Capítulo 26

Avanço, sem medos, sem hesitações.

Eu tenho que tentar fazer alguma coisa. Pode não dar em nada, mas pelo menos tentei. Não me limitei a ficar de braços cruzados.

Percorro o refeitório determinada. Cada passo que dou parece demorar uma eternidade. Ando, ando, ando. E a minha mente processa cada passo tão lentamente, que parece que não estou mais próxima do meu alvo.

Paro.

Já cá estou, e agora?

Poderia voltar para trás. Nenhum dos presentes da mesa que está diante de mim reparou ainda que estou tão perto deles. Se repararem poderei dizer que me equivoquei, que estava baralhada, que dormi mal.

Não, não posso vacilar agora.

Abro a boca e digo num tom confiante:

− Posso falar consigo, 2º Comandante?



Hoje, quando estive na sala secreta, emocionei-me ao ver quão contentes todos estavam pelos produtos de higiene que lhes tinha arranjado. Estavam todos tão limpos, que mal podia acreditar no que os meus olhos viam. Se estivessem sempre assim, as doenças seriam menos frequentes por aqueles lados. O problema é que não há recursos para pessoas que supostamente não existem.

Não têm direito a comida, a produtos de higiene, a água, a medicamentos, a roupa lavada, a uma cama para cada um deles... Não têm direito à vida. Lutam todos os dias por ela, numa batalha desigual.

O pior de tudo é que a nave tem recursos mais do que suficientes para todos nós. Então, é simplesmente injusto.

Eu sei que não posso contar a verdade. Não posso dizer a ninguém que eles existem, que eles sofrem. Eu sei disso. Mas isso não me impede de os tentar ajudar de todas as formas possíveis e imagináveis.

− 2º Comandante, há algum tempo que tenho vindo a pensar no desperdício de recursos que são usados nos check-ups mensais – digo quando já nos encontramos os dois na grande sala central, afastados de olhos curiosos.

− Como assim, rapariga? Que disparate é esse?

− O senhor pode não me reconhecer, mas eu trabalho na enfermaria. Sei do que falo.

− Estou a ver... És a filha dos Bacelar, não és? Deste muito que falar na última reunião semanal.

− Sim, sou eu, − respondo ligeiramente constrangida por ser apenas essa a recordação que associa à minha pessoa. Na verdade, não deve ser o único. – Eu estive a fazer as contas. São muitos os meses onde não se encontra rigorosamente nada. Só de 3 em 3 meses se encontram até 2% dos casos analisados com algum tipo de enfermidade. Talvez por trimestres fosse mais útil. Na enfermaria não precisaríamos de estar tão focalizadas nos check-ups, dando prioridade a outros assuntos, gastar-se-ia menos energia para esterilizar os materiais e estes durariam mais tempo, fazendo com que o laboratório de saúde não tivesse de estar sempre a construir substitutos, ganhando, por sua vez, tempo para criarem novos medicamentos.

Vejo o 2º Comandante a hesitar. A pensar, de facto, em todos os argumentos que lhe apresentei. Isso já é alguma coisa, significa que não considera um disparate total aquilo que lhe acabei de dizer. Faz sentido, tem lógica e não se perde nada com isso, só se ganha. Então a resposta dele só pode ser uma.

− Bom... Faz... Faz algum sentido. Mas não acha que estaríamos a arriscar demasiado? Com um maior período entre as análises o risco de alguém ficar doente sem ninguém se aperceber disso passa a ser maior? E, consequentemente, a intervenção poderá já não vir a tempo.

Sinto-me vacilar. Perco a confiança e a força em fazer com que a minha ideia vá avante. Não é que tenha mudado de ideias. Já tinha pensado nessa única desvantagem, mas os cálculos apontam para uma probabilidade ínfima disso acontecer. Os ganhos superariam essa pequena possibilidade.

Convenço-me de que a batalha ainda não está perdida, ainda posso conseguir fazê-lo mudar de ideias.

− Acredite, eu tomei isso em consideração. A probabilidade de isso acontecer é ínfima. Poderíamos salvar e cuidar de muitas mais pessoas se o laboratório de saúde tivesse mais tempo para produzir novos medicamentos.

− A probabilidade de existir um planeta exatamente igual à Terra e de nós irmos viver para lá, também era ínfima. No entanto, aqui estamos nós a caminho dele.

Talvez se tivesse falado antes com a Teresa... Se ela estivesse do meu lado, a credibilidade da minha sugestão seria muito maior. Afinal de contas, eu sou só uma aprendiza. Além de ser a rapariga atrevida que enfrentou a autoridade do 1º Comandante. Será por isso que me está a dar tão pouco crédito?

− Mesmo assim, − acrescenta o 2º Comandante ao ver-me de olhos pregados no chão, – vou consultar o 1º Comandante para saber a opinião dele.

− Agradeço por estar a considerar a minha sugestão. Isso já é muito para mim. Eu só quero melhorar a qualidade de vida de todos os que habitam nesta nave – digo, pensando também nas pessoas que estão presas na sala secreta, que precisam muito mais de cuidados do que nós.

− Muito bem. Agora posso ir terminar a minha refeição?

− Claro, não lhe roubo mais tempo.

Vejo-o afastar-se de mim em direção ao refeitório. Talvez a pensar que o que lhe disse não era assim uma coisa tão importante para ele ter tido de interromper o jantar. Como se o seu jantar fosse mais importante que a saúde de todos nós.

Não olha nem uma vez para trás. Os seus pensamentos já estão todos focalizados no que se encontra à sua frente. Provavelmente, nem se vai voltar a lembrar da nossa conversa, quanto mais falar dela ao 1º Comandante. Contudo, se ele olhasse para trás, veria que eu continuo exatamente no mesmo sítio. Nem um milímetro me movi. Ingenuamente convicta de que se continuar aqui, parada, ele irá voltar e dizer que eu tenho toda a razão.



− Aurora. Aurora – oiço os sussurros do Salvador. Devo estar a sonhar. Só nos meus sonhos o Salvador teria esta voz doce sussurrante, que me viria acordar todos os dias para me dizer que me queria do seu lado todos os minutos, todos os segundos do seu dia. – Aurora. Aurora – continua, agora, com um tom de voz mais urgente.

Abro os olhos, sobressaltada, e deparo-me com o Salvador acocorado e debruçado sobre a minha cama. Com o rosto muito perto do meu. Os seus olhos brilham na escuridão do meu quarto, revelando alguma inquietação. Alguma preocupação, até. O que terá acontecido?

− O que fazes no meu quarto a meio da noite? – múrmuro. Verifico se alguma das raparigas se encontra acordada. Respiro de alívio quando percebo que estão todas ferradas num sono profundo.

− Vem comigo. Explico-te lá fora.

O Salvador levanta-se e sai porta fora sem verificar se o sigo. Ele sabe que não precisa. Eu segui-lo-ia até ao fim do mundo se ele me pedisse. Agora confio mais nele do que, inclusivamente, em mim própria.

− O que se passa? Estás a começar a assustar-me – digo ansiosa. Já saímos do quarto há quase um minuto e ele continua simplesmente a olhar para mim com aqueles olhos azuis eletrizantes a faiscar de preocupação.

− O que é que tu fizeste, Aurora? – questiona como se lhe doesse por dentro ter de dizer aquelas palavras.

− O quê?! Eu... eu não... eu não fiz nada.

− Alguma coisa deves ter feito para o 1º Comandante querer falar contigo no seu gabinete de madrugada. Diz-me que não fizeste aquilo que eu estou a pensar.

− Não! Não, como te atreves a duvidar de mim.

− Então vais dizer-me que não fazes a mínima ideia do motivo de ele querer falar contigo? – Estremeço ao ouvir a acusação subjacente ao seu tom de voz grave e frio, distante como se eu já não valesse a pena.

− Talvez... Talvez seja pela sugestão que eu dei ao 2º Comandante.

− Que sugestão? Raios, Aurora! Não consegues mesmo ficar quieta no teu canto, pois não?

− Não, não consigo. Mas dizes isso como se fosse algo mau. Não é! – defendo-me exasperada, mais com os seus olhos incendiados de raiva e desilusão, do que com as suas palavras. – Eu só pedi ao 2º Comandante para considerar reduzir o número de check-ups por ano. É um gasto desnecessário de recursos. Assim, poderíamos ajudar muito mais gente, gastando o tempo, a energia e os materiais com coisas mais úteis como desenvolver novos medicamentos.

− Só isso? Não faz sentido! – O Salvador passa nervosamente a mão pelo cabelo curto, demorando-se no gesto, como se, desse modo, conseguisse pensar melhor e resolver este quebra-cabeças. – Porque é que ele não te chamou noutra hora qualquer? Porquê de madrugada? Só vejo uma razão... Ele não quer que ninguém saiba.

− Tu sabes!

− Exato. Apenas eu. Caso... − a voz falha-lhe e os seus olhos fogem dos meus. – Caso te aconteça alguma coisa, apenas tem de tratar de mim.

− Tu és sempre assim, tão dramático? – Aproximo-me dele. Ficamos apenas a uns meros centímetros de distância. Apetecia-me puxar-lhe o seu rosto na direção do meu. Preciso de olhar-lhe no fundo dos seus olhos azuis indecifráveis, perceber melhor o que ele está a sentir. – Ele só deve estar ansioso para falar comigo. Talvez tenha achado uma excelente ideia e não conseguiu aguentar ter de esperar.

− Eu vou contigo. – O Salvador fita-me, de novo. Quase fico sem ar quando me deparo com o azul eletrizante mais intenso que alguma vez lhe vi no olhar.

− Claro, tolinho. Tu és o mensageiro, tens que me levar até ao gabinete dele. Eu não faço a mínima ideia de onde fica.

− Não. Eu não vou só levar-te ao gabinete. Eu vou entrar contigo.

Sorrio.

Mais uma vez ele quer fazer de meu guarda-costas. Talvez essa seja a sua verdadeira vocação. Sempre que pode, lá está ele, a oferecer-se para me proteger.

Não é que a proposta dele não me agrade. Preferia mil vezes que ele estivesse lá comigo. Não por medo que me aconteça alguma coisa, sei que o 1º Comandante não teria coragem, nem sequer motivos para me fazer mal. Mas sim por me sentir mais segura, mais confiante com ele do meu lado.

− Tu sabes que isso não vai ser possível – digo tristemente. – O 1º Comandante não iria aceitar isso e, além do mais, iria desconfiar. Iria pensar que estamos com medo dele, por alguma razão que ele desconhece, e iria querer saber essa razão. Estaríamos a encurralar-nos a nós próprios.

O Salvador suspira de frustração. Ele sabe que não há outra hipótese senão deixar-me sozinha a enfrentar o monstro.

− Tudo bem, mas eu fico à porta. Se desconfiares da mínima coisa, grita, ok?

Anuo, sentindo-me reconfortada por ele não ter desistido de me proteger. Por ele não ter desistido de mim.

Entrelaço a minha mão na dele e, juntos, caminhamos na direção do covil do monstro. 

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