Capítulo 12

Eu não desisti do Salvador. Quer dizer, de saber o que ele esconde. Mas decidi parar de o seguir e de o pressionar por uns tempos. Acho que é o melhor a fazer, senão ainda perco toda a minha sanidade mental, que já não é muita.

‒ Pareces exausta ‒ diz o meu avô. Estamos ambos sentados na cama dele.

‒ É só o trabalho... hoje tive que fazer muitos check-ups ‒ respondo sem olhar para ele. Os meus olhos prendem-se, na verdade, na cena que se desenrola à minha frente: quatro pessoas, sentadas no chão, à volta duma mesa improvisada, o velho baú que sempre esteve no quarto do meu avô desde que me conheço como gente, a jogar um jogo de cartas, que o meu avô diz chamar-se poker.

O meu avô disse-me que este tipo de jogos era muito comum no planeta Terra. Apesar de ele ter apenas dez anos quando teve que embarcar na nave com a minha bisavó, e deixar a única vida que conhecia para trás, ele lembra-se de muitos costumes e hábitos que antigamente nós, humanos, tínhamos. O jogo era um dos nossos grandes vícios. Um dos nossos grandes prazeres.

‒ Porquê segredos, avô? ‒ Pergunto-lhe ainda absorta com as reações de cada jogador ao desenrolar daquele estranho jogo, onde os jogadores limitam-se a olhar para o pequeno conjunto de cartas que têm na mão e vão apostando a quantidade de segredos que pensam ser a mais acertada, sabendo que se perderem, o vencedor saberá cada segredo, pequeno ou grande, que tenham deitado à mesa.

‒ Porque num sítio onde não há dinheiro, nem bem-materiais supérfluos, os segredos são aquilo de que mais precioso temos. A informação é poder. Quanto mais informação tiveres, mais poder terás sobre os outros e sobre ti mesma. Na comunidade, os segredos são o que as pessoas mais ambicionam ter.

‒ Mas como é que num sítio tão perfeito, tão bem organizado, onde cada um desempenha o papel que pretende, pode haver tantos segredos?

Olho para o Matias. Costuma andar sempre com o Leandro, mas hoje aqui está ele, a apostar os seus segredos. Que segredos terá alguém tão novo como ele? Depois lembro-me do Salvador. Não queria, mas cá estou eu a lembrar-me da pessoa com quem agora partilho alguns pequenos segredos.

Nada comparado com os segredos que ele ainda guarda de mim, penso. Agito subtilmente a cabeça para que ele saia dos meus pensamentos.

‒ Não penso que isso realmente importe muito ‒ responde-me, depois de pensar um bom bocado na questão que lhe coloquei. ‒ Faz parte de quem nós somos. Faz parte de ser humano. Mas não vejas os segredos como uma coisa necessariamente má. As pessoas não guardam informação apenas de coisas erradas que fizeram ou de que ficaram a saber. Podemos guardar um segredo de algo que achemos que é demasiado privado ou íntimo para partilhar com mais alguém. Algo que queremos guardar só para nós, que é só nosso. O que nos leva a guardar algo só para nós pode ser o medo, a vergonha, o egoísmo, a desconfiança ou, por vezes, só queremos proteger aqueles que amamos. Guardando para nós algo que os poderia destruir. A natureza dos segredos pode parecer complexa, mas acredita que nós somos muito mais complexos.

Penso um pouco nas suas palavras. Talvez o meu avô tenha razão. Mas o que é que será que me motiva a guardar o segredo do Salvador? Medo, talvez?! Medo das consequências de revelar tal segredo?! Egoísmo?! Será que não quero partilhar o que sei, por querer ser a única a saber aquilo do que o Salvador é capaz? Não, não se trata de egoísmo nem de medo. Trata-se, sim, de curiosidade e de querer proteger as pessoas que amo, não os querendo envolver numa coisa que nem eu própria sei o que é. Agora que penso bem nisso, é medo, sim, não por mim, mas por eles.

‒ Acho que tens razão... Apenas pensei que as pessoas fossem um livro aberto, eu acho que o sou, quer dizer... ‒ Era, antes de ter ficado a saber e ter decidido guardar alguns dos segredos do Salvador, completo apenas para mim mesma.

‒ As pessoas estão longe de ser um livro, Aurora. Num livro, está lá tudo exposto, escrito para que todos saibam. Basta virar a página para descobrir o que acontece a seguir. Um livro tem princípio, meio e fim. ‒ Penso no livro que a minha bisavó me deu e que eu guardei na caixa velha escondida por debaixo do meu vestido preferido. O único livro que vi e li para dizer a verdade. Mas tenho mais sorte que a maioria das pessoas da comunidade, que nunca sequer pegaram num livro. Li e reli aquele livro inúmeras vezes. Devorei cada frase, cada vírgula, cada palavra, como se fossem o mundo, como se fossem vida, e eu não quisesse perder pitada. ‒ As pessoas não são assim, e, sinceramente, não teria nem a metade da graça se fossem.

Olho novamente para as pessoas que estão à minha frente. O que é que eu sei sobre elas? Quase nada.

Conheço o Matias. Nunca falámos muito, apesar de termos andado juntos na escola da nave, até ele completar os seus 16 anos (ele é apenas uns meses mais velho que eu). Sei que ele é divertido, brincalhão, descontraído, mas também é inteligente. Talvez fosse o mais inteligente da nossa turma.

Não estranhei quando ele decidiu trabalhar no laboratório de saúde. No entanto, ele e o amiguinho dele, o Leandro, são demasiado infantis e usam o que têm de melhor para gozar com os outros. Para além de serem extremamente convencidos.

Mas não sei mais nada sobre ele. Não sei os seus receios, o que mais gosta, o que detesta, os seus sonhos... Não sei quase nada sobre o rapaz de cabelos negros e olhos verdes que se encontra há minha frente e com o qual passei grande parte da minha vida. Suponho que o meu avô tenha mais uma vez razão, por isso é que gosto tanto de falar com ele. Ele sabe sempre o que dizer e como o dizer. Nisso é tão parecido com a minha bisavó, penso tristemente. Mas ela, ao contrário do meu avô, já não está mais aqui para partilhar comigo os seus valiosos pensamentos.

‒ Há lugar para mais uma? ‒ Pergunta a Olívia ao entrar no quarto do meu avô.

‒ Claro ‒ responde o Matias, esboçando o seu tão contagiante sorriso. ‒ Mas aviso-te já que nunca perco. Portanto, vai já escolhendo os teus melhores segredos, que se forem tão atrativos como esses teus lábios de fel, vou enlouquecer ‒ escarnece, expondo as suas cartas na mesa com um sorriso, claramente, de vencedor.

‒ Avô, não achas que é perigoso tanta gente da comunidade saber que andas a organizar estes jogos? ‒ Pergunto depois de ver a Olívia juntar-se aos outros quatro na mesa de jogo improvisada.

‒ Não te preocupes. Toda a gente gosta da ideia, e aqueles que não gostam, não estão nem aí para o que nós fazemos ou deixamos de fazer. Desde que isso não os incomode... E se por acaso isto se ficar a saber, não vou ser eu o único que vou estar em maus lençóis. Todos aqueles que já se sentaram à volta do meu baú, vão estar no mesmo saco que eu.

Ele não deixa de ter razão, mas isso não me deixa, nem um pouco, menos preocupada.

‒ E tu, Aurora, não queres jogar? ‒ Pergunta-me a Sr.ª Emília quando o Matias começa a baralhar as cartas.

A pergunta surpreende-me. Já estava a assistir ao longo jogo dos quatro há cerca de meia hora. Quando cheguei ao quarto do meu avô, já tinham começado a jogar. Talvez tivesse sido por isso que não me convidaram a juntar-me a eles. Para não terem de começar de novo. Mas nunca cogitei a hipótese de experimentar jogar este jogo. Apesar de ter alguns segredos, nunca arriscaria revelá-los por uma insignificante vitória num jogo de cartas.

‒ Não, obrigada. Só quero mesmo assistir.

‒ Ora aí está alguém cujos segredos me pudessem vir, verdadeiramente, a interessar. É pena. Pelos teus segredos, Ruivinha, arriscaria expor os meus mais profundos receios ‒ revela o Matias fitando-me com os seus olhos verdes intensos. Nunca sei quando ele está a falar a sério, ou simplesmente a gozar, penso desviando os meus olhos dos dele.

‒ A Aurora?! Jogar?! Acreditem, ela não teria nada para apostar ‒ diz a Olívia confiante.

Eu não teria assim tanta a certeza, penso. Resta saber se isso é uma coisa boa ou má.



‒ Estiveste ontem no quarto do teu avô? ‒ Pergunta-me, de repente, a Maria.

‒ Sim. Porquê?

Desvio, curiosa, os olhos do computador que tenho à minha frente para ela. Estava a tentar perceber pelos registos dos pacientes quantos medicamentos teria de pedir ao laboratório para produzir. O stock de alguns medicamentos está a esgotar e não podemos arriscar a saúde dos nossos pacientes. Mas a pergunta dela apanha-me de surpresa. Talvez esteja só a tentar fazer conversa, penso.

Está sentada no pequeno sofá amarelo da enfermaria com o pequeno Tablet, que me acompanhou dia e noite nos primeiros meses em que comecei a trabalhar, entre as mãos.

Lembro-me de quando era eu. Queria saber cada característica, cada sintoma, cada tratamento de uma doença de cor. Realmente aquele pequeno Tablet ajudou-me imenso. Agora sei que consigo diagnosticar qualquer doença e saber como agir no caso de haver alguém na comunidade que a tenha.

Para dizer a verdade, a maior parte das doenças que estudei nunca existiram na comunidade. No planeta Terra existiam, mas nós temos os medicamentos e a tecnologia suficiente para garantir que nenhuma dessas doenças (consideradas agora ridiculamente fáceis de tratar) se manifeste na nossa nave.

‒ Por nada... É só que... Fiquei curiosa. Fiquei a pensar quem é que teria ido para lá ontem à noite jogar. Sei lá, por exemplo, o Leandro ‒ explica a Maria. Vejo-a mexer nervosamente numa madeixa solta do seu longo cabelo amarelo pálido. ‒ Ou outros, ‒ acrescenta corando.

‒ O Leandro?! ‒ Pergunto perplexa, percebendo agora o seu súbito interesse. ‒ Ele não presta, Maria. É melhor tirares o Leandro da cabeça. És demasiado boa para ele.

‒ Eu sei. Mas não consigo. Ele é tão lindo!

Lindo, o Leandro?! Concentro-me na imagem dele que tenho guardada na mente. Um rapaz alto, não muito encorpado, de cabelos castanhos muito escuros, quase pretos, com uns olhos castanhos repletos de vida a preencher um rosto pálido e demasiado esguio. Não é feio. Diria que a sua aparência é bastante simples e comum por aqui. Não é alguém que se destaque de entre uma multidão, ou alguém que seja capaz de iluminar uma sala inteira apenas com a sua beleza. Mas no interior é alguém vazio, que só pensa nele e que faz de tudo para prejudicar os outros. Está muito longe de ser belo.

Volto a concentrar-me no comentário da Maria, desviando a imagem do Leandro da minha mente.

Está completamente apaixonada, coitada, mas há de passar, penso. Quer dizer, não é que seja muito experiente na matéria. Nunca me interessei por ninguém. Não existem muitas opções por aqui, não é verdade?

Admito: não sei o que é estar apaixonada. Mas não me parece uma coisa assim tão boa. Corremos o risco de nos interessarmos por alguém que não presta ou que nem sabe que existimos, como está a acontecer com a Maria. E não é que seja um botão que podemos desligar e ligar quando bem nos apetece. Ninguém gosta de sofrer, e ao apaixonarmo-nos existe uma grande probabilidade de isso vir a acontecer. Às vezes, penso se uma pessoa apaixonada não é também alguém masoquista.

‒ Ele não estava ‒ informo-a, depois de ver a sua cara desanimada de novo concentrada no Tablet que tem nas mãos.

‒ O quê?! ‒ Pergunta, fitando-me com aqueles seus olhos enormes preenchidos de curiosidade.

‒ O Leandro não esteve a jogar no quarto do meu avô, só lá esteve o Matias. Até estranhei ver o Matias sem ele. Esses dois andam sempre colados um ao outro. Talvez não goste de jogos, ou não tenha o que apostar ‒ sugiro, acreditando muito mais na primeira opção do que na segunda.

‒ Talvez ‒ responde a Maria com um leve sorriso na cara. Talvez eu não seja a única a gostar da ideia de as pessoas não terem segredos, concluo. ‒ Confesso que eu própria acho um bocado estranha a ideia do teu avô. Não leves a mal, ‒ apressa-se a dizer, ‒ mas achava, talvez ingenuamente, que não houvesse assim tantos segredos entre nós, para que fosse possível basear um jogo inteiro nisso.

‒ Não te preocupes, ‒ descanso-a. Parece que a Maria tem muito mais a ver comigo, do que eu alguma vez imaginei. ‒ Eu própria achava isso.

A Maria chamou-o de ingenuidade. Será que não passamos de duas ingénuas, que não percebemos nada do que se passa à nossa volta?

Nunca achei que ingénua fosse uma palavra que me descrevesse. Eu não acredito em tudo o que me dizem, mas gosto sempre de dar o benefício da dúvida às pessoas. Talvez seja esse o meu erro. Devia desconfiar mais. Talvez seja por isso que o Salvador se consegue escapar sempre. Por mais que eu não admita, gosto de pensar que o que ele fez teve uma justificação qualquer plausível. Por muito absurdo que isso possa parecer.

‒ O que é certo é que, não só as pessoas gostam da ideia, como o quarto do teu avô enche em cada sessão que ele organiza. Parece que são poucos aqueles que não têm nada a esconder, ou pelo menos algo que seja considerado valioso.

De facto, todos nós temos segredos. A Maria tem-nos. A sua paixoneta pelo Leandro é um deles. Mas não acredito que seja algo que interesse muito a alguém saber. Talvez o Leandro ficasse interessado em sabê-lo. Talvez algumas pessoas curiosas, que gostam de saber sobre a vida dos outros, também gostassem de ficar a saber desta pequena fofoquice. Mas, depois de um árduo jogo e do arriscar de tão íntimos segredos, a pessoa que ganhasse o direito de o saber ficaria certamente dececionada, revoltada até. Sentir-se-ia enganada. Por isso sei o que ela quer dizer com o "valioso". Sei que ela acha que também eu me incluo nesse saco. Que também eu não sei de nada que valha a pena apostar num jogo como esse. Não estranho, afinal de contas, ela não é a única a pensá-lo.

‒ Bom dia, meninas.

Olho para a porta da enfermaria. É o Matias. Por falar no Leandro..., penso.

‒ Bom dia. Precisas de alguma coisa? ‒ Pergunto bruscamente, levantando-me da cadeira em que me encontrava sentada.

Olho para a Maria. Vejo-a ansiosa a olhar para trás do Matias. Olha para a porta, esperando algo, esperando alguém.

A sua expressão torna-se rapidamente em pura desilusão, quando percebe que não vai aparecer mais ninguém. Parece que o Matias afinal consegue andar pela comunidade sem o seu amiguinho.

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