Capítulo 21
Lá está a minha cadeira. Vazia, à minha espera.
Passei o dia todo a rezar para que este momento não chegasse. Não me importei quando a Teresa me perguntou do Salvador, nem quando tive que aturar as piadinhas do Matias há hora do almoço. Não me importei com nada, porque nada é pior do que isto.
Quando acabei o meu trabalho na enfermaria, nem vontade tive de ir para a sala secreta. Não podia ir para lá, sabendo que depois ia estar a olhar para o homem que negou a vida a todas aquelas pessoas. Não podia.
Decidi antes ir para o meu quarto. Lá não teria de ver ninguém, nem falar com ninguém. Podia apenas mergulhar nos meus pensamentos, vezes e vezes sem conta. Talvez não seja a escolha mais saudável, mas o que é que isso interessa? É o local onde sabia que me ia sentir melhor. Menos sufocada.
Sento-me na cadeira, que nunca me pareceu tão gelada. Aliás, toda esta sala parece, de repente, tão mais fria.
A Analu, que está sentada ao meu lado, vai tecendo comentários. Eu vou respondendo, aqui e ali, tentando não prolongar a conversa. Quero silêncio, é isso que quero. Mas se também não responder nada, ou admitir que não me apetece falar com ninguém, ela vai estranhar e vai começar a fazer perguntas, o que é, exatamente, o contrário do que eu quero.
O meu coração acelera.
É ele. O 1º Comandante está mesmo aqui, a umas cadeiras de distância de mim.
Sinto o meu sangue a ferver, alimentado pela raiva. Queria tanto levantar-me e revelar a estas pessoas todas o verdadeiro homem que está à nossa frente. Mas não posso.
– Boa noite. Espero que estejam todos bem – diz o 1º Comandante.
Como é que nunca antes reparei que a voz dele soava tão falsa? Como se ele se preocupasse connosco! Um homem que faz o que ele fez não tem coração. Não se preocupa com ninguém, a não ser com ele próprio.
Aperto ainda mais as minhas mãos, começando a sentir os nós dos dedos a doer.
– Esta semana que passou não podia ter corrido melhor. Recebi notícias ótimas de todos os laboratórios, que me deixaram tão orgulhoso do trabalho que temos vindo a desenvolver na nossa comunidade.
Estremeço. Ele não é um de nós! Como se atreve a meter-nos todos no mesmo saco? Este é um saco que não lhe pertence! Nós temos feito coisas pela comunidade. Agora ele? O que é que ele tem feito além de ditar regras e vetar a entrada na nave de pessoas que têm o mesmo direito que ele de aqui estar?
Olho para trás à procura do Salvador. Quero ver se ele está a reagir da mesma forma que eu.
Deparo-me com o Salvador que todos conhecem. O Salvador calmo, frio e sério. Quase parece que isto não o incomoda.
Onde está o ódio que ainda há dias vi no olhar dele? O ódio que era dirigido a este homem que está à frente dele, à frente de todos nós?
Sinto-me desiludida por apenas eu não conseguir esconder o que estou a sentir.
Mas depois vejo. As mãos dele estão completamente fechadas a ladear o seu corpo. É um gesto discreto, que ninguém vê, a não ser eu. Consigo perceber a força com que contrai os músculos das mãos. Um gesto que mostra que isto também não é fácil para ele.
– Porque estás a olhar para o Salvador? – pergunta-me a Analu fitando-me incrédula.
– Não é para o Salvador – respondo voltando a virar-me para a frente. – Estava só a olhar para as pessoas da base da hierarquia, no geral.
– Sabes que não acredito em ti, não sabes? Essa tua história com o Salvador está mal contada... Passa-se alguma coisa e tu não me queres dizer.
– Falamos mais tarde, esta não é a altura mais indicada – digo ao ver algumas pessoas a olhar na nossa direção. Uma coisa é a minha amiga saber que eu e o Salvador andamos mais próximos, outra completamente diferente é toda a comunidade ficar a saber disso.
– Mas falamos mesmo – garante-me a Analu ao perceber a minha necessidade em adiar a conversa.
Mal posso esperar, penso ironicamente.
– Já o laboratório de saúde – continua o 1º Comandante. Não sei o que disse sobre os outros laboratórios, mas sinceramente não me interessa nada do que ele tenha para dizer. – Surpreendeu com um medicamento que trata a asma de forma definitiva, agora já é oficial. Todos os testes realizados a pessoas que o tomaram confirmam. – Já sabia disso, recebemos uma mensagem do laboratório hoje a contar-nos a novidade. – Outra notícia que vos tenho a transmitir é que o Paulo Santos e a Daniela Sacramento irão casar-se no sábado.
Não muito longe de mim vejo dois jovens a levantarem-se. Os noivos, presumo.
As pessoas à sua volta começam a bater palmas e passado um bocado todos o estão a fazer, incluindo eu, apesar de não estar com disposição para tal. Mas eles não têm culpa, por isso tento parecer mais animada batendo as palmas com mais firmeza.
– Quem quiser assistir ao casamento, – profere o 1º Comandante assim que volta a reinar o silêncio na sala, – este realizar-se-á, como de costume, na pequena capela por volta das 19 horas. Serão todos muito bem-vindos. – O casamento não é dele, não é a ele que cabe dizer se somos ou não bem-vindos, penso irritada. – Agora que já disse tudo o que tinha para dizer, alguém tem alguma questão a colocar?
– Se pudesse mudar alguma coisa de errado que fez no passado, o que mudava? – pergunto-lhe, levantando-me da cadeira, em voz alta o suficiente para que todos os presentes na sala oiçam. Esta minha pergunta faz com que se propaguem inúmeros murmúrios pela sala.
Foi um impulso. Não consegui aguentar, mas não estou arrependida de ter colocado essa questão. Sei que, muito provavelmente, não vai admitir à frente de toda esta gente aquilo que de mais tenebroso fez no passado, nem mesmo estando arrependido disso. Contudo, eu só preciso que ele mostre algum arrependimento, alguma mágoa no olhar.
Basta um olhar.
Um olhar para mostrar que eu e o Salvador estamos enganados. Para mostrar que não há razão para tanto ódio, para tanta raiva. Não vai fazer com que passe a gostar dele de novo, mas, pelo menos, tornará possível tolerá-lo.
– Silêncio, por favor – pede o 1º Comandante. Os seus olhos continuam a transmitir a mesma altivez e segurança de sempre. A pergunta parece não ter surtido qualquer efeito nele. – Não percebo a relevância dessa questão.
– Bom, é o nosso líder. Não acha ser importante sabermos um pouco mais sobre si? – a confiança inunda a minha voz.
– Talvez... – responde. É quase impercetível, mas eu noto uma pequena hesitação da parte dele. Acho que ele não está a gostar do rumo desta conversa. Será que fui longe de mais? – Como te chamas, jovem?
– Aurora Bacelar – informo-o, sem medo.
Não me importo que ele agora saiba o meu nome. Que o decore, que nunca o esqueça. Que ele se lembre sempre de mim, a rapariga atrevida que o enfrentou sem receios. Não tenho medo dele, nem da sua posição aqui dentro.
OK, isso não é bem verdade. Se fosse, desmascarava-o já aqui.
A verdade, é que não sei do que ele é capaz, e isso assusta-me um pouco. Tendo em conta o seu passado, acho que se pode esperar tudo deste homem.
– Estou a ver... – murmura como se, de repente, tudo fizesse mais sentido. O que é que o meu nome lhe diz? Terá ele já ouvido falar de mim? Mal aparentemente, o que é difícil de imaginar. Não é que eu seja um anjo, apesar de a Teresa pensar que sou um, mas não acho ter a fama de respondona, ou atrevida, ou audaz. – Respondendo à tua pergunta, acho que passava a não questionar no final das reuniões se alguém tinha alguma dúvida, para não aparecerem perguntas como essa.
Ouço pequenas gargalhadas em toda a sala.
Não achei piada. Ele conseguiu fugir da minha pergunta de uma forma tão astuta que ninguém deu conta disso. Uma manobra de diversão que fez com que toda a gente se esquecesse da possibilidade de o nosso 1º Comandante cometer erros, e, ao mesmo tempo, demarcar que é sempre ele que manda. Não vale a pena querermos armar-nos em espertos e fazermos perguntas difíceis, porque o 1º Comandante, simplesmente, não está para isso.
No entanto, sem saber, ele acabou por responder à minha pergunta. Se ele se tivesse arrependido do que fez àquelas pessoas que estão na sala secreta e a outras que já lá estiveram, mas infelizmente acabaram por morrer, isso seria visível na sua expressão, no seu olhar... Em alguma parte do seu corpo, estaria a marca do seu arrependimento e mágoa, pelas vidas que acredita ter deixado para trás. Mas não. Quando lhe fiz a pergunta, a recordação desses dias nem sequer lhe passou pela mente. Disso tenho a certeza.
Abandono a sala assim que o 1º Comandante dá por terminada a reunião. Não quero ficar mais aqui, no meio destas pessoas todas que vão ficar a falar, pelo menos, uma hora daquilo que fiz. Não estou para isso, estou demasiado irritada.
– Posso saber o que foi aquilo?
Volto-me para trás e vejo o Salvador.
Estamos os dois sozinhos no corredor que leva aos quartos das raparigas. Era para o meu quarto que me dirigia antes de ele aparecer. Deve ter-me seguido.
O Salvador está diante de mim, a uns meros dois passos de distância, especado a olhar-me. Completamente alterado, como se estivesse... como se estivesse furioso comigo. Não percebo porque é que ele está assim, eu não fiz nada de errado.
– Aurora, tu enlouqueceste? Porque é que te puseste a fazer aquelas perguntas?
– Não foi nada de mais.
– Nada de mais?! Aurora... – diz passando nervosamente a mão pelo cabelo, mas este teimou em continuar desgrenhado. – O que é que querias com aquelas perguntas? Que ele admitisse à frente de toda a gente o que fez? És assim tão ingénua?
– Não, não era isso que eu queria – respondo desviando o olhar para o chão. Não quero olhar para ele. Vê-lo assim tão irritado por minha causa faz-me sentir culpada. Não era a ele que eu queria atingir. – Eu só... Eu queria ver nos olhos dele algum sinal de arrependimento... Só queria que ele fizesse o ódio que eu estava a sentir por ele desaparecer, só isso.
– E conseguiste?
– Não – respondo simplesmente.
Sinto os meus olhos húmidos.
Não posso chorar. À frente dele não. Mas estou tão triste. Triste por ser capaz de sentir ódio por alguém. Triste por ter deixado o Salvador neste estado.
– Aurora, olha para mim – pede-me num tom de voz mais controlado, mais dele.
Não quero olhar. Não vou olhar. Por muito que me peça, vou continuar a fitar o chão, até ele se ir embora.
– Olha para mim – pede-me num fio de voz grave. Sinto-me tentada a obedecer, mas resisto. – Aurora... – Coloca a mão ternamente no meu queixo e posiciona-o de forma a que os nossos olhos se encontrem. A mão dele demora-se na minha pele. Será que também ele sente esta corrente de energia? Será que sempre que ele me tocar, irei sentir isto? – Não percebes que tenho medo. Tenho medo que ele te faça alguma coisa. Não conseguiria... – Retira, por fim, a mão do meu queixo e passa-a novamente pelo cabelo.
Medo.
Medo por mim.
Nunca pensei ouvir isso da boca do Salvador. Estou a conseguir entrar. Pouco a pouco, ele vai mostrando-me um Salvador que é capaz de sentir medo, ansiedade, raiva, ódio, felicidade. Tantas emoções num homem que eu julgava não ter nenhuma.
– Promete-me que não o vais voltar a fazer, Aurora.
– Eu prometo. Mas admite que o gostaste de ver a hesitar.
– Confesso que se não estivesse tão apreensivo, iria adorar essa parte.
Sorrimos um para o outro.
Eu sabia que ele ia ficar orgulhoso de mim. OK, não foi exatamente isso que ele disse, mas foi algo parecido. O que ele quis dizer é que, se não fosse tão arriscado, me incentivaria a fazê-lo novamente, só para ver o 1º Comandante sem saber o que dizer, mais uma vez. Orgulhoso, sem dúvida.
– Aurora, posso falar contigo? – questiona a Analu estacada no corredor, onde apenas nos encontramos eu e o Salvador bastante próximos e a rirmos cumplicemente.
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