teu bem, mas que tudo o que fazem é lembrar-te do que perdeste. Ou com as perguntas ridículas do tipo "Está tudo bem contigo?", quando é óbvio que não está. Como poderia estar, se perdi o companheiro que escolhi ter para o resto da vida? Ou ainda com os olhares avaliadores que procuram por qualquer mínimo sinal de que estás arrasada, só para te poderem jogar isso na cara. Pior, só mesmo o sentimento de pena que parece existir só para te sentires ainda mais em baixo. Eu não quero que tenham pena de mim! Preferia mil vezes que todos me ignorassem, mas sei que isso não vai acontecer.
Nesse sentido, até pode ter acabado a minha licença, mas eu fiz questão de ligar para a empresa a informar que nunca mais iria voltar. O meu patrão ainda me tentou dar a volta, porém era escusado. Eu não queria uma licença maior, umas férias de uns meses ou até de um ano... Eu só queria nunca mais voltar.
Não me vou arrepender, acredita em mim. Sei que este é o caminho que eu tenho que trilhar. Sem trabalho, vou poder eu própria tomar conta do meu pequeno Hélio.
Antes ele ficava com uma baby-sitter. Contudo, recorrer a esse recurso é algo muito dispendioso. Gastava mais de metade do meu salário para pagar o dela. Aliás, essa é uma das profissões mais bem-pagas atualmente. Com a taxa de mortalidade infantil a aumentar de dia para dia, já não é seguro deixar uma criança na creche ou até na escola, onde as epidemias se espalham como a manteiga sobre uma frigideira a ferver. O sistema imunitário delas não é forte o suficiente para lutar contra todas as doenças que se proliferam a uma velocidade inacreditável pelo mundo fora. Isso fez com que o valor atribuído ao trabalho das pessoas que se deslocam a nossa casa para tomar conta das nossas crianças aumentasse.
Hoje em dia, o ensino é feito através das novas tecnologias e é aconselhado que não exista mais do que três crianças a partilhar o mesmo espaço. É claro que famílias mais pobres não têm outra hipótese, por isso é que ainda continuam a existir algumas escolas e creches em funcionamento por todo o mundo.
Felizmente, eu tenho dinheiro mais do que suficiente para não trabalhar o resto da minha vida e ainda para garantir a saúde e bem-estar do meu filho.
O Hélio, agora, é tudo o que eu tenho. Quero viver por ele e para ele. Mais nada importa. Se antes tive a força e o desejo de mudar este mundo degradante, hoje nada disso tenho em mim. Quero apenas tornar o meu filho no Homem que o poderá fazer. No Homem que poderá salvar a humanidade ou morrer a tentar, tal como aconteceu com o pai dele.
O nome do nosso filho foi escolhido pelo Elias. Quando lhe contei que estava grávida, ele ajoelhou-se aos meus pés e disse: "Um milagre! É isso que trazes para este mundo com esse pequeno ser. Se for rapaz chamar-se-á Hélio, o sol que vai guiar o caminho da humanidade. Se for rapariga será Aurora, o nascer de um novo dia, quem sabe de um novo mundo. Ele ou ela farão a diferença. Sei que sim! Eu sinto". Eu limitei-me a assentir.
Nessa altura, o Elias já estava no início da sua doença terminal e já não tinha muitas esperanças de conseguir vir a mudar o mundo, por isso é que naquele momento decidiu depositar o resto que ainda tinha no nosso filho. Inconscientemente, talvez eu também o tenha feito.
Na verdade, não sei se ele vai conseguir ou não trazer a luz necessária para salvar a humanidade, mas vai, de certo, ser, apenas, ele a iluminar a minha vida.
Até à próxima,
Celeste Bacelar
Estou de olhos fechados, mas o sono não chega. As palavras da minha bisavó ainda estão demasiadamente acesas na minha mente. A verdade é que não me quero desligar delas. Enquanto ocupar todos os meus recursos cognitivos com a vida da minha bisavó, não tenho que me preocupar com a minha própria vida.
É estranho pensar que o meu nome tenha sido escolhido por um familiar que nunca cheguei a conhecer. Contudo, foi isso que aconteceu, não foi? A minha bisavó teve um rapaz, que por sua vez, também teve um rapaz. Só o meu pai teve uma filha: eu. A minha bisavó viu em mim a oportunidade de concretizar o desejo do meu bisavô. Afinal, o meu nome já estava decidido muito antes de eu nascer.
O problema é que quando ele sugeriu esses dois nomes (Aurora e Hélio) estava a pensar na esperança de um novo dia, na salvação da Humanidade, e isso já foi conseguido. Ainda o meu avô Hélio era criança, já esta nave saíra do Planeta Terra em busca de uma nova casa para a espécie humana. Então nem eu, nem ele fomos, ou seremos, aquilo que o meu bisavô imaginou um dia que viríamos a ser. Então porque é que a minha bisavó, sabendo de tudo isto, quis, na mesma, colocar-me esse nome? Ela tinha feito uma promessa relativamente ao nome do filho, nada mais.
Mas talvez eu consiga compreender. Talvez ela tenha gostado do nome. Ou talvez o meu nome lhe lembre do meu bisavô. De qualquer das formas, gosto do facto da minha história ter começado há muitos anos atrás, não no seio desta comunidade, mas entre as árvores e os rios do Planeta Terra.
Oiço alguém entrar no quarto e mantenho-me quieta e de olhos fechados. Finjo que durmo, seja essa pessoa a Olívia ou até a Analu. Não me sinto preparada ainda para enfrentar a realidade, prefiro continuar a deambular pelas árvores e os rios que foram testemunhas do inicio de quem eu sou.
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