Capítulo 30
Respiro fundo antes de abrir a porta do refeitório.
Receio um pouco o que vou encontrar do outro lado. Sei que toda a gente vai estar a comentar a última novidade do dia. A nova insurreição da jovem Bacelar.
Assim que abrir esta porta todos os olhos vão cair novamente sobre mim.
Eu não gosto disso, mas gosto menos ainda de pensar que o Salvador vai estar lá. Do outro lado desta porta. Frio e distante, ainda mais depois do que acabou de acontecer ainda há uns minutos atrás. Depois de ele ter fugido de mim.
Penso se não seria melhor ir embora. Fico tentada a dar meia volta e sair dali para me refugiar no conforto do meu quarto. Mas eu não quero fugir, não quero tentar evitar uma coisa que mais tarde ou mais cedo vai ter que acontecer.
Decidida, abro a porta e preparo-me mentalmente para o cenário que se vai desenrolar à minha frente. Já passei por isto antes, não pode ser assim tão difícil.
Contudo, nada me podia ter preparado para aquilo que encontro diante dos meus olhos.
− Resume-te à tua insignificância! Não percebes que não vales nada! – grita o Matias depois de cuspir para o rosto do Salvador.
Estou a cerca de 10 passos do cenário mais aterrador a que já assisti.
O Matias e o Leandro estão de frente para o Salvador, que se encontra encurralado entre os dois e o armário dos tabuleiros. Vejo o Salvador com as mãos contraídas em punhos cerrados, cada uma delas de um lado do seu corpo. O único sinal de raiva que vejo a emanar dele. Os olhos continuam frios e indecifráveis. A posição do seu corpo não denuncia nem vontade de se defender, nem vontade de atacar os seus oponentes. A questão é: porquê? Ele aparenta ser fisicamente mais forte do que os dois juntos, e, contudo, nunca usa essa força. Para quê treinar, para quê pôr-se em forma se não para se defender? Achará ele que não é capaz? Que toda a comunidade vai ficar contra ele? Uma coisa eu posso garantir, eu nunca ficaria.
Avanço rapidamente na direção dos três. Em poucos segundos, posiciono-me à frente do Salvador.
Fico frente-a-frente com o Matias e o Leandro, escudando o Salvador com o meu próprio corpo.
− Estão muito enganados − cuspo agressivamente as palavras como se me estivessem a queimar na garganta. – O Salvador vale muito mais do que vocês os dois juntos. Vale muito mais do que qualquer um aqui dentro! – brado, fazendo questão que todos os presentes ouçam as minhas palavras.
− Mas... O que vem a ser isto? – pergunta o Leandro confuso. Vislumbro no Matias o mesmo olhar atordoado do amigo, mas este limita-se a ficar quieto e calado no seu lugar, e quase o vejo recuar um passo quando toma consciência de toda a situação. – Agora estás do lado dele? Desde quando é que são tão amiguinhos?
− Vocês não têm nada a ver com isso! – respondo defensivamente.
Sinceramente, agora já é tarde demais, penso. Não dá mais para esconder a proximidade que eu e o Salvador temos. É demasiado óbvio agora. E ainda bem que assim o é. Já estava farta de só poder falar com o Salvador às escondidas de todos.
– Mas se querem tanto saber... − começo, recuando alguns pequenos passos e pondo-me do lado do Salvador. Troco cumplicemente um olhar com ele. Um olhar que diz tudo. Que diz que, independentemente do que acontecer, eu vou estar sempre do lado dele. Como se fosse a coisa mais normal do mundo aproximo a minha mão da dele, que relaxa rapidamente com o meu toque e se entrelaça na minha. – Eu e o Salvador somos amigos e vou fazer de tudo o que estiver ao meu alcance para que nada, nem ninguém o magoe.
− E eu que pensava que o Sal era um antissocial! Não sei o que viste nele! Não passa de um bloco de gelo, ninguém quer estar do lado dele – protesta o Matias, visivelmente ressentido.
A mão do Salvador começa a apertar a minha com força. Eu sei, eu sinto que ele está a lutar contra todas as suas forças para não fazer nada.
− Eu estou. Eu estou do lado dele. E se estar do lado dele é incompatível com continuar a falar contigo...continuar a dar-me pacificamente contigo, então, não preciso de pensar nem duas vezes. Eu escolho o Salvador.
O sangue volta a correr-me pela mão. Sinto todo o corpo do Salvador a relaxar ao meu lado. Entre as nossas mãos corre uma corrente elétrica incontrolável, que me faz querer voltar-me para ele. Fixar-me apenas nos seus olhos e em mais nada. Mas não posso afastar o meu olhar fulminante do Matias agora. Ele tem de perceber que perdeu. A tentativa de humilhar o Salvador, sabe-se lá porquê, não deu resultado. Aliás, pode mesmo dizer-se que a nave que lançaram foi a mesma nave que se virou contra eles. Agora, eram eles que se sentiam humilhados.
− Tu é que sabes... − sussurra o Matias afastando-se de nós. Está a tentar salvar a face, fingindo que nada daquilo o incomoda. A quem é que ele pensa que engana?
− Vais arrepender-te disto, Aurora, − ameaça o Leandro.
E pronto. Isso foi o suficiente para deitar tudo a perder.
De repente, tudo começa a desenrolar-se demasiado depressa.
O Salvador larga a minha mão e atira-se ao Leandro, com uma raiva e um ódio que, por alguma razão, não conseguiu conter. O seu punho direito fechado embate diversas vezes no rosto do Leandro, e, poucas, são as vezes que este consegue revidar. Os dois rebolam pelo chão do refeitório, ficando quase sempre o Salvador por cima. Sangue é derramado no chão que os suporta. Sangue que contém uma mistura do ADN dos dois.
Sinto-me paralisada. É como se o meu cérebro não conseguisse acreditar na informação que chega aos meus olhos e ouvidos. Como poderia? Num momento, o Salvador estava calmo e controlado do meu lado, com a mão dele entrelaçada na minha, e no outro já estava, literalmente, em cima do Leandro a desferir-lhe golpe atrás de golpe.
Antes de eu conseguir ter alguma reação, o Matias começa a tentar puxar o Salvador para longe do seu amigo, mas sem muito sucesso, acabando também ele por ser atingido pelo Salvador, que com um dos seus pés enxota-o para longe.
O Matias perde, momentaneamente, o equilíbrio e cai para trás. Vejo-o embater no armário dos tabuleiros, que treme com o impacto, mas mantem-se no sítio, não sem antes acabar por ficar praticamente vazio. Os tabuleiros metálicos provocam ainda um maior alvoroço ao cair no chão, uns seguidos dos outros.
Isso é o suficiente para me fazer acordar do transe em que tinha entrado.
Começo a gritar.
Grito, grito, grito. Não sei bem o quê, mas grito. Quero que toda esta situação acabe o mais rápido possível. Estou desesperada. Não sei o que fazer. E parece que mais ninguém na sala sabe.
Ninguém se atreve a aproximar-se dos dois, temem que lhes aconteça o mesmo que ao Matias, que está agora debruçado sobre a sua barriga e sangra incessantemente do nariz. De alguma forma, deve ter acabado por bater com a cabeça no armário com o qual colidiu.
Eu não posso continuar aqui, simplesmente, sem fazer nada, à espera que um milagre aconteça. Eu tenho que os conseguir separar.
Aproximo-me deles convicta de que vou conseguir demover o Salvador. Mas não sou eu que o faço. Dois dos guardas pessoais do 1º Comandante são mais rápidos do que eu e levantam o Salvador que se debate, incansavelmente, para se ver livre deles. Talvez tenham sido alertados pelo barulho que se deve ter propagado por grande parte da nave, ou, então, tenham sido chamados por alguma das muitas testemunhas de toda aquela loucura.
− Para! Para! – sussurro assim que chego perto do Salvador, que só para de dar luta quando sente o toque da minha mão sobre o seu rosto ferido. Os guardas ao perceberem a mudança no comportamento e atitude dele, largam-no, mas mantêm-se em posição de ataque, preparados para a possibilidade de uma nova investida. Perscrutam-no com desconfiança, olhando, alternadamente, de mim para ele. – Já passou − acrescento, mais a tentar convence-lo disso do que a constatar um facto.
− Levanta-te rapaz! – ordena um terceiro guarda puxando com demasiada força o Leandro para cima, que tinha apenas se limitado a ficar deitado no chão. Ele faz um esgar com o movimento repentino. Apesar de mal se equilibrar em pé, sei que não tem nenhum osso partido ou fraturado, é apenas o resultado da quantidade de sangue que perdeu.
Se eu tivesse entrado agora na sala e olhasse para o Leandro, nunca iria adivinhar que era ele. Por um lado, porque sangue e recentes hematomas consideráveis se espalham por todo o seu rosto, tornando difícil reconhece-lo. Mas acima de tudo, porque nunca pensei que o Leandro, o tipo que se considera indestrutível e que age em concordância com esse seu pensamento descabido, acabasse neste estado.
− Senhores Guardas, − diz a Teresa ao aproximar-se de nós, − não deem importância a este assunto. Não passou de uma briga entre miúdos.
− Miúdos?! – admira-se um dos guardas. Um dos que se teve de esforçar bastante para conseguir segurar o Salvador. − Eu cá acho que eles já têm tamanho o suficiente para não serem tratados como tal.
− Acreditem em mim − insiste a Teresa, com aquele seu tom de voz doce e persuasivo que costuma utilizar com os pacientes mais resistentes. − Eu assisti a tudo e garanto-vos que não passou tudo de uma rixa entre rapazes que disputam a atenção de uma mesma rapariga − profere a última palavra dirigindo o seu olhar para mim.
Os três guardas fitam-me, simultaneamente, com um brilho de entendimento no olhar.
Bonito, a Teresa tinha mesmo que inventar esse absurdo? Agora sou eu a culpada? Para começar, eu nem sequer estava no refeitório quando tudo começou. Mas eu também não faço questão de desmentir a minha mentora. Aceito tudo, desde que o Salvador não seja castigado. Sabe-se lá que tipo de castigo iria receber! Nem quero imaginar!
− Vejam lá se controlam as hormonas da próxima vez − avisa um dos guardas. – Se isto voltar a acontecer...
− Não vai voltar a acontecer − garante a Teresa depois de suspirar de alívio. – Não é rapazes?
Os três mantêm-se em absoluto silêncio. Nenhum deles tem vontade de ser o primeiro a ceder.
Troco um olhar rápido com o Salvador. Não é altura para se ser orgulhoso e ele tem que perceber isso. Incentivo-o a dar o passo em frente, o passo que falta para acabar com toda esta confusão. Só espero que nos meus olhos azuis cristalinos esta minha vontade esteja muito bem espelhada.
− Não volta a acontecer − assegura o Salvador entredentes.
O Matias e o Leandro, apesar de contrariados, acabam por anuir. Não têm outro remédio.
Respiro de alívio, finalmente isto chegou ao fim.
− Que bom − diz a minha mentora. – Agora está na altura de tratar da saúde destes miúdos irresponsáveis − acrescenta fitando o Leandro demoradamente. Tal como eu, ela já percebeu que o Salvador conseguiu fazer um belo de um trabalho ao rosto do Leandro. E a julgar pela forma como ele se agarra às costelas, talvez essa não seja a única parte do corpo que o Salvador conseguiu danificar. Provavelmente, com o golpe inicial que o Salvador desferiu na zona abdominal do Leandro e com o impacto da queda, este se tenha fragilizado mais do que inicialmente parecera. E talvez por isso o Salvador tenha conseguido desferir tantos golpes certeiros.
Depois da sua análise, meramente ocular, vejo a Teresa acenar para uma das mesas do centro do refeitório. A Maria, que ainda estava sentada no seu lugar, levanta-se rapidamente e começa a caminhar na nossa direção.
− Leva o Salvador daqui − sussurra-me a Teresa ao passar por mim.
Sem perder mais tempo, obedeço à minha mentora. Agarro na mão direita do Salvador e saímos, os dois, daquele espaço, que depois do que se passou aqui hoje, não vai voltar a ser o mesmo.
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