Capítulo 1
Olho fixamente para a mulher da foto que tenho nas mãos. Por apenas um momento, acredito que estou a olhar para o meu próprio rosto. Os mesmos olhos azuis cristalinos. Os mesmos traços. Mas sei que não sou eu. Quem me dera que fosse.
Devolvo a foto à velha caixa que está diante de mim e retiro, em troca, um papel já envelhecido pelo tempo. São raros por aqui. Os papéis.
A minha bisavó costumava falar-me sobre eles. Dizia-me que vinham de árvores. Nunca me conseguiu explicar como eram, mas dizia-me sempre que eram como as plantas que temos aqui, embora muito maiores. Dizia-me também que se alimentavam da luz do sol e dos nutrientes da terra. Aqui, as plantas só precisam de luz artificial e duma mistura qualquer que lhes injetam nos caules. Nunca me pareceram tão fascinantes quanto as árvores e as plantas que só conheci através das suas palavras.
Seguro firmemente o papel nas minhas mãos, com medo que fuja, e decido, por fim, dobrá-lo cuidadosamente e colocá-lo no meu bolso das calças. Talvez as palavras contidas no seu interior nos deem a sorte de que precisamos. Estamos mais perto do que nunca. Pelo menos é o que nos dizem.
Hoje é dia da reunião semanal. Já devem estar quase todos reunidos na grande sala central. Demorei mais tempo do que pensava a olhar para a fotografia... a recordar. Tenho que me apressar.
Pego então na velha caixa e levanto-me do meu colchão, que protesta com a minha ausência. Tenho que baixar ligeiramente a cabeça para não bater no teto do pequeno quarto que divido com mais cinco raparigas.
Levo a caixa debaixo do braço direito até ao único armário do quarto e guardo-a na minha gaveta, ocultando-a com o meu vestido favorito, aquele que nunca visto. Escondo-a, não por conter algum segredo, mas porque é demasiado preciosa para a perder. E, como toda a gente sabe, mãos curiosas são sempre perigosas, nesse sentido.
Ao sair do quarto, fecho rapidamente a porta e começo a percorrer o longo e largo corredor apenas iluminado por pequenas luzes artificiais que se estendem pelo teto. Sei de memória que passo, neste momento, por inúmeras portas, todas elas iguais. Mas como nenhuma dessas portas me leva ao destino que pretendo, ignoro-as a todas. É apenas na porta aberta no final do corredor que presto toda a minha atenção.
Paro apenas a dois passos da porta. E, com o papel da minha bisavó no bolso, e na mente, respiro fundo e entro na grande sala central.
A sala está cheia. Mas ainda existem cadeiras vazias, por isso não estou assim tão atrasada como pensava.
Percorro aquele espaço hexagonal que já me é tão familiar. O branco das paredes apenas é interrompido por diversas portas metálicas que rodeiam a sala. Para qualquer lugar que queiramos ir aqui dentro, temos quase sempre de passar por este espaço.
Enquanto caminho aceno e cumprimento pessoas que me são conhecidas. Na verdade, aqui toda a gente se conhece, por isso quando me sento na minha cadeira, sinto o pescoço dorido de tanto acenar com a cabeça.
‒ Estava a ver que nunca mais vinhas, Aurora. Até cheguei a pensar que tivesses sido raptada por extraterrestres ‒ diz-me a minha melhor amiga, Analu, sussurrando para não destoar no meio de tanto silêncio.
Rimo-nos as duas, baixinho, com a piada. E eu faço o máximo esforço para controlar-me, a última coisa que quero é que fiquem todos a olhar para mim. A piada, na verdade, é a mais banal aqui por estes lados. Não somos todos nós, que vivemos aqui, extraterrestres, afinal de contas?
‒ Não, não fui. Pelo menos por enquanto ‒ respondo-lhe assim que consigo parar de rir, tentando colocar a cara mais natural do mundo.
E voltamo-nos novamente a rir. Não pela resposta em si, mas pela minha tentativa falhada de colocar uma expressão neutra.
‒ Aurora, para! Estão todos a olhar para aqui ‒ pede-me a Analu, passado apenas alguns segundos, sacudindo-me o braço, tal e qual ela costuma fazer para me acordar de manhã.
Paro de rir assim que olho em volta. Não diria que todos, mas uma grande parte das pessoas está a olhar exatamente para a zona onde me encontro sentada. E, ou eu hoje fiz um excelente trabalho a pentear o meu cabelo ruivo encaracolado, extremamente indomável, ou estão todos a olhar para aqui, porque, se calhar, ri mais alto do que estava à espera.
Olho para os meus sapatos e encolho-me no meu lugar, na esperança de que pensem que desapareci. E não parece demorar muito tempo até fazer efeito. Quando volto a olhar para cima, não vejo nem um par de olhos colocados em mim. Estão todos virados para... o palco. Parece que não foi o meu truque de desaparecimento que os fez voltar a olhar para a frente, mas sim a chegada do 1º Comandante.
‒ Boa noite a todos. Áhh... Como é bom ver a alegria das nossas crianças ‒ profere o 1º Comandante, com um ligeiro tom irónico na voz. Olha diretamente para mim e isso faz-me encolher novamente no meu lugar.
Parece que hoje apenas a ideia de um buraco para me esconder ocupa o meu pensamento. Pelo menos, desde que me sentei nesta estúpida cadeira. Não deve ser bom sinal.
Sinto, sem precisar de olhar, que estão muitos olhos caídos sobre mim, demasiados olhos. Pelo menos meia sala decidiu hoje avaliar a minha beleza! E, a sério?! Criança?! Tenho 17 anos. Há muito que deixei de ser criança.
‒ Bom.... Queria começar por vos dizer que estou muito contente com o trabalho desenvolvido por todos vocês nesta última semana que passou. Verificaram-se muitos avanços, pequenos ou grandes, em todas as áreas de trabalho.
‒ É sempre o mesmo discurso... ‒ sussurra a Analu aborrecida, fazendo-me endireitar novamente no meu lugar.
‒ É para nos sentirmos motivados ‒ explico-lhe num tom de voz também murmurado, ainda um pouco mais baixo que ela. Não preciso de chamar mais uma vez a atenção para mim.
Mesmo assim, penso, ela não deixa de ter razão.
‒ Gostava ainda de informar, para aqueles que ainda não sabem, que o Frederico Reis, que acabou a semana passada de ser pai do seu terceiro filho, vai passar a trabalhar na equipa de navegação, graças ao seu excelente desempenho como investigador no laboratório de tecnologias.
Aplaudo juntamente com todos os outros. É uma grande honra fazer parte da equipa de navegação. A maior honra de todas aqui dentro. Mas todos sabemos que isso não aconteceu apenas pelo trabalho que o Sr. Reis fez no seu departamento. O facto de este ter acabado de ter tido o seu terceiro filho ajudou, e muito, para que esta decisão fosse tomada. Aqui, quantos mais filhos melhor. É uma moeda preciosa, num sítio onde há pouca gente e nenhum dinheiro. Aqui, somos pagos com reconhecimento, e quanto mais trabalharmos e mais filhos tivermos, mais prestígio obtemos. Pelo menos, para a maioria de nós isto aplica-se.
‒ Também o nosso notório físico, Pedro Bacelar, foi recompensado pelo seu excelente trabalho e pelas suas mais recentes descobertas, que se mostraram uma mais-valia para o trabalho da equipa de navegação. A partir de hoje, vai liderar a equipa da área de astrofísica.
Mais uma vez ouvem-se aplausos pela sala, e eu, desta vez, faço questão de aplaudir com mais força ainda. É que Pedro Bacelar é, na verdade, o meu pai. E apesar de a informação não ser uma novidade para mim, aplaudo para mostrar o grande orgulho que tenho nele. E quando ele se levanta da sua cadeira, que fica na terceira fila por ser uma das pessoas mais reconhecidas aqui, e se vira para trás para agradecer, são primeiro os meus olhos que ele procura no meio da multidão.
O meu coração acelera ao olhar nos seus olhos ternos de âmbar. Vejo nestes um brilho completamente novo para mim. É o brilho da felicidade, da realização. É a manifestação física do sentir-se completo, penso.
Infelizmente, o meu pai é uma das muitas pessoas que nunca vai chegar à equipa de navegação. Por mais que trabalhe, acabou de chegar ao topo da sua carreira de físico. É que eu sou filha única.
‒ Relativamente ao que todos querem, realmente, saber, lamento informar que ainda não temos qualquer previsão precisa do dia ou da hora da chegada ao nosso tão esperado destino ‒ ouvem-se lamentações por toda a sala. ‒ Mas... ‒ continua o 1º Comandante subindo exageradamente o tom de voz, silenciando eficazmente todos as restantes vozes da sala. ‒ Graças ao trabalho dos nossos físicos, desconfiamos que estamos, no máximo, a um ano de distância.
Ouvem-se agora vozes animadas por toda a sala e os comentários são quase todos os mesmos: "É uma ótima notícia" e "Vamos finalmente chegar".
Também eu adorei a notícia. É realmente melhor do que estávamos à espera. Um ano não é, praticamente, nada para quem já viveu 17 anos numa nave.
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