Capítulo 22

– Eu... vou deixar-vos a sós – diz o Salvador assumindo rapidamente a sua postura rígida. – Vou já entregar a mensagem que me pediste, Aurora.

Para quê disfarçar, pergunto-me ao ver o Salvador desaparecer de vista ao virar a esquina daquele corredor. A Analu não vai acreditar se eu disser que queria enviar uma mensagem a alguém. Muito menos a esta hora. Mesmo antes da hora do jantar, onde toda a comunidade se encontra no refeitório.

– Claro – respondo, por fim, percebendo que não há volta a dar. – Vamos para o quarto, lá estamos mais à vontade.



– Vais continuar a mentir-me? – pergunta-me a Analu. Estamos as duas sentadas na minha cama, de frente uma para a outra. – Vais dizer-me que a tua relação com o Salvador é puramente profissional?

– Não – respondo. Não estou a responder às duas perguntas que me colocou, apenas à segunda, mas não vou dizer-lhe isso. Não lhe posso dizer que vou contar toda a verdade, porque isto é uma coisa que envolve muitas pessoas, não se trata apenas de mim. – A verdade é que eu e o Salvador temos estado a tentar conhecer-nos melhor nestas últimas semanas. Não havia nenhum livro, é com o Salvador que tenho passado tanto tempo do meu dia. E, sinceramente, estou a gostar mesmo de passar este tempo com ele.

Já está. Não é toda a verdade, mas é parte dela, a única parte que a Analu precisa de ficar a saber agora.

– Claro! – grita a Analu, fazendo-me sobressaltar. – A mensagem que me pediste para entregar ao Salvador, só para o fazer ir ter contigo...

– Sim, era eu a tentar aproximar-me dele. Quer acredites ou não, não é tarefa fácil.

– Oh, eu acredito! O Salvador não fala com ninguém, e sempre que alguém é minimamente amigável ou simpático, ele é tão... frio, que não há quem aguente.

A Analu não conhece o Salvador, só conhece a versão que ele tenta passar à comunidade. Se eu lhe dissesse que o Salvador é capaz de rir, ela não iria acreditar. Não a julgo, a Aurora de há uns dias atrás também não acreditaria.

– Mas vocês, há bocado, pareciam... íntimos – continua ela parecendo focar-se em mim. Sinto que estou a ser analisada, cada movimento, cada expressão. – O Salvador nem parecia o mesmo. Depois viu-me e voltou a ser o mesmo imbecil de sempre, mas a questão é: como? Como é que conseguiste aproximar-te dele?

– Ele não é o monstro que pintas, muito pelo contrário. O Salvador pode ser... difícil, contudo basta insistires um pouco e... podes surpreender-te com o que encontras por baixo daquela capa de senhor sério.

– Eu cá continuo a achar que não é difícil, mas sim impossível o termo correto. Prefiro acreditar que a minha amiga tem poderes mágicos.

Rimo-nos as duas da ideia. Não interessa o que a Analu pensa do Salvador. Nem todos gostamos das mesmas pessoas, não a posso recriminar por não gostar dele. O que interessa é que agora não vou precisar de mentir tanto à minha amiga. Sempre que for para a sala secreta, só preciso dizer-lhe que estive com o Salvador. A partir de agora, vai ser mais fácil, e até posso passar o tempo que quiser na sala secreta.

– Só não contes nada a ninguém, Analu. Eu e o Salvador estamos a tentar ser discretos.

– Porquê?

– Porque... não queremos que toda a gente comece a fazer perguntas e a fofocar sobre nós. Sei que não é usual pessoas com diferente estatuto, como eu e o Salvador, sermos... – Não sei qual a palavra que descreve a relação que temos. Acho que somos amigos, mas, por alguma razão, essa palavra não parece exprimir bem o que sinto por ele. – Próximos.

– Eu acho isso uma estupidez. Eu ando com quem quiser e bem me apetecer, falem à vontade, não me interessa o que dizem sobre mim.

– Eu sei. – Apetece-me dar um abraço à minha amiga, por ela ser como é. – Mas nem todos são como tu.

A Analu não liga a títulos ou ao estatuto das pessoas. Ela não liga ao que os outros pensam ou dizem dela. Ela basicamente é diferente de toda a gente da comunidade. Até de mim.

Eu também não me importo com o lugar em que alguém está na hierarquia da nossa comunidade, embora tenha de admitir que me importo um pouco com o que os outros pensam de mim. Importo-me com a ideia de, neste momento, toda a comunidade estar a pensar que sou doida por ter enfrentado o 1º Comandante com aquelas estúpidas perguntas.

Eu gosto de pessoas e preciso que elas gostem de mim, que se importem comigo, que cuidem de mim. Se as pessoas pensarem mal de mim, talvez me abandonem, talvez acabe por ficar sozinha. E essa ideia aterroriza-me.

Acho que é por isso que me irrita tanto o facto daquelas 30 pessoas estarem dentro daquela sala sem que ninguém saiba disso. Sei que elas se têm umas às outras, sei que me têm a mim e ao Salvador, mas é como se estivessem isoladas de tudo. Completamente abandonadas. Sozinhas no universo.

– Não te preocupes. O vosso segredo fica em boas mãos – garante-me ela, e eu sei que é verdade. – Mas explica-me melhor essa história. O que é que sentes, exatamente, por ele?

Também ela? Já não me bastava ter a Teresa sempre a tentar saber se houve avanços na minha relação com o Salvador... Agora, é a Analu.

– Não sei. Só sei que quando estou com o Salvador me sinto melhor, sinto-me mais viva do que nunca.

Vejo no olhar da Analu um brilho de entendimento.

Sinto vontade de lhe perguntar o que é que ela percebeu nas minhas palavras, que nem eu própria percebo. Será assim tão óbvio qual o sentimento que nutro por ele?

É verdade quando digo que não sei o que sinto por ele, contudo, sei que o que hoje senti por ele foi muito diferente do que aquilo que se sente por um amigo. Algo mais forte, algo tão intenso que fez com que a simples tarefa de respirar se tornasse algo extremamente difícil de realizar.

Saber isto para mim é mais do que suficiente, o nome a que se dá a um sentimento como este é um simples detalhe.



– Tu também pensas mal de mim? – questiono ao meu pai.

Estou sentada, com as pernas cruzadas uma sobre a outra, na cama dos meus pais. O meu progenitor está sentado na sua secretária a escrever qualquer coisa no computador.

– Não – responde-me voltando a sua atenção para mim. – Porque dizes isso?

– Porque todos na comunidade acham. Eu percebi que no refeitório não se falava doutra coisa senão das perguntas que fiz ao 1º Comandante.

– Até podiam todos estar a falar de ti, mas nem todos estavam a falar mal.

– Quem é que não estava a falar mal de mim? Tu e a mãe? – Lembro-me também do Salvador e da Analu. Sei que eles também não o fariam, mas decido não mencionar isto ao meu pai. A ideia de falar do Salvador ao meu pai é, simplesmente, estranha.

– Aurora, surpreendeste todos. Foi só isso. Confesso que até a mim me surpreendeste. Nunca te imaginei capaz de... – hesita. Vejo-o a tentar procurar a expressão mais adequada para aquilo que fiz, mas sem sucesso. – No entanto, acho que tudo o que disseste fez sentido, o 1º Comandante é o nosso líder e nós mal o vemos, não sabemos quase nada sobre ele.

– Mais ninguém pensa como tu, pai. Os outros encaram a minha intervenção como se eu tivesse duvidado do lugar do 1º Comandante como líder na nossa comunidade. – O que não deixa de ser verdade. Sabendo agora tudo o que sei, não acho que ele seja um líder para nós. Não acho que seja um líder, ponto final.

– Mais tarde ou mais cedo, todos vão acabar por esquecer.

– Não tenho tanta certeza disso. Pelo menos o 1º Comandante não vai esquecer de certeza.

– E depois? Isso incomoda-te?

– Nem um pouco. Não me importo com o que um homem que... mal conheço, pensa de mim. – Quase que me ia descaindo. Estou tão habituada a não esconder nada do meu pai, que quase ia revelando um segredo que nem meu é. Tenho que ter mais cuidado.

– É assim que se fala – elogia-me o meu pai voltando a concentrar-se no que estava a fazer no computador antes de eu começar esta conversa.

Não é que me incomode ou que me preocupe com o que o 1º comandante pensa, é só que tenho medo que me coloque na sua lista negra. Ele perguntou-me o nome, não perguntou? Era para isso de certeza, para registar o nome da pessoa que se atreveu a desafiá-lo.

Agora, nunca irei ser promovida, por mais filhos que tenha.

E daí? Neste momento, a minha carreira é tudo menos uma prioridade. Não é que ele possa fazer muito mais do que isso, acho.

– Onde está a mãe?

– Foi falar com os pais – responde-me com a tristeza a invadir-lhe a voz.

Os meus avós maternos são... complicados. Para mim é como se nem sequer fossem meus avós.

Não foi escolha minha, foi deles. Eles é que me ignoram, evitam-me desde que nasci. Acho que para eles é como se nem sequer tivesse nascido. Mas esta história é ainda mais antiga que isso.

Os pais da minha mãe nunca quiseram que ela se casasse com o meu pai. Pior, opuseram-se a isso. Não sei o motivo, mas nunca gostaram do meu pai. No entanto, a minha mãe, por muito difícil que tivesse sido, optou por seguir o coração.

Por uns tempos, os pais dela deixaram de lhe falar, e agora falam em ocasiões muito pontuais. A minha mãe não lhes perdoa renegarem a própria neta, mas também não é capaz de lhes voltar as costas por completo.

Neste momento, devem estar a dizer à minha mãe que sempre tiveram razão, que eu sou tão atrevida e insolente que não posso ter o sangue deles. Que a minha afronta ao 1º Comandante só mostra que a minha mãe nunca deveria ter casado com o meu pai.

Pensem o que quiserem! Essa sou eu, quer queiram quer não.

Como se eles fossem perfeitos! Eles nem querem saber da felicidade da própria filha, só conseguem olhar para os seus próprios umbigos. Eu é que tenho vergonha que eles sejam meus avós.

– Devem ter adorado ver-me na reunião semanal a fazer aquelas perguntas.

– Sabes, também pensei nisso – profere o meu pai voltando-se novamente para mim. – Eles não valem a pena, vão sempre arranjar qualquer coisa, por mais pequena que seja. Para eles, nós estamos sempre errados. Mas sabes que mais – diz sentando-se na cama, mesmo à minha frente. – Tu, hoje, mostraste ter fibra. Fizeste-me lembrar tanto a tua bisavó. Ela dizia o que lhe vinha à cabeça... foi a mulher mais corajosa que eu alguma vez conheci. E algo me diz que tu és tão, ou mais, corajosa que ela. Então, quem perde são eles. Eles é que perdem uma neta única e a mais especial de todas.

Acho que ele diz isto só por ser meu pai, contudo sabe bem ouvi-lo. Gosto da ideia de ser comparada com a minha bisavó, apesar de não perceber ao que se refere quando a descreve como corajosa.

Sempre admirei a minha bisavó. Sempre a achei incrível. Todas as histórias que ela me contava, todas as palavras que usava para me incentivar ou para me convencer de algo. Era a melhor contadora de histórias e a mulher mais persuasiva que já conheci, sem sombra de dúvidas. No entanto, corajosa nunca mostrou ser. Também nunca mostrou o contrário. Ou nunca me deparei com essa coragem, ou ela nunca a quis mostrar.

– Eu sei que tu e a mãe me adoram e isso é o que importa.

Abraço o meu pai.

É tão bom estar nos seus braços.

– Também quero – ouço a voz terna da minha mãe atrás de mim.

Olho para trás ainda a tempo de a ver encaminhar-se de forma sorridente na nossa direção. Os seus longos braços enlaçam o meu corpo e ainda tocam no tronco curvado do meu pai.

Ficamos os três juntos, num abraço que me faz sentir indestrutível, que me faz esquecer de tudo e todos.

Foram os meus pais que me tornaram na pessoa que sou hoje. Devo-lhes a minha vida, mas devo-lhes muito mais que isso.

E permanecemos, assim, perdidos num abraço que parece durar eternamente.

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