Capítulo 16

Ouço alguém tossir, e, por momentos, abstraiu-me de todos os pensamentos que me invadem a mente.

Sem dar por isso, vejo o meu corpo a dirigir-se na direção daquele som, que me parece estranho. Não é uma tosse qualquer. É uma tosse demasiado seca, demasiado cansada.

Ajoelho-me rapidamente em frente do pequeno rapaz que produziu o som que não me sai da memória. Ninguém me impede de o fazer.

Numa análise rápida, perscruto-lhe o rosto delgado, onde se encontram uns pequenos olhos verdes já quase sem luz, um pequeno nariz demasiado seco e uns lábios gretados. A pele está tão suja como a dos restantes habitantes da sala, mas muito mais baça e pálida. O rapaz aparenta ter não mais de sete anos de idade, pelo menos a sua estatura óssea assim o parece indicar.

Encosto a palma da minha mão à sua testa suada. A sua temperatura parece um pouco acima do expectável, mas nada demasiado alarmante. Forço a boca dele a abrir-se para poder analisar a sua amígdala e o aspeto da sua saliva. Ele não oferece resistência, parece demasiado cansado para isso. Parece nem sequer ter consciência de eu o estar a analisar. Por último, analiso atentamente os seus ouvidos e os seus olhos.

Quando estou prestes a dar por concluída a análise, ouço outra pessoa a tossir. Exatamente o mesmo som, disso não tenho dúvidas. Quando olho nessa direção vejo um outro rosto jovem e pequeno igualmente pálido, com os mesmos olhos ausentes e uns lábios gretados.

– Eles estão doentes – afirmo convicta desse facto, mas sem qualquer ideia da doença exata que possuem. Nunca antes vi nada igual.

– Sim – confirma o Salvador num tom de voz de puro desanimo. – Já tentámos de tudo. Eu roubo medicamentos, mas não sou médico. Nenhum de nós aqui é. Não faço a mínima ideia de que medicamento eles precisam.

– De momento, damos-lhes um medicamento que parece estar a suprimir algumas das dores agudas que tinham por todo o corpo – acrescenta a mulher que aconchegou o pequeno rapaz, que eu estava a analisar, protectoramente nos seus braços, assim que voltei para a minha posição de há pouco, de frente para o Salvador. – Mas já há uma semana que o fazemos, e eles não parecem melhorar.

– Isto não é sítio para eles. Para nenhum de vocês – digo fitando todos os olhos que estão há minha volta. – Este sítio não tem condições. Não vão sobreviver se continuarem aqui.

– Engana-se, menina, – responde-me, novamente, a senhora dos olhos negros sem vida. Sinto-me mal por ainda não saber o seu nome. Já me partilhou um pouco da sua história, mas não o seu nome. Talvez considere que eu não mereça tal confiança, afinal de contas, eu sou a estranha aqui. – Já muitos estiveram doentes nesta sala e recuperaram. Já muitos estiveram doentes e morreram. E vai continuar a ser sempre assim. Claro está, eramos muito mais no início desta longa viagem ao desconhecido. Alguns novos seres nasceram nesta simples sala, embora nunca conseguissem ser o número suficiente para sequer igualar as almas que daqui partiram. O nosso número reduziu para metade, contudo ainda aqui estamos muitos, e vamos continuar a existir sempre.

– Como podem ter a certeza? – pergunto procurando nos olhos do Salvador algum vestígio de que compreende a loucura que tudo isto é. O risco que estas pessoas correm de desaparecerem todas de um momento para o outro é demasiado elevado. Ele não pode compactar com isto.

Vejo-o acenar ligeiramente com a cabeça, como que a dizer-me que, na verdade, compreende-me. Então como pode ele ver o que eu vejo, perceber uma verdade que está à vista de todos, mas mesmo assim não fazer nada para salvar estas pessoas da morte certa.

– Não temos. Mas não existe outra opção. – responde, por fim, o Salvador.

– É claro que existe. Tem de existir, – grito exasperada. – Talvez o 1º comandante tenha mudado, isso já foi há tanto tempo, – estremeço com a hipótese, há apenas alguns minutos chamei-lhe de assassino, e agora sugiro algo que parece ser absurdo. No entanto, o arrependimento... a mudança é algo possível, certo? Será que também se aplica a um ser que recusa a oportunidade de vida a tantas pessoas?

– Não sejas ingénua, Aurora. – Ouvir estas palavras vindas do Salvador, magoa-me. Só vêm confirmar uma hipótese que nos últimos tempos tem-me passado pela cabeça. Mas ouvir outro alguém a descrever-me como ingénua...não, ouvir o Salvador a descrever-me dessa forma faz-me sentir fora de órbita. Como se tudo o que eu soubesse, fosse de repente posto em causa. Porque é que ele tem este efeito em mim?

– Talvez isso não tenha acontecido, talvez ele não tenha mudado, mas se estas pessoas todas saírem daqui, e os restantes habitantes da nave os virem, o 1º comandante não tem outra hipótese se não aceitar que vivam entre nós – contraponho confiante do meu argumento. Eu tenho de mostrar-lhe que ingénua é coisa que não sou.

– Não passa de uma hipótese, Aurora. E eu tenho uma muito mais credível que essa. – De repente, toda a certeza que jurava ter no meu argumento evaporou-se. Não foi só as palavras que o Salvador utilizou, mas mais a forma como as disse. Com aquele seu tom firme e frio consegue abalar a confiança de qualquer um. – Assim que o 1º comandante as visse, ia rapidamente espalhar a ideia, naquela sua forma carismática de convencer os outros, de que estas pessoas possuíam uma doença qualquer terminal e extremamente contagiosa, – diz com um tom azedo que me provoca calafrios. É claramente visível o ódio que o Salvador tem ao 1º comandante. Não é de estranhar. Mas, por momentos, penso se este ódio todo não terá ainda outras razões para existir. – Não seria difícil de acreditar. Olha para eles.

O meu olhar volta a concentrar-se nas pessoas à minha volta. Mas não o precisava de fazer, sei perfeitamente o que ele quer dizer. Franzinas, sujas, pálidas. Todas estas pessoas podiam muito bem passar por doentes. Foi só uma forma que arranjei de fugir ao olhar gelado e cheio de ódio do Salvador. Eu sei que esse ódio não me é direcionado. Porém ver aqueles olhos azuis a faiscar de raiva e de ódio, emoções tão negativas, faz-me ter medo. Medo de um dia eu ser capaz de vivenciar tais emoções.

Por muito que me custe admitir, o Salvador tem razão. Se todas as pessoas da nave acreditassem que poderiam ficar doentes, só por contactarem com estas pessoas, iam deixar de se questionar de onde elas vinham, ou como apareceram, iam apenas querer vê-las longe. Iam deixar o 1º comandante fazer tudo o que quisesse com elas, desde que a sua própria saúde estivesse assegurada.

Porque é que as pessoas só olham para o seu umbigo? É assim tão difícil pôr a vida dos outros à frente da nossa própria vida? Sim, agora que penso nisso, é algo demasiado altruísta, algo que poucos ou nenhuns são capazes de fazer. Não, o Salvador, o pai dele e o avô conseguiram fazê-lo. O Salvador põe a vida destas pessoas todas em primeiro lugar, quando decide roubar os recursos da nave, quando decide vir cá abaixo a esta sala, quando decide odiar o 1º comandante. Seria eu capaz de fazer semelhante coisa? Serei eu altruísta?

– Como vês estamos de mãos e pés atados. Contudo, eles estando aqui sempre têm algumas hipóteses de sobreviver. Sair está fora de questão – informa o Salvador, como se fosse uma verdade inquestionável. – Por isso, peço-te, Aurora, esquece tudo isto. Finge que nada aconteceu. Não podes dizer a ninguém o que aqui viste ou o que partilhámos contigo. Sei que pode ser algo difícil para ti... – acrescenta sorrindo-me, muito provavelmente lembrando-se da perseguição que lhe fiz durante estas últimas semanas. Agora que penso nisso, talvez tenha exagerado um pouco. Mas, de certo, que qualquer outra pessoa no meu lugar faria a mesma coisa. Ou será que não? Que vergonha! Sinto o meu rosto ruborizar ligeiramente com a ideia. – No entanto, é imperativo que o faças. Todas estas vidas estão na tua mão, inclusive a minha.

Sinto tudo ao meu redor a desfocar-se. Sinto-me tonta, enjoada. Por momentos, tenho a certeza que vou desmaiar. Mas depois vejo os olhos do Salvador a perscrutar-me, a analisar-me, a tentarem perceber o que estou a sentir, o que estou a pensar. E acalmo-me. Não posso mostrar que sou fraca, que a simples ideia de tantas vidas dependerem de mim, me assusta. Não o posso mostrar, mas é o que verdadeiramente sinto.

Não sinto só medo, sinto uma grande desilusão. Como é que pode o Salvador pensar que eu diria isto a alguém? Não guardei eu todos os seus segredos, mesmo quando não sabia do que se tratavam? Se não contei a ninguém nessa altura, nem mesmo à minha melhor amiga, porque contaria agora?

Acho que é normal. Ele não me conhece, nem eu a ele. Então ele pode pensar o que quiser de mim, não sabe a verdade. Como poderia? Então porque é que o meu coração continua apertado por ele pensar que eu seria capaz de tal coisa? A minha cabeça compreende, o meu coração não.

É óbvio que não vou contar a ninguém. Mas esquecer? Esquecer, nunca.

– Desculpa, Salvador, não vou fazer o que me pedes. – Vejo os seus olhos a ficarem perplexos. Disto ele não estava à espera, e se ele não estava à espera... Talvez não pense tão mal de mim como eu achava. – O vosso segredo está seguro comigo, mas esquecê-lo não posso. E eu vou fazer muito mais do que guardar este segredo, eu vou ajudar-vos.

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