Capítulo 25

Esta noite pouco consegui dormir. Sentia ainda, muito vivas, dentro de mim, todas as emoções que a recordação da morte da minha bisavó me trouxe.

Não sei bem porque reagi daquela forma ontem. Pensava que tinha ultrapassado a morte da minha bisavó, mas, por alguma razão, ontem não estava emocionalmente preparada para a recordar.

Estou tentada a deitar-me na cama, para tentar repor as minhas energias. Isto de ficar aqui à espera do Matias, sem saber quanto tempo é que ele vai demorar, está a dar comigo em doida. Nem sequer sei se ele vem! Talvez não tenha coragem suficiente para roubar os produtos de higiene que lhe pedi ou até para entrar no meu quarto.

Decido recostar-me na cama, um pouco, enquanto espero por ele.

Estou quase a adormecer, quando ouço alguém bater à porta do meu quarto. Finalmente chegou, penso.

Levanto-me da cama, num salto, e dirijo-me à porta do quarto.

− Tu?! – pergunto boquiaberta quando vejo o Salvador do outro lado da porta. – O que estás aqui a fazer? Aconteceu alguma coisa?

Inúmeros pensamentos alarmantes passam-me pela cabeça.

Talvez alguém tenha descoberto a sala secreta. Talvez alguém da sala secreta tenha ficado muito doente e precise de mim. Pior, talvez alguém da sala secreta tenha ficado gravemente ferido, não resistiu e...

− Não é óbvio?! Não pensavas mesmo que eu te ia deixar aqui sozinha com o Matias, pois não? – questiona o Salvador fechando a porta atrás de si. O teto do meu quarto inclinado obriga-o a ficar junto à porta. Mais alguns passos e teria de adotar uma posição desconfortável.

Eu e o Salvador sozinhos no meu quarto.

Começo a sentir formigueiros por todo o corpo. A ideia de eu ficar sozinha com um rapaz no quarto não me assusta, mas o Salvador é uma história completamente diferente.

A sua presença aqui faz com que eu não saiba o que dizer ou fazer. Sinto-me paralisada.

− Eu vim proteger-te – acrescenta, olhando-me com uma intensidade tal, que faz com que sinta todo o meu corpo a entrar em ebulição, com que o meu estômago e coração comecem aos pulos e com que perca as forças das pernas, que já quase não conseguem suster o meu peso.

− Eu... eu não preciso de proteção – respondo-lhe, tentando recuperar o foco, que é uma coisa extremamente difícil neste momento, para não dizer quase impossível. Concentro-me no chão do quarto. Não posso olhar para ele, senão não consigo dizer nada de jeito. – Além disso, o que é que vais fazer? Esconder-te atrás do armário para que ele não te veja?!

− Excelente ideia – responde convicto, depois de analisar rapidamente a dimensão do único armário do quarto.

Também lanço um olhar, rapidamente, ao armário que se encontra encostado a uma das paredes que é perpendicular àquela em que se encontra a porta. De facto, não é muito grande em altura, mas é grande o suficiente em largura. Se o Salvador se colocar detrás de um dos lados do armário, o que fica mais afastado da porta, agachado, consegue passar facilmente despercebido.

Não acredito que estou sequer a considerar a questão!

É um absurdo! Um disparate completo!

No entanto, confesso que a ideia de ter o Salvador a olhar por mim, pelo meu bem e segurança, é um pouco tentadora.

Não, Aurora, penso, tu não precisas de um guarda-costas.

Já sou suficientemente grandinha para saber tomar conta de mim própria.

Vou para lhe dizer isso mesmo, quando ouço alguém bater à porta do meu quarto, pela segunda vez, hoje.

O Salvador apressa-se a colocar-se atrás do armário e eu não o tento impedir. É demasiado tarde para isso.

Só espero que isto corra bem, penso ao dirigir-me para a porta.

Também o que é que pode correr assim tão mal?

− Oi – o Matias cumprimenta-me, fechando rapidamente a porta atrás dele. – Nem acredito que consegui − acrescenta, claramente, aliviado. Sinto a sua respiração ofegante.

− O que se passou? Parece que estiveste a correr...

− Não, nada disso! Só fiquei apavorado com a ideia de ser apanhado. Mas consegui!

Ouço o Salvador a rir subtilmente, um som quase inaudível, mas, infelizmente, não por completo.

− O que foi este som? – pergunta o Matias, percorrendo o quarto com os olhos.

− É que as paredes deste quarto não isolam muito bem o som − começo, dizendo a primeira mentira que me vem à cabeça. Só espero que ele não perceba o quão nervosa estou com toda esta situação. – Por isso, de vez em quando, ouvimos sons que veem dos outros dois quartos que estão colados a este.

− Isso deve ser chato...

− Sim, sim, é muito chato. Mas vamos ao que interessa − digo rapidamente, tentando acelerar o ritmo da conversa.

− Até parece que me queres ver daqui para fora, Ruiva.

− E quero... Quer dizer, não há necessidade de corrermos mais riscos, não é verdade? Quanto mais rapidamente despacharmos isto, melhor.

− Sim, até és capaz de ter razão. Toma. – Vejo-o tirar a mochila que traz às costas. – Foi tudo o que consegui − acrescenta ao entregar-ma.

Os meus braços caiem ligeiramente com o seu peso.

Está pesada. Isso é bom sinal.

Corro o fecho e vejo sete embalagens, bem juntinhas umas às outras, de 1 litro cada. É bem mais do que eu pensava que ele ia conseguir trazer. Isto já deve dar para alguns meses.

− Obrigado, Matias – digo, voltando a fechar a mochila e pousando-a aos meus pés.

− Não é suficiente, Ruivinha. Preciso de mais do que um simples "obrigado".

− Mas essa é a única coisa que te posso dar: o meu eterno agradecimento – digo friamente.

− Eu cá lembro-me dumas 2 ou 3 coisinhas, − começa, aproximando-se cada vez mais de mim, − que me podias dar...

Um som forte interrompe o Matias, que paralisa com o barulho inesperado.

Salvador, concluo.

Timing perfeito. Tenho que me lembrar de o agradecer mais tarde.

Não sei como raio provocou ele aquele som, mas pela intensidade, quase que parecia ter acabado de esmurrar o meu armário.

− Parece que as raparigas aqui do quarto do lado estão animadas − disfarço sorrindo.

− Isto é sempre assim? – questiona abismado, como se tivesse ido parar a uma realidade alternativa. Uma realidade que, aparentemente, não lhe estava a agradar. – O som até parecia ter vindo daqui...

− Impressão tua. A gente habitua-se. Agora, é melhor ires − digo empurrando-o para fora do meu quarto. Se o Matias fica aqui mais um segundo que seja, isto não vai acabar nada bem. – Adeus − despeço-me ao fechar-lhe a porta na cara, não lhe dando qualquer hipótese de contra-argumentar nem de se despedir.

− Estava a ver que não! − protesta o Salvador ao sair detrás do armário. – Não precisas de me agradecer.

− Mas como é que tu... − começo, ao encaminhar-me para o local onde o Salvador se encontrava escondido ainda há segundos. – Tu bateste mesmo no meu armário! Não, tu não lhe bateste, tu espancaste-o! – grito ao passar os dedos pela depressão, que ainda há pouco não estava lá.

− O tipo estava quase a saltar-te para cima − defende-se num tom austero.

− Não exageres.

− O que interessa é que graças a mim, o Matias fez exatamente aquilo que estava combinado: entregou-te os produtos e foi-se embora. Nada mais do que isso.

− Sim?! É que com isto tudo fiquei um pouco confusa. A tua missão era proteger-me ou fazer com que o Matias te descobrisse? Primeiro metes-te a rir, sei lá com o quê, depois bates no armário, como se este te tivesse feito alguma coisa.

− Não me consegui conter... − responde cabisbaixo, fugindo aos meus olhos furiosos.

− Pensava que eras mestre nisso.

− Em quê?

− Em esconder o que sentes... A ser uma pedra fria sem coração − digo ressentida. Talvez tenha sido um pouco exagerado, penso. Mas agora já é tarde demais. O que está dito, está dito.

− É o que pensas de mim?

Ao sentir a mágoa que lhe cobre a voz fico imediatamente arrependida.

Quando escolhi aquelas palavras tinha apenas um propósito: provocar-lhe dor. Eu pensava que era disso que precisava para me sentir melhor, para me sentir vingada, mas não podia estar mais enganada.

− É o que quase toda a comunidade pensa... − sussurro em resposta.

− Não me interessa o que eles pensam! Quero saber o que tu pensas.

− Confesso que eu pensava o mesmo antes de te conhecer. – Olho no fundo do azul eletrizante dos seus olhos e continuo, − Mas agora sei que não és assim, muito pelo contrário. Sei que tudo não passa de uma capa para te defenderes, para te protegeres. Só disse o que disse, porque estava irritada.

Vejo-o sorrir e o meu coração volta a aquecer. O próprio ar à nossa volta parece mais quente, mais respirável.

− Vamos apenas esquecer o que aconteceu aqui – propõe o Salvador.

− Combinado. Mas antes diz-me porque é que te começaste a rir quando o Matias entrou aqui.

− Pela sua triste figura. Percebi que ele não passa de um grande cobarde.

Só podia!

O Salvador e o Matias são, de facto, muito diferentes nesse aspeto. Enquanto o Matias tem medo de se arriscar, nem que seja por uns minutos apenas, o Salvador arrisca-se todos os dias. Sem tremeliques, nem respiração ofegante. Correr riscos já lhe é tão natural como comer ou andar.

− Eu levo a mochila – diz o Salvador ao agarrar nela e coloca-la aos ombros, num movimento tão rápido, que me faz perguntar se será a mesma mala de há pouco. Vendo a sua facilidade em manejá-la, quase parece que a mochila se encontra vazia.

− É melhor ser eu a levá-la. Se o Matias te vê com ela, pode desconfiar.

− Medricas como é, a esta hora já deve estar bem longe das redondezas. − Ri-se, talvez recordando a figura do Matias ao entrar no meu quarto. Eu própria não consigo evitar e junto-me a ele. – Ah! E a ver se venho mais vezes ao teu quarto, até que gostei de aqui estar...

− Mas não foste tu que disseste que eu não podia ter rapazes no quarto?!

− É verdade, todos os rapazes. Menos eu – conclui, abrindo a porta do meu quarto e saindo disparado por ela, sem me dar qualquer hipótese de lhe responder.

De qualquer forma, não sabia mesmo o que dizer.

A ideia de o Salvador estar mais do que uma vez no meu quarto, deixa-me sem folego. Não por desgostar da ideia, muito pelo contrário.



− Estiveste com ele não foi? – sussurra a Analu assim que me sento à frente dela, pousando o tabuleiro na mesa com o meu jantar.

− Com quem? – pergunto ligeiramente desnorteada. Estará ela a falar do Salvador ou do Matias?

− Não te faças de desentendida. É notório na tua cara que estiveste com ele.

Levo instintivamente as mãos ao meu rosto sentindo-o mais quente do que seria de esperar.

Ainda não recuperei do comentário que o Salvador me fez antes de sair do meu quarto. Podia ter ficado lá até acalmar, mas, a verdade, é que aquelas paredes, aquele armário, aquele espaço, tudo naquele quarto me faria lembrar dele. É como se já não fosse o meu quarto.

Como é que uma simples memória, um simples acontecimento, podem mudar todo um contexto? Será que o cheiro dele ainda vai estar lá quando eu voltar? Espero que sim, penso, corando mais um pouco.

− Estás mesmo apanhadinha! – conclui a Analu.

− Oi, Ruiva – cumprimenta-me o Matias ao sentar-se do meu lado. Claramente que não ouvira este último comentário da Analu. – Admite que já estavas com saudades minhas. Se quiseres depois do jantar posso voltar a ir contigo para o teu quarto.

− Foi com ele que estiveste?! – A Analu deixa a colher cair sobre o recipiente onde tinha a comida e fá-la salpicar sobre a mesa. – No nosso quarto?!

− Não foi nada de mais... − defendo-me. Não quero que ela pense coisas erradas. Eu não cheguei ao refeitório corada por ter estado com o Matias. Não foi ele que me deixou assim, mas não posso explicar isso à minha amiga, aqui, à frente de toda esta gente.

− Eu cá adorei a experiência e não me importo nada de a repetir. Quer dizer, gostei mais da companhia do que do quarto em si. Deve ser difícil estar num sítio onde se ouvem permanentemente barulhos vindos dos quartos do lado.

− O que... − começa a Analu, que se cala, rapidamente, quando lhe lanço apenas um olhar apavorado.

− Ias dizer alguma coisa?

− Não, estava apenas a lembrar-me do terror que é ouvir todos aqueles barulhos... − responde a Analu fingindo-se perturbada. − Mas confesso que já estou tão habituada que já nem me lembrava deles. Acontece-te o mesmo a ti, não, Aurora?

Anuo, sem conseguir proferir uma palavra. A Analu não está a facilitar. Assim o Matias vai acabar por perceber que esta história é uma grande mentira. Só espero que este pesadelo acabe logo! Tenho que mudar de assunto e rápido!

− Matias, vais ao quarto do meu avô? Hoje vai haver uma sessão de jogo, não vai?

− Talvez passe por lá, ainda não sei. Mas se tu fores, Ruivinha, o caso muda de figura.

− Ela não vai, lamento. Eu e a Aurora vamos tratar dos barulhos, talvez já seja a altura para isso, não achas?

Ela só pode estar a brincar. Tive tanto trabalho para mudar o rumo da conversa! E agora isto?

− Sim, talvez... − responde distraidamente o Matias mostrando desinteresse pelo assunto. Ou talvez apenas esteja desiludido por eu não poder estar no quarto do meu avô esta noite. De qualquer das formas, o que interessa é que ele não suspeitou de nada.

Antes de voltar a concentrar-me na minha comida, lanço novamente um olhar à Analu. Não um olhar assustado. Muito pelo contrário. O olhar é tão intimidador que faz a Analu encolher-se no seu lugar.



− Enlouqueceste, Analu? – pergunto irritada ao fechar, com força, a porta do nosso quarto.

− Não estou a ouvir nenhum barulho estranho, por isso talvez esteja mesmo a enlouquecer... − A Analu senta-se na minha cama esboçando um sorriso que me faz descontrair um pouco. – Que história maluca foi aquela?

Passei o resto do jantar em silêncio a pensar no que iria dizer à Analu. Até posso ter conseguido escapar-me de contar a verdade ao Matias, mas e a Analu? Como vou justificar o facto de o Matias ter vindo ao meu quarto? O que é certo é que ele nunca iria arriscar andar a contar a verdade por aí. Poderia perder o emprego se o fizesse. Então acho que posso contar qualquer outra história a Analu, desde que seja suficientemente convincente. A minha amiga é demasiado esperta e conhece-me demasiado bem para acreditar que eu me daria ao trabalho de pedir ao Matias para me arranjar produtos de higiene só para mim. Não sou vaidosa e ela sabe-o muito bem. Além do mais, podia pedir-me para eu os mostrar.

− Tinha falado com o Matias sobre o livro que tinha no quarto e ele decidiu simplesmente aparecer por cá, com a desculpa de que queria ver com os seus próprios olhos esse tal livro.

− Que grande lata!

− Pois, foi o que eu lhe disse e tentei despacha-lo o mais rápido que consegui!

− Ok, até agora percebo. Mas onde entra a história dos barulhos? Não me digas que inventaste essa história para que ele fugisse do nosso quarto com medo?

Hesito.

Será que lhe deixo acreditar nessa versão distorcida dos factos? Não teria de lhe contar sobre o Salvador, o que facilitaria bastante a minha vida. Contudo, não me parece correto mentir-lhe só para não ter de ouvir os seus comentários. Se o fizesse estaria a entrar numa zona que até agora repudiei. A mentira usada para salvar ou defender pessoas inocentes é uma coisa, até para nos defendermos a nós próprios poderia ser plausível, mas mentir só por mentir, não me parece nada bem. O facto de ter hesitado só mostra o quão mais perto do limiar dessa zona me encontro no momento. No passado, a simples cogitação dessa hipótese nem me passaria pela cabeça.

− Não foi nada disso. Acontece que quando o Matias apareceu, o Salvador estava... aqui comigo. Então ele escondeu-se atrás do armário para o Matias não o ver...

− Espera, espera, espera! – A Analu, que estava calmamente recostada na minha cama, inclina-se para a frente entusiasticamente. – Tu estiveste com dois rapazes no quarto?! Ao mesmo tempo?!

− Não sejas parva – digo, rindo-me com a sua expressão de choque. – Foi apavorante!

− Imagino. Deve ter sido cá um sofrimento... − diz a Analu ironicamente.

− Estou a falar a sério!!! Basicamente era eu a tentar despachar o Matias e o Salvador a fazer sons e barulhos por tudo e por nada. E ainda deu um murro no nosso armário!

A Analu levanta-se de um salto e vai verificar com os seus próprios olhos o estado do armário. Não precisa de muito tempo para encontrar a pequena, mas ainda significativa depressão, que o Salvador conseguiu fazer apenas com o punho.

− Uau! E porque raio é que ele o fez? − pergunta a Analu incrédula. Não sei se com a força do Salvador ou com o ato em si.

− O Matias estava... digamos que a esticar-se. O Salvador provocou-lhe um grande susto com o estrondo e depois de eu inventar que o barulho vinha do quarto do lado, foi mais fácil de o expulsar.

− Que fofo! Ele gosta mesmo de ti!

− Não digas disparates, Analu. Ele fez o que qualquer um faria! Não foi nada de especial.

− Se tu o dizes...

Talvez não qualquer um.

O Salvador é apenas atencioso, protetor, é só isso. Ele passou grande parte da vida a proteger todas aquelas pessoas da sala secreta. Já está na sua natureza. Ele teria feito o mesmo com qualquer outra rapariga. Tenho a certeza. Contudo, confesso que agradar-me-ia a ideia de ele o ter feito por ser eu. Daquele gesto impetuoso ter sido causado pela raiva de ver outro homem perto de mim. Como costuma designar-se esse sentimento? Sim, ciúme.

De repente, dou por mim a procurar sentir o cheiro dele no meu quarto.

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