Capítulo 23
– Então como é que correu a conversa com a Analu? – pergunta-me o Salvador ao sentar-se junto a mim. O colchão em que estou sentada protesta ao sentir o peso de mais um corpo sobre ele.
Estou na sala secreta. Depois de um dia cheio de trabalho era mesmo disto que estava a precisar. Acho que estou a ficar dependente deste espaço, deste ambiente, destas pessoas.
– Tive que dizer-lhe a verdade – admito. – Não essa verdade – acrescento ao ver a expressão de inquietação do Salvador. – Contem-lhe que eu e tu... estamos a passar algum tempo juntos, que estamos mais próximos.
– Tudo bem, a Analu parece-me de confiança. Fizeste bem em contar-lhe.
– Não estás desiludido comigo? – questiono tentando estudar-lhe o rosto.
– Não. – O seu olhar transborda de sinceridade. – Depois do que ela viu, era difícil mentir.
As palavras dele transportam-me de novo para aquele momento. O corpo dele tão próximo do meu, os sorrisos que trocámos, as palavras que ele me disse, a mão dele no meu queixo...
Concentra-te, Aurora, penso.
– Foi melhor assim. A Analu andava desconfiada, e, se continuasse assim por muito mais tempo, não duvidava nada que começasse a seguir-me. Assim, até pode encobrir as minhas ausências, se alguém perguntar por mim.
– Tens razão, uma aliada pode dar-nos jeito.
– Ainda mais agora que andam todos a falar de mim. Podem andar mais curiosos sobre o que faço e com quem ando, e se a Analu dissesse que não fazia a mínima ideia de onde eu estava, logo a minha melhor amiga, isso ainda iria atrair mais as atenções.
– Agora já percebes que foi uma péssima ideia teres feito o que fizeste?
– Eu não me arrependo – digo convicta do que sinto. O Salvador não me vai fazer sentir, novamente, mal comigo própria, principalmente porque sei que o que o chateia é o medo que tem do que me possa acontecer, e não propriamente medo por o segredo que partilhamos ser descoberto. – Custa-me que pensem mal de mim, mas se não o tivesse feito, a dúvida iria dar cabo de mim. Agora tenho a certeza que o 1º Comandante merece o ódio que nós todos aqui nutrimos por ele.
– Portanto achas que valeu a pena o risco?
– Sem dúvida.
– Ainda és mais louca do que pensei – profere o Salvador entre risos.
– Isso para mim é um elogio – confesso ao lembrar-me das últimas palavras escritas da minha bisavó.
"Podes deixar, bisavó. Louca serei ", a promessa, de há umas semana atrás, ressoa na minha mente. Quando fiz essa promessa, nunca pensei que iria conseguir ser louca ao ponto de seguir e enfrentar um rapaz que pensava ser um ladrão da comunidade, que, na verdade, é o que o Salvador é (apesar de ser por uma boa causa); roubar recursos à comunidade para ajudar pessoas que mais ninguém, para além de mim e o Salvador, sabe que existem; mentir às pessoas que mais amo; e ainda desafiar a autoridade do 1º Comandante.
– Queres? – pergunta-me o Gabriel estendendo-me o pacote de batatas fritas, que acabou há pouco de abrir.
– Não. Tu precisas mais dessa comida do que eu – respondo-lhe fitando a sua figura esguia.
– Come uma – insiste colocando a sua pequena mão dentro do pacote para retirar uma batata. – São muito boas.
Como pode ele, uma simples criança, ser tão generoso ao ponto de dispensar comida, algo tão escasso nesta sala, para me dar a mim? Eu que venho lá de fora e tenho comida mais do que suficiente para me manter forte e saudável, ao contrário desta pequena criança franzina que tão gentilmente me estende a mão para me oferecer uma batata.
Como posso dizer não, se me olha como se esta batata fosse muito mais do que isso? Talvez para ele seja uma maneira de dizer que gosta de mim, que confia em mim, e que está feliz por eu aqui estar. Não sei se uma pequena batata poderá significar isso tudo, contudo, se essa é uma hipótese, não posso recusar.
– Obrigado – digo estendendo a mão em concha para que ele deposite lá a batata.
E ele assim o faz, com um sorriso de orelha a orelha, que confirma o quão importante isto é para ele.
Coloco a pequena batata na minha boca e saboreio-a. Já há nove anos que não comia alimentos destes, provenientes da Terra.
É uma sensação única. O crocante, o sal, a gordura da batata...é tudo tão perfeito.
– É impressionante a alegria constante do Gabriel – comenta o Salvador ao seguir o movimento da pequena criança com o olhar, o que não é tarefa fácil. Também eu tento fazê-lo, mas o Gabriel anda a correr e a saltitar de um lado para o outro da sala, fazendo com que me sinta ligeiramente tonta.
É bom ver que ele já recuperou totalmente da doença que tinha. Já come, dorme e brinca como de uma criança é de se esperar.
O Afonso também se recuperou, porém mantém-se sentado junto à mãe.
Todas as crianças desta sala parecem tão paradas, quando comparadas com o Gabriel. Vejo-o provoca-las, chama-las para se juntarem a ele, quando no meio de imensos saltinhos acaba por ir parar junto a alguma delas.
Uma pequena rapariga acaba por se juntar a ele, atraída pela sua imensa animação e alegria. De certo, desejosa de sentir o mesmo. Eu própria sinto vontade de experienciar, nem que seja metade, desta sua animação.
– Queres que te vá buscar um pacote de batatas? – interroga o Salvador ao ver-me a saborear o sal que ficou agarrado aos meus dedos. Que vergonha, agora vai pensar que sou uma esfomeada.
– Não. Essa comida é deles. Eles precisam dela, eu não. Só não comia destas coisas há muito tempo, é só isso. Deve ser difícil conseguir arranjar estes alimentos. Como consegues?
– Não é assim tão difícil quanto isso. A comida da Terra encontra-se toda armazenada numa das salas desta parte da nave. E não é que esteja lá alguém a vigiar. É bem mais difícil roubar a enfermaria – conclui rindo-se com as lembranças que isso lhe traz.
– É só dessa comida que comem?
– Não. Não posso tirar grandes quantidades de comida dessa sala, senão iriam logo perceber que alguém andava a roubá-la. Também trago da comida feita aqui na nave. A minha mãe trabalha no refeitório, o que facilita imenso as coisas. Ela conseguiu ficar responsável pela eliminação das sobras, mas, ao invés de colocar a comida na máquina de desintegração, dá-ma a mim.
– Então eles comem os nossos restos?
O Salvador acena com a cabeça como resposta à minha pergunta.
Quem diria que aquilo que eu deixei no prato ao longo destes anos, serviu de almoço ou jantar para estas pessoas. A partir de agora, vou deixar muito mais comida no prato.
– Nem penses – ordena-me o Salvador.
– O quê? Eu nem se quer disse nada.
– Tu tens de comer, Aurora. – Poderia o Salvador ouvir pensamentos? É claro que não, que coisa mais absurda. – Já sei como és, sempre a pensar nos outros antes de pensares em ti própria. Mas se não comeres, podes ficar fraca, e estando fraca não poderás ajudar estas pessoas.
Serei mesmo assim? Serei eu altruísta?
O Salvador deve estar a confundir-me com ele. Eu trabalho na enfermaria, trato e ajudo pessoas, é apenas o meu trabalho.
Mas e o que ele me disse?
"Já sei como és", a minha memória traz-me de novo as palavras que há segundos ouvi. O Salvador pensa que me conhece, não sei se é verdade ou não, mas gosto de pensar que sim, que ele sabe quem eu sou e o que pode esperar de mim. Será que também eu o conheço? Será que o conheço por inteiro, ou só as partes dele que ele permite mostrar?
– E a água? Como consegues tanta? – pergunto-lhe ao ver a pequena rapariga a partilhar um copo de água com o Gabriel, tentando desviar o assunto. Eu faço o que bem me entender, se quiser comer como, se não quiser não como.
– A água não é um problema. Anda, posso mostrar-te – diz o Salvador levantando-se de um salto.
Sem esperar resposta, agarra-me na mão e puxa-me para o seguir.
Eu não ofereço resistência. Com a mão do Salvador a envolver a minha, eu ia com ele para qualquer lugar que ele me quisesse levar.
Sigo o Salvador por corredores estreitos e escuros.
Ele já não me agarra a mão, por isso tento esforçar-me para ver o seu corpo apressado a percorrer a escuridão e tento avançar à mesma velocidade que ele. Sei que para ele estes corredores não são estranhos, o que explica a forma ágil e rápida como se move.
Podia pedir-lhe para abrandar, para ser ele a adaptar-se ao meu ritmo, e não o contrário. Contudo, não o quero fazer. Não quero mostrar que sou mais fraca que ele, que não o consigo acompanhar. Então, só me resta ficar atenta a cada pequeno gesto que ele faça e repeti-lo, assim terei a certeza que não caio ou que não me magoo nestas paredes apertadas.
Por fim, um estreito corredor dá origem a uma sala ampla com uma grande máquina, ao fundo, a reivindicar quase metade do espaço existente para si. Esta parece um grande reservatório de água feito de um material transparente, que permite ver o seu conteúdo líquido. Vejo também tubos que saem da máquina em direção ao teto desta sala, que está forrada por eles.
– É daqui, desta máquina, que sai a água que utilizamos na comunidade – informa-me o Salvador ao aproximar-se mais dela. – Estás a ver aquela torneira?
Na minha primeira análise, à distância a que estava, não tinha conseguido ver a pequena torneira na sua base. Mas ali estava ela, feita de um metal reluzente, que a esta distância seria difícil passar despercebida.
Anuo.
– Foi para os trabalhadores que tomam conta das máquinas, que permitem a nave funcionar, que a torneira aqui foi colocada. Dessa forma, não precisam de se deslocar lá acima para irem buscar água ou de andar com a água de um lado para o outro dentro de um recipiente. É aqui também que eu venho buscar a água para aquelas pessoas.
– Mas um dos trabalhadores pode um dia apanhar-te aqui.
– A maior parte dos trabalhadores quando me vê aqui no piso inferior já nem liga. O meu pai é o responsável da sala das máquinas, por ser o mais experiente de todos, e desde pequeno que faço do piso inferior o meu parque de diversões. – Um sorriso sombrio desenha-se no seu rosto fechado, um gesto que me parece incongruente com as suas palavras.
– O depósito parece estar cheio – comento ao olhar para cima, sem conseguir continuar a fixar-me no semblante de tristeza que carrega. − Se nós já aqui estamos na nave há tanto tempo, não deveria já estar a meio ou mesmo quase a acabar? Isso seria um sério problema. Sem água não sobrevivemos.
– Esta máquina não serve apenas para armazenar a água, ela é capaz de gerá-la. Assim que o nível de água desce, a máquina estimula as moléculas de água para se multiplicarem. É um processo lento, quando se retira uma grande quantidade de água, o depósito demora cerca de vinte e quatro horas a voltar ao seu nível inicial. É por isso que, sempre que aqui venho, retiro pequenas quantidades, para que não seja algo demasiado notório.
– É incrível!
É tão absurdo nem sequer nunca me ter perguntando de onde vinha a água que usamos na comunidade, não querer saber sequer se a água era ou não um recurso ilimitado a que tínhamos acesso. Talvez por nunca ter sido um assunto discutido em aula ou nas discussões semanais. De qualquer forma, isso faz-me sentir demasiado ingénua.
Ingénua. Talvez essa seja mesmo uma boa palavra para me descrever.
– Salvador, eles podem ter água, mas a higiene deles continua a ser um problema.
– Sim, também me preocupo com isso. Mas não é fácil ter acesso a produtos de higiene.
– Talvez... talvez eu tenha uma solução – informo-o ao ter uma ideia. Como é que ainda não tinha pensado nisto? – Eu posso pedir ao Matias que me forneça alguns produtos de higiene. Ele trabalha no laboratório de saúde.
– E ele dava-te os produtos assim, sem mais nem menos?! Sem sequer perguntar para que precisavas deles? – a voz do Salvador está impregnada de ceticismo.
– O Matias faz tudo para me impressionar... – admito, corando ligeiramente. Por alguma razão não gosto da ideia de estar a falar disto ao Salvador. – E eu podia dizer que gostava de ter produtos de higiene só para mim, sem ter que os partilhar com as outras raparigas, e sem ter de dar satisfações da quantidade que gasto com o meu cabelo – explico tentando passar a mão direita pelo meu cabelo ruivo encaracolado, mas fracassando ao ficar com os dedos presos em enredados caracóis.
– E achas que isso ia funcionar?
Nós aqui na nave temos uma casa de banho para as mulheres e outra para os homens, que a cada semana são equipadas com os produtos de higiene suficientes para partilharmos entre nós. Nem mais, nem menos do que isso.
Sempre que tomo banho certifico-me que não gasto mais do que 4 a 5 gotas. Sei que se gastar apenas uma gota a mais, posso estar a deixar alguém sem produto suficiente para se lavar. Acaba por ser um pouco frustrante, tendo eu o cabelo que tenho... Mas é o mais acertado a fazer.
Então, não há dúvidas de que é uma boa desculpa. Pode mesmo funcionar.
– Claro, ele não tem razões para desconfiar de mim. Vale a pena tentar.
– Até pode ser, mas eu não quero que o faças – admite o Salvador com o seu tom de voz gelado e sério.
– Porquê?
– Se o fizeres, vais sentir que lhe deves algo. Ele próprio é capaz de te deitar isso à cara. E ambos sabemos o que é que o Matias quer de ti – conclui com uma acidez na voz que me faz querer abraçá-lo. Que me faz querer agarrá-lo e garanti-lhe que isso nunca irá acontecer. Eu não gosto do Matias, não me importa o que ele sente por mim. Não é a ele que eu quero.
– Eu sei tomar conta de mim, Salvador. E também sei muito bem aquilo que eu quero e aquilo que eu não quero. Entre mim e o Matias não se vai passar nada, a não ser que eu queira.
– E tu queres? Quer dizer... – hesita, passando a mão pelo cabelo, um gesto a que já me começo a habituar. – Eu vi quando o Matias pôs a mão sobre a tua no refeitório...
– Tu viste?! – questiono atónita. Não era suposto o Salvador ter visto aquilo. O que é que ele pensará de mim agora? – Ele apanhou-me desprevenida, eu não quero nada com ele. Nunca quis.
O Salvador abana simplesmente a cabeça de forma afirmativa. E não acrescenta mais nada. Fica calado e quieto a olhar para a grande máquina geradora de água que ocupa o centro daquela sala. Estará ele a concordar com a minha ideia para resolver o problema de higiene das pessoas da sala secreta ou com o facto de eu não querer nada com o Matias?
Ficamos em silêncio a vigiar aquela grande máquina como se ela pudesse, de repente, ganhar vida e começar a fugir.
Na minha cabeça, os pensamentos correm, voam.
Porque é que o Salvador estava tão curioso para saber o que eu sentia pelo Matias? Porque é que ele estava tão preocupado com a ideia de o Matias obter aquilo que ele quer de mim?
Não sei as respostas a estas perguntas e isso deixa-me insegura. Sinto-me triste por não conhecer o Salvador ao ponto de perceber o que ele quer dizer, sem sentir a necessidade de lhe perguntar.
Ficamos assim por uns longos e martirizantes minutos.
Quando o Salvador se vira de costas para a máquina e começa a andar, apresso o passo para caminhar lado-a-lado com ele. Não é uma tarefa difícil e rapidamente consigo adaptar o meu ritmo ao dele. Pelo canto do olho, atrevo-me a olhar na sua direção. Um sorriso subtil destaca-se por entre a escuridão do seu misterioso rosto. Um sorriso que tem a capacidade de, por momentos, acelerar o meu coração.
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