Capítulo 13


‒ Calma, princesa ruiva! Só preciso de fazer o meu check-up mensal. Mas talvez não tenha vindo em boa altura. Se calhar é melhor eu...

‒ Não ‒ interrompo-o ao vê-lo encaminhar-se para fora da enfermaria. ‒ É para isso que aqui estou. Esse é o meu trabalho, por isso senta-te aqui ‒ ordeno ao Matias apontando para a pequena cama da enfermaria.

‒ Estás assim tão desesperada para me ver na cama?! ‒ diz ao sentar-se, prontamente. ‒ Ou é para me veres sem camisa?! ‒ Insinua, retirando a camisa pela cabeça.

‒ Parece que estou a mais ‒ comenta a Maria.

‒ Não ‒ respondo-lhe ao tirar da gaveta da secretária uma das caixas brancas que contêm todos os instrumentos necessários à análise clínica mensal. Pouso a caixa em cima da cama junto ao Matias, e retiro de lá a seringa e o pequeno dispositivo eletrónico de análise ao sangue. ‒ O Matias é que se acha muito espertinho. Mas eu acho que ele não tem graça nenhuma ‒ digo, inserido a seringa para lhe retirar uma amostra de sangue, com desmedida força, no seu braço nu.

‒ Au! ‒ Queixa-se o Matias, agarrando-se ao braço depois de eu tirar a seringa. ‒ És perigosa ruiva. Tenho que ver se da próxima vez que for falar contigo não existem quais queres seringas por perto. Ainda me arrisco a ficar sem braço!

‒ Não sejas medricas ‒ crítico ao olhar para o dispositivo que tenho na mão. Vejo cada análise a aparecer no ecrã, pela ordem do costume. Começando nos níveis de glicose no sangue e acabando nos tipos e quantidade de anticorpos presentes neste. ‒ Estranho... ‒ refiro ao entregar a seringa à Maria para ela a esterilizar, quando toda a análise ao sangue já está concluída.

‒ O quê?! Tenho alguma doença grave? ‒ Pergunta o Matias subitamente preocupado.

‒ Eu pensava que sim ‒ respondo-lhe, tentando parecer séria. Arrumo o dispositivo na caixa e em troca retiro de lá um estetoscópio. ‒ Pensava que a máquina iria detetar a tua estupidez.

Oiço a Maria rir atrás de mim com a minha piada. Pela distância do riso já deve estar a ligar a máquina de esterilização que fica no fundo da sala.

‒ Tens muita piada ‒ diz ironicamente o Matias, olhando para a marca que lhe deixei no braço. ‒ És assim com toda a gente, ou é só para mim que guardas as seringas e o veneno? É que eu não percebo. Sou o tipo mais divertido, boa-onda e giro que conheces, e é assim que me tratas?

Coloco as olivas auriculares nos meus ouvidos e pouso a campânula sobre o seu peito quente. Sinto-o estremecer levemente com a diferença de temperatura.

‒ Inspira ‒ ordeno, ignorando a sua pergunta. ‒ Expira. Inspira. Expira ‒ vou ordenando à medida que vou descendo a campânula ligeiramente sobre o seu peito musculado.

‒ Esta é, definitivamente, a parte do check-up que mais adoro ‒ confessa o Matias, assim que o acabo de examinar com o estetoscópio. ‒ Ver a tua mão delicada a descer pelo meu peito... ‒ diz, descendo lentamente a mão pelos seus abdominais. ‒ É pena é esse estetoscópio que fica entre os nossos corpos...

Eu e a Maria desatamo-nos a rir.

‒ A sério?! As tuas frases de sedução andam a melhorar de mês para mês ‒ digo-lhe ainda a rir.

‒ Ficas mais bonita quando te ris ‒ diz o Matias, fitando-me com uma tal intensidade que me faz desviar o olhar. Não gosto quando ele me fita desta forma. Sinto-me observada, vulnerável, exposta.

Tento voltar a concentrar-me. Olho para a caixa branca que está ao lado da pessoa responsável pela minha súbita alheação. Já me lembro onde estava, penso aliviada ao olhar para a lanterna que está dentro da caixa. É a altura do exame à visão, concluo.

Realizo toda uma bateria de testes e exames ainda restantes ao Matias, para dar por terminado o seu check-up mensal. E a Maria vai-me auxiliando com alguns pormenores, fazendo as únicas coisas que lhe são permitidas fazer nesta fase. Mas mais importante ainda, é o facto de ela poder observar atentamente cada gesto, cada procedimento que utilizo. Claramente, a melhor maneira de alguém aprender.

No final, escrevo no computador o registo do check-up e a Maria guarda a caixa novamente na gaveta a que esta pertence.

‒ Vem comigo logo à noite ao quarto do Sr. Ventura ‒ pede-me o Matias, quebrando o silêncio que se tinha instalado na enfermaria. ‒ Vais adorar, Ruiva. Ele vai contar anedotas.

‒ O que são anedotas? ‒ Pergunta a Maria não conseguindo conter a curiosidade.

‒ Não sabem o que são anedotas?! ‒ Questiona o Matias surpreendido. Nunca lhe disse que não sabia. Talvez tenha lido na minha cara a curiosidade e a dúvida que surgiram assim que ouvi a palavra que me é estranha. Ou talvez tenha apenas partido do pressuposto de que como não disse nada, desconhecia a palavra. De qualquer forma, estranho quando usa o plural. ‒ Anedotas são piadas. São histórias muito pequenas com um final hilariante. Por vezes, hilariante e surpreendente ‒ explica entusiasmado. ‒ O Sr. Ventura, de vez em quando, faz sessões destas no quarto dele. Costuma ir muita gente. Eu vou sempre. Ele tem um livro onde tem escrito todas estas anedotas que nos conta. Trouxe-o do planeta Terra.

Paro de escrever o registo no computador. Um livro?! Agora, sim, conseguiu captar a minha atenção.

‒ E achas que ele me deixava ver esse livro? ‒ Interrogo com a esperança a preencher cada palavra que vibra nos meus lábios.

Já imagino a capa grossa e resistente sobre as minhas mãos, o cheiro das páginas, a textura das folhas, as palavras quase vivas contidas no seu interior, ávidas para serem lidas, reveladas. Será que é muito diferente do livro que a minha bisavó me deu? O conteúdo é, decerto, penso lembrando-me da explicação do Matias.

‒ Claro. ‒ O Matias gesticula afirmativamente com a cabeça com um entusiasmo desmedido. ‒ Isso significa que vens?

‒ Porque não. Eu e a Maria vamos adorar de certeza.

Olho para os dois.

A Maria olha-me com espanto, sem saber o que dizer. O Matias tem a deceção espelhada no rosto.



‒ Fico feliz por teres vindo, ‒ confessa o Matias quando me sento junto dele na fila da frente.

Estou estupefacta. Nunca pensei que viesse tanta gente. Pelo que o Matias me contou, hoje de manhã, este tipo de sessões já existe há algum tempo na comunidade. No entanto, nunca antes ouvira falar delas.

O quarto não é grande. Diria que é exatamente do mesmo tamanho do quarto do meu avô. E não só o tamanho é parecido. As paredes brancas e suficientemente altas, o chão polido e creme, o armário baixo e de madeira, com um espelho sobre este, e a cama dupla extremamente confortável são elementos presentes em ambos os quartos. Já o dos meus pais é ligeiramente mais pequeno, e contém uma secretária (o meu pai é investigador e pode precisar dela para trabalhar no quarto, se quiser), por isso têm menos espaço livre no quarto. Quando eu nasci, tinham menos, porque tiveram que colocar um pequeno berço para mim. Só quando atingi os três anos de idade é que me mudei para o quarto em que durmo agora. Mas apesar do quarto não ser muito grande, a cama dupla relativamente pesada, foi encostada ao armário, deixando espaço suficiente no quarto para que o público desta sessão se pudesse sentar no chão.

Estão aqui cerca de vinte pessoas. E o Sr. Ventura, a estrela da noite, encontrar-se sentado a uns meros centímetros da porta e voltado para a parede contrária a esta.

Eu estou sentada entre a Analu (tive também que convidar a minha melhor amiga, como é óbvio) e o Matias, que insistiu que me sentasse junto a ele.

‒ Como se faz para uma loira rir na segunda-feira logo pela manhã? ‒ Começa o Sr. Ventura.

Olho para as mãos já envelhecidas do Sr. Ventura. Prendo o meu olhar aí. Não nas mãos dele, mas no que agarra firmemente entre elas. É o tal livro de que o Matias me falou. Está aberto só para ele. Daqui não consigo ver a capa, que se esconde pousada nas suas longas pernas, nem as palavras que estão agarradas às páginas do livro. Mas sei que é um livro muito maior do que aquele que eu tenho escondido no meu quarto. Queria tanto poder tocá-lo, folheá-lo, lê-lo.

Debruço-me agora na pergunta que fez. Não sei a resposta. Contando-lhe uma piada?! Mas porquê a necessidade de dizer que é uma loura e não outra rapariga qualquer? Ou até um rapaz? Porque haveria a loira de ser diferente de todos os outros? Não percebo. Será uma pergunta com rasteira?!

Mas, tal como eu, mais ninguém parece saber a resposta, estão todos calados. Ansiosos e desejosos de saber qual é a resposta àquela pergunta que parece não ter solução.

‒ Contando-lhe uma piada na sexta-feira à noite ‒ continua, como se a resposta fosse algo absolutamente óbvio e divertido.

Todos se riem em uníssimo. Eu não.

Não percebi a piada. Quer dizer, percebi o que esta insinua, que as loiras são tão lentas que só perceberiam a piada alguns dias depois de esta ter sido contada. Mas as loiras não são assim. É apenas uma cor de cabelo, e uma cor de cabelo não influencia em nada a inteligência duma pessoa. Mas esta piada era utilizada no Planeta Terra. Está escrito no livro que vejo à minha frente. Talvez fosse uma questão cultural que tínhamos. Acredito que deve ter algum fundamento para este tipo de piada existir. É como aqui. Pessoas como o Leandro e o Matias costumam fazer piadas com as pessoas da hierarquia inferior. Sei no que eles se baseiam: são pessoas que aqui têm menos poder, menos reconhecimento. Apenas não sei no que as pessoas do Planeta Terra se basearam para construir tais piadas.

Seja como for, estou a sentir-me um pouco loira neste momento (a única que não se ri duma piada que é supostamente óbvia). Até a Analu e a Maria se riem, apesar de nunca terem ouvido piadas deste género. E, convenhamos, a Maria é loira. Sei o porquê. Associaram imediatamente o conceito de loira com pessoa menos inteligente. É como se fosse uma espécie de código que nos permite rir de todas as pessoas com que já nos cruzámos de raciocínio lento, e não necessariamente de pessoas loiras. Não é necessário entender ou partilhar o estereótipo que existia na Terra para nos podermos rir destas piadas. Mesmo assim, não consigo rir. Algo de mal se passa comigo, penso preocupada. Não, apenas pensas demais, respondo a mim própria.

‒ Porque é que as loiras ficam felizes quando terminam de montar um puzzle em 6 meses? – Uma pequena pausa. − Porque na caixa estava escrito "de 2 a 4 anos".

Desenha-se um ligeiro sorriso no meu rosto. Não me rio às gargalhadas como todos os outros o fazem à minha volta. Mas tenho que admitir que teve uma certa piada.

Já percebi o esquema. Talvez seja uma questão de habituação, para mim.

Lembro-me dos puzzles com que as crianças daqui brincam. Existem por volta de uns dez na sala para os mais pequenos da escola da nave. Lembro-me também de ter montado exatamente os mesmos puzzles. Vezes e vezes sem conta. As imagens que se formavam diante de mim depois de tanto esforço e dedicação eram verdadeiramente fascinantes e compensadoras. Montava-os só para poder fitar aquelas imagens que não sabia o que eram. Eram imagens da Terra, isso eu sabia.

‒ É por isso que eu prefiro as ruivas, ‒ sussurra-me o Matias ao ouvido, depois de se conseguir controlar e parar de rir.

Não lhe respondo. Sei que diria o mesmo se eu fosse morena ou até se fosse uma outra rapariga qualquer que estivesse sentada do lado dele. O Matias tem esta estranha necessidade de lançar o seu charme para todas as raparigas que vê. Com muitas até pode resultar, mas comigo não.

Afasto-me o mais possível dele e fico colada à Analu, que me olha com curiosidade tentando avaliar o motivo de o ter feito.

‒ A professora Júlia diz para o menino João: "Se eu disser: Eu vou à reunião semanal, tu vais à reunião semanal, ele vai à reunião semanal, que tempo é?" Ao que o menino João responde: "É segunda, senhora professora".

Rio-me descontroladamente com a piada. É absolutamente genial! A professora Júlia referia-se ao tempo verbal das frases, não ao momento em que ocorre. Como é que nunca ninguém se lembrou de responder exatamente isso à professora Júlia, pergunto-me. Rio ainda mais alto com a ideia.

Agarro-me ao meu abdómen como se o gesto conseguisse cessar as incontroláveis e sentidas gargalhadas que saem dentro de mim. Mas não é o gesto que as faz parar e sim um pensamento. Um pensamento que tinha sido entorpecido pelo efeito que a piada teve. Como é que não pensei nisso antes, pergunto-me ao voltar a fixar-me no livro que o Sr. Ventura tem ainda sobre o colo. Ele corre o conteúdo das páginas com o olhar, procurando, provavelmente, a próxima piada para contar-nos.

Coloco o meu dedo no ar, esperando silenciosamente que o Sr. Ventura se aperceba deste meu movimento. Apesar de aparentemente absorto, este olha para mim.

‒ O que foi, Aurora? ‒Pergunta-me como se estranhasse este movimento. Como se nunca antes ninguém o tivesse feito nas suas muitas sessões.

‒ Queria saber... ‒ começo hesitante. Agora que começaste tens de ir até ao fim, Aurora, convenço-me a mim mesma. ‒ Como é que pode estar aí nesse livro, que veio do Planeta Terra, uma piada sobre a professora Júlia?! Sobre a reunião semanal?!

Oiço sussurros à minha volta. Parece que acabei de plantar a desordem.

‒ Estou a ver... ‒ responde-me o Sr. Ventura com um brilho nos olhos que não consigo interpretar. ‒ És uma rapariga muito esperta, não és? ‒ Um sorriso ilumina-lhe o rosto. Fico calada. Ele não quer uma resposta, estava apenas a exteriorizar um pensamento que lhe passou pela cabeça. A deduzir algo para o qual não queria confirmação. ‒ É verdade, não seria possível tal coisa. Mas nunca ninguém antes pensou nisso ou teve a curiosidade suficiente para me questionar. A verdade é que este livro tem imensas anedotas e todas focadas na realidade que conhecíamos antes de abandonar o planeta Terra. Grande parte delas deixou de fazer sentido no meio da nova comunidade que construímos. Por isso, adaptei-as. Alterei todas aquelas que já não poderiam servir para aquilo que foram criadas, que é fazer rir as pessoas.

‒ Percebo. Deve dar algum trabalho, ‒ constato. Esforço-me para parar os imensos pensamentos que voam na minha mente.

‒ Nem fazes ideia... Bom, mas vamos continuar, então, com a sessão.

A sessão continuou, mas eu já não estava ali. Estava noutro sítio qualquer. Longe.

Consegui perceber que se dava sempre a mesma sequência. O Sr. Ventura dizia algo, calava-se, e o silêncio era logo preenchido por incontáveis gargalhadas, que para mim estavam tão distantes que pareciam vir de algures de fora da nave. Algo que eu sabia que era impossível!

Estava a tentar assimilar tudo aquilo que o Sr. Ventura dissera, e usava para isso quase toda a minha atenção.

Existia assim tanta diferença entre o que a Terra era e aquilo que hoje somos? Percebo agora que talvez eu e muitos de nós aqui sejamos, verdadeiramente, uns extraterrestres. Parece que sobrou muito pouco da humanidade que vivia naquele planeta, que era tudo aquilo que nós, humanos, conhecíamos. 

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