Capítulo 33
Ficou um clima um bocado estranho no quarto depois da Analu se calar. Estar com o Salvador a sós ou no quarto secreto é uma coisa. Eu não fico à vontade com ele, nem ele comigo quando estamos fora da nossa zona de conforto. Eu sei que a Analu é minha amiga, mas ela não percebe a minha relação com o Salvador. Para dizer a verdade, quase ninguém percebe. E será que eu própria percebo?
Assim, sentindo o mesmo que eu, o Salvador não demorou muito a acabar a sua refeição e a ir embora do quarto. Poucos minutos depois, segui-lhe o exemplo e também eu saí, informando a minha amiga de que tinha mesmo que ir falar com os meus pais.
− Avó?! Também estás aqui? – pergunto admirada ao entrar no quarto dos meus pais. A minha avó está sentada do lado do meu pai e a minha mãe de frente para eles, os três em cima da cama.
− Eu pedi aos teus pais para também estar presente nesta conversa.
− E o avô?
− Está numa daquelas parvas sessões de jogo que ele organiza. Mas pediu para que lá passasses depois.
− Senta-te aqui, filha − pede a minha mãe indicando o lugar ao lado dela.
Obedeço. Sento-me de pernas cruzadas e limito-me a ficar ali, especada. Alterno o olhar entre o meu pai, a minha mãe e a minha avó. Quem será que vai começar com o sermão? E será que os meus pais contaram à minha avó o que viram no meu quarto? Não é que tenham visto grande coisa. Mas para quem vê de fora, pode ter parecido algo totalmente diferente da realidade.
− Não ficaram chateados, pois não? – questiono. Se eles não conseguem começar, talvez seja por, afinal de contas, não me conseguirem perdoar por ter escondido a verdade deles. − Por não vos ter contado do Salvador − esclareço ao ver os olhos confusos do meu pai.
− Não acho que fosse algo que precisasses de esconder de nós, − explica o meu pai, − mas eu compreendo. Se sentiste que era uma coisa que querias guardar só para ti, tudo bem. Eu próprio já passei por isso.
− Mas a verdade acaba sempre por vir ao de cima − acrescenta tristemente a minha mãe.
− A Helena tem razão, Aurora − diz a minha avó. Os seus olhos de âmbar, que me fazem sempre lembrar os do meu pai, fixam-se nos meus. – E a tua relação com o Salvador não é uma verdade qualquer. Estão muitas pessoas contra a vossa proximidade, temendo que a vossa amizade se torne em algo mais.
− Não sei porquê! O que haveria de tão errado se eu e o Salvador fossemos mais do que amigos?
− A nossa comunidade rege-se por regras, princípios... − responde a minha avó. − Existe um sistema muito bem definido, que nos diz sempre o que podemos e o que não podemos fazer. A hierarquia existe por alguma razão, e nós temos de a respeitar. Era como se um dia uma simples funcionária do refeitório se pusesse a comandar a nave. Desordem total. Cada um tem o seu papel e não existe forma de o negar ou de o trocar com o de uma outra pessoa.
− Não vejo como é que uma simples relação entre duas pessoas pode provocar algum mal a alguém, muito menos a uma comunidade inteira.
− Aurora, conheces a história de Romeu e Julieta? – interroga a minha avó.
Nunca antes ouvi tais nomes. Talvez sejam antigos moradores da nave. Ou será uma história de um livro, como aquele que a minha bisavó me deu?
Olho para os meus pais e vejo uma centelha de reconhecimento nos olhos deles. Mas nos olhos da minha mãe vejo um pouco mais do que isso. Uma certa angústia que não sei se veio com a menção à história desses tais Romeu e Julieta ou se já lá estava antes. Contudo, seja qual for a história, eles parecem conhece-la bem.
− O Romeu e a Julieta... − continua a minha avó ao ver-me acenar negativamente com a cabeça, − eram apenas dois jovens quando se apaixonaram perdidamente um pelo outro. Foi uma paixão, um amor, tão arrebatador que não conseguiam deixar de pensar um no outro. Quando descobriram que as suas famílias se odiavam de morte, já era tarde de mais, já não se conseguiam separar. Viveram um breve romance secreto, até se casaram sem que ninguém desconfiasse disso. Mas depois tudo começou a dar para o torto. Queriam obrigar a Julieta a casar com outro e a única forma que ela encontrou para isso não acontecer foi fingir a sua própria morte, entrando num sono profundo que duraria quarenta e duas horas. O problema é que o Romeu não sabia que a Julieta não estava realmente morta e acabou por se suicidar. Ao acordar e ver o seu amado sem vida, a Julieta também se matou.
− O que tem essa história a ver comigo e com o Salvador?
− Sempre adorei esta história, desde pequena. Nunca mais a esqueci. Li-a inúmeras vezes, quando ainda estava no Planeta Terra. Contei-a também aos teus pais antes de se casarem. Parecia que a história deles ia no mesmo rumo que esta que te acabei de contar. Os pais da Helena recusavam-se a aceitar a relação entre os dois e ameaçaram-na, inclusivamente, de cortar relações com ela se o fizesse. Aconselhei-os a não se casarem, porque, sem os pais, era impossível a Helena ser feliz. Teimosa, a tua mãe achou que a felicidade já não residia junto dos pais, mas sim junto do meu Pedro. – A minha avó olha ternamente para o meu pai. – A tua mãe perdeu algo assim que tomou essa decisão. Não uma coisa qualquer, uma coisa bastante importante para qualquer um: as pessoas que a criaram. Não terminou em tragédia, é claro. Mas poderia ter terminado.
− Continuo sem perceber...
− É fácil, Aurora. A tua mãe tinha duas pessoas, não quaisquer pessoas, é claro, mas eram apenas duas pessoas que se oponham à sua relação com o teu pai. Tu e o Salvador têm quase uma comunidade inteira contra um possível envolvimento romântico entre vocês. É praticamente impossível de a vossa história, se enveredar por esse caminho, não terminar em tragédia.
Sinto todos os meus ossos congelar, assim que percebo o raciocínio da minha avó. A minha cara empalidece ligeiramente. Todo o meu sangue me parece fugir. Suores frios percorrem todo o meu corpo.
Sinto-me a ponto de desmaiar, perder todas as forças que ainda me restam.
Depois de tudo o que passei hoje, perceber que uma relação amorosa com o Salvador no futuro pode ser mais complicada do que a minha teimosia me permitia ver, não sei se vou conseguir aguentar em pé por muito mais tempo. Uma coisa é ele não me querer dessa forma. Podia doer, mas eu teria de aceitar. Outra completamente diferente é todos os outros que estão à nossa volta não nos quererem juntos.
Só quero dormir. Dormir e acordar apenas quando toda esta névoa de realidade terrível se dissipar. Cair num sono profundo, tal como essa Julieta de que a minha avó me fala.
− Porque é que me estás a dizer isso, avó? – sussurro, quando ganho forças para tal.
− Porque quero alertar-te enquanto ainda não te envolveste demasiado. – Aproxima-se de mim e acaricia-me o cabelo indomável. Também ele se recusa a querer obedece-la. − Minha pequena, não posso ficar calada a ver-te entrar em pleno espaço aberto sem qualquer fato de proteção. Olha para trás e fica, não te lances para o perigo. Eu sei que és uma Bacelar, isso nota-se, mas, desta vez, não te arrisques.
− E se eu conseguir arranjar esse tal fato de proteção? – pergunto esperançada. Sinto uma pequena lágrima a escorrer-me pelo rosto. Está sozinha, sem nenhuma outra lágrima para lhe acompanhar neste difícil percurso. Eu não quero ser como ela... Mas a minha avó está enganada. Ela não me está a alertar tão a tempo quanto pensa. Eu e o Salvador podemos não ter nada um com o outro, contudo o que é que eu faço aos sentimentos tão fortes que batem dentro do meu peito. − Tem de haver uma forma. Qualquer coisa.
− Não existe, querida. No vosso caso, não existe.
Abraço-me a ela e tento convencer-me de que não é verdade. Que a minha avó não sabe todas as verdades do mundo. Então, talvez haja esperança. O problema é que, neste momento, também eu desconheço essa verdade que eu tanto precisava de encontrar. E ninguém me garante que eu alguma vez a vá sequer encontrar.
Gostaria de aproveitar este espaço para avisar que lancei um novo livro no wattpad. "A Bela Redoma" é um romance distópico baseado na história de "A Bela e o Monstro". Se estão a gostar de Aurora, aconselho vivamente a leitura deste novo livro.
Todas as terças-feiras sairá um capítulo de "A Bela Redoma" e aos domingos um capítulo de "Aurora".
Sinopse: Cem anos depois da última grande guerra, que tornou a vida na Terra insustentável, uma redoma foi construída numa província de França para proteger a humanidade restante dos perigos das radiações mortais e da atmosfera contaminada. Uma sociedade igualitária foi instalada com sucesso no lugar de uma sociedade retrógrada e discriminatória. Todos têm os mesmos direitos, todos têm os mesmos deveres, exceto a realeza, que tem a árdua tarefa de manter tudo no seu devido lugar.Liberty é uma jovem altruísta que dedica a sua vida à família. Desde a morte da mãe, quando era ainda uma criança, que toma conta de sua irmã mais nova, fragilizada por uma doença sem cura, e de seu pai, que se limita a deambular pela cidade noite e dia. Mas a vida dela muda radicalmente quando é selecionada para ocupar o lugar de princesa, junto ao belo, mas implacável príncipe de Villeneuve. Obrigada a viver uma vida numa mansão mergulhada em segredos, Liberty irá descobrir que a beleza interior tem a força impressionante de mudar o mundo.Depois de inúmeras versões do clássico "A Bela e o Monstro" de Madame Villeneuve, publicado em 1756, chega agora uma versão futurística que não deixará ninguém indiferente.
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