Capítulo 14



‒ Aqui está.

Olho para cima, a sessão já acabou e estão todos a levantar-se e a irem embora do quarto, mas eu ainda me encontro sentada no chão. Vejo o Sr. Ventura diante de mim, com o livro, que parece ser pesado, estendido na minha direção.

‒ Mas... não percebo...

‒ É para ti. Podes entreter-te a lê-lo durante esta e a próxima semana. Só vou precisar dele na próxima sexta-feira, que é quando vou fazer outra sessão de anedotas. Pareceste-me muito interessada nele, e eu não vou precisar dele durante os próximos dias.

Agarro no livro ainda hesitante. É mais pesado do que imaginei e, momentaneamente, o livro tem mais força que eu, fazendo com que o meu braço caia sobre as minhas pernas, que estão entrecruzadas uma na outra. Olho para o livro colorido que tenho na minha mão. Na capa consigo ler em letras grandes e brancas: "É mesmo para rir!". No fundo da capa vejo ainda um nome, que julgo ser o do autor.

Nem estou a acreditar que ele me esteja a emprestar o livro. Vou poder lê-lo, folheá-lo, absorve-lo.

‒ Obrigado ‒ digo-lhe simplesmente, olhando-lhe no fundo dos seus olhos.

Espero que os meus olhos digam muito mais do que isso. Que mostrem o que aquilo significa para mim.



Saio e fecho a porta atrás de mim, deixando o Sr. Ventura ter o descanso que bem merece.

Avanço alguns passos em direção à sala central, mas não resisto e encosto-me à parede, mesmo junto a uma das infindáveis portas daquele corredor, para poder folhear o livro que seguro cuidadosamente contra o peito.

Este é o corredor que dá acesso aos quartos dos seniores de maior prestígio da comunidade. Em tempos, já fizeram muito por todos nós e pelo sistema que nos guia. Agora, aproveitam e desfrutam de uma vida de ócio.

Folheio o livro cuidadosamente. Sei que este livro é antigo, e não me poderia perdoar se danificasse alguma das suas preciosas páginas.

Vejo inúmeras frases estampadas. Algumas palavras escritas à mão substituem palavras impressas, que estão riscadas, mas não totalmente ocultas.

Detenho-me numa das páginas e leio só para mim, uma das anedotas que lá se encontra:

"O Joãozinho vai ter com o pai a correr e mostra-lhe um relógio novo que encontrou na rua.

– Tens a certeza que estava perdido? - Pergunta o pai.

– Estava sim, que eu bem vi um homem à procura dele."

Sorrio com a piada que acabo de ler. Sobre a palavra "rua" encontro palavras escritas que a substituem: "no chão da sala central da nave". Mas mesmo não sabendo o que é a "rua", isso não me impede de achar piada àquela anedota.

– Tu outra vez?!

Desvio os olhos do livro e vejo o Salvador à frente da porta que se encontra a apenas um passo de distância de mim. Estava tão absorta que nem ouvi esta a abrir-se.

– Seguiste-me não foi? O que é que queres desta vez? – Pergunta-me o Salvador, cruzando os braços sobre o peito e encostando-se à porta.

– Eu não te segui. És um bocado convencido não achas. E o que é que estavas a fazer aí nesse quarto?

– O meu trabalho, ou já te esqueceste que sou o mensageiro. É uma resposta suficientemente boa para ti, ou vais começar com as tuas teorias?

– Bom, se me dissesses a verdade... sobre aquilo que nós sabemos, não tinha que começar a investigar e criar teorias.

– O que é isso? – Pergunta o Salvador descruzando os braços e apontando para o livro que eu trago novamente fechado e protegido contra o peito.

– Um livro... – sussurro voltando a tomar consciência do seu peso contra o meu peito. – Que ao contrário de ti não me deixa irritada e nem me mente – acrescento, voltando a fitá-lo com o meu melhor olhar acusatório.

– Eu só te minto para teu próprio bem, Aurora – profere o Salvador num fio de voz doce, que não lhe é característica, e que me faz estremecer. De medo? De raiva? Não sei porque tremo. Mas o Salvador parece reparar e acrescenta num tom de voz monótono e frio, que me é mais familiar. – Esquece-me, esquece tudo o que esteja relacionado comigo. Volta a agir como se eu não existisse... É melhor se assim for.

– É fácil dizer... – protesto agarrando o livro que tenho entre os braços com mais força, fazendo-me doer o peito. Por momentos, penso se a dor terá sido causada por este meu movimento reflexo, ou por aquelas palavras frias que me congelaram por dentro.

– Porque agarras com tanta força esse livro?

– Porque tenho medo que o roubes!

Disparo em passos largos em direção à porta que me levará até à sala central. À porta que me levará para um sítio seguro onde não tenha que vislumbrar o azul mais gelado com que alguma vez me deparei. Não era verdade o que lhe tinha dito antes de fugir dali, mas era algo que sabia que o ia fazer magoar tanto quanto ele me tinha magoado a mim.

Não, talvez esteja a ser ingénua. Talvez nem o tenha incomodado. Porque é que haveria de se preocupar com aquilo que penso dele? E daí que eu pense que ele seja um ladrão mentiroso? Ele deixou bem claro que não me queria ver mais, que não queria mais falar comigo.

Que assim seja. Não é que vá sentir saudades do seu tom de voz monótono e da sua postura rígida.



"No manicómio há um maluco que está a rir-se sozinho. Outro maluco aproxima-se e diz-lhe:

– Porque te ris tanto?

– Bom, eu conto anedotas a mim mesmo e acabo de contar uma que ainda não conhecia!"

Por muito que procure já não consigo achar piada a nenhuma das anedotas que encontro no livro que o Sr. Ventura me emprestou. Nem me incomodo com as palavras que não conheço como "manicómio", sem sequer ler as palavras escritas à mão, que supostamente as substituem.

Não é por não conhecer as palavras que não lhes acho graça, é porque ainda sinto o meu corpo demasiado enregelado.

Nenhuma destas palavras me irá fazer esquecer daquelas que ainda ecoam, como se estivessem bastante vivas, na minha cabeça: "Esquece-me, esquece tudo o que esteja relacionado comigo. Volta a agir como se eu não existisse... É melhor se assim for."

Fecho o livro, desanimada, e coloco-o debaixo da minha cama.

Deito-me e dobro-me sobre o meu próprio corpo, tentando ocupar o mínimo espaço possível do colchão mole. Só me apetecia desaparecer, evaporar no ar.

Fecho os olhos e tento concentrar-me no dia de amanhã. Um dia da minha vida onde sei que não vai existir Salvador.

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