Através da janela
Olhe pela minha janela.
Se fizesse isso a uns dez anos atrás poderia ver algo próximo a felicidade. Poderia ver uma mesa cheia, não só com comidas de todos os tipos, mas com amor, com pratos cheios de carinho e solidariedade.
Eu estaria lá, correndo com os meus primos em volta da árvore de natal e sentindo a brisa úmida do verão acariciar meus cabelos. Eu riria quando chovesse de novo, como acontecia quase todos os anos e a mesa de frutas arrumada pela minha mãe fosse encharcada pela água que entrava pelas frestas da janela.
Eu iria sentar na varanda admirando os fogos de artifício, que mais pareciam estrelas cadentes e fazer um pedido. Mas não um qualquer, eu pediria para que as coisas continuasses a ser como eram. E que quando o último dia de dezembro chegasse isso não significasse um fim, mas sim uma continuação, apenas um pequeno remendo na colagem de momentos maravilhosos que era a vida.
Por um tempo funcionou. As páginas do calendário caiam. O fim do ano chegava. Através da janela, a família continuava unida. As risadas ainda preenchiam o ar. A chuva ainda levava embora a mesa de frutas e eu ainda fazia o mesmo pedido para as falsas estrelas cadentes.
Até que os desejos pararam de se concretizar. Até que eu parei de acreditar.
Pode olhar através da janela novamente. Minha família, que já era pequena, agora se resumia apenas a minha mãe, que tentava se distrair com a preparação da comida e meu pai, que digitava no celular sem me olhar.
A mesa estava cheia simplesmente para preencher o vazio que havia se instalado entre nós.
Meus avós haviam partido, se tornado estrelas em alguma galáxia perdida. Meus tios haviam brigado conosco, provavelmente por conta da herança. Mas eu era pequena demais na época para entender o que poderia ser mais importante do que aqueles almoços em família.
Aquele era o oitavo Natal em que eu olhava pela janela, na volta do ensaio de dança e cruzava os dedos para encontrar a casa cheia, transbordando de vida e animação.
Mas também foi o oitavo Natal em que a janela revelou nada além do silêncio.
Mas nem tudo havia sido perdido. Na falta da companhia daqueles que amava, me encontrei na dança. Onde faltava alma eu preenchia com os movimentos leves da sapatilha no assoalho e o mundo parecia completo de novo.
Eu tinha algo para esperar ansiosamente no final do ano: o espetáculo de ballet realizado no dia de Natal.
Mas ainda faltava alguma coisa.
Meus pais tentavam disfarçar quando era menor, mas sabia que eles não aprovavam meu sonho. Sabia no jeito como reclamavam quando as aulas demoravam um pouco mais para acabar do que o programado. Sabia no jeito como diziam que não podiam ir nas apresentações. Eu sabia mas não queria acreditar.
Até que se tornou mais óbvio.
- Sim ela é uma ótima dançarina- eles diziam para os amigos- Mas não sei porque continua perdendo tempo com isso, ela sabe que coisas assim não tem futuro.
Estava no jeito com que me julgavam quando treinava depois da escola. Até que precisei praticar escondido dos olhos deles, porque havia chegado aquele momento da vida em que os pais pensavam que matemática, física, química, história, geografia e biologia eram mais importantes do que as artes. Não me entendam errado, eu sabia que estudar era necessário e o fazia diariamente. Eu tirava boas notas. Eu era responsável. Eu fazia o possível para estudar cada vez mais e dançar apenas quando o estresse das aulas tornava respirar quase impossível.
Mas estava decidido. Eles apenas não queriam mais incentivar um sonho que de acordo com eles não levaria a lugar algum.
Então lá estava eu, sozinha no palco de novo. Meus pés deslizavam sobre o tecido preto e eu me sentia como nos Natais passados. Me sentia feliz.
Os holofotes me seguiam pelo escuro e seu calor fazia eu me sentir querida. Exceto que eles não estavam na plateia e dentre todos aqueles sorrisos e olhares maravilhados nenhum deles pertencia àqueles que eu mais precisava da aprovação.
A música se tornava triste, mas nem tanto quanto meu coração.
A cortina se fechava e as lágrimas começavam a cair. Aquela era minha última apresentação, muito provavelmente da vida inteira. Eu havia terminado o terceiro ano do ensino médio e as aulas de dança, que estavam incluídas no currículo, também haviam terminado.
A partir de agora eu teria que escolher uma faculdade e uma profissão. Não teria tempo para hobbies. Eu me formaria em direito em uma faculdade perto de casa. Moraria com meus pais. Encontraria um namorado que passasse pela aprovação deles. Me tornaria uma Advogada. Me casaria. Teria uma filha, que a cada ano passaria a perder cada vez mais a fé no Natal e no ano novo. Nós seríamos uma família unida no começo, mas depois brigaríamos e nos afastaríamos. A janela continuaria vazia e eu ia acabar desencorajando os sonhos da minha filha pois ia ter me rendido a um pensamento. A uma suposta verdade universal. Que estabilidade e riqueza e ganância e uma vida segura são sinônimo de felicidade. O ciclo continuaria. Teria eu coragem de quebrá-lo?
Não haveria nada de errado se tudo aquilo fosse escolha minha, se tudo aquilo fosse um sonho meu.
Eu abaixo a cabeça e me dirijo até o camarim, soltando os cabelos do coque alto e trocando de roupa. Minhas amigas conversam, mas não consigo ouvir o que dizem. Me dirijo para a saída, mas antes que conseguisse alcançá-la, minha professora me para.
- Parabéns pela perfomance- ela diz, com um sorriso caloroso no rosto- tenho uma notícia maravilhosa. Consegue adivinhar?
Eu tenho medo do que seja. Porque se for o que estou pensando terei que dizer não. E fazer isso me destruiria. Então apenas balanço a cabeça negativamente.
- Alguns avaliadores de um escola de ballet no exterior estavam na plateia e eles adoraram o seu desempenho. Eles gostariam de te oferecer uma bolsa para estudar lá- ela percebe meu olhar triste e me envolve em um abraço- Não precisa decidir agora, mas preciso de uma resposta até à meia noite do dia seguinte ao Natal, pois eles irão embora depois.
Eu não consigo impedir as lágrimas de continuarem a cair, então apenas desisto e continuo a abraçá-la como se um buraco negro estivesse se abrindo no chão e eu estivesse a poucos minutos de ser engolida por ele.
Quando deixo o teatro sinto um peso em meu peito que não consigo descrever. E naquele momento eu entendo uma coisa. Eu sei o que quero fazer pelo resto da vida, posso fechar os olhos e imaginar tudo com os mínimos detalhes, mas saber que não posso seguir aquele caminho dói mais do que saber que ninguém mais viria para o jantar ou para almoço de natal. Saber que a solidão não era temporária mais definitiva era o que mais me machucava. Eu cresceria e teria uma família, talvez alguns amigos. Estaria rodeada de pessoas mais viveria na solidão porque não teria mais um sonho para me incentivar. A partir de agora eu teria que aprender a seguir o roteiro ou me afastar da única família que havia me restado. Eu não sabia se estava disposta a uma coisa assim. Não sabia se estaria disposta a perguntar a meus pais se poderia aceitar a oferta e estudar dança. Porque eu já sabia a resposta. Ouví-la apenas faria com que em me sentisse pior.
Eu ando até minha casa e encontro a mesma janela de todos os natais, mas quando entro, a única coisa que me recebe é o silêncio.
Minha mãe aparece alguns minutos depois carregando uma travessa de bacalhau e pede para que suba até meu quarto e tome um banho.
Ela não pergunta como foi a apresentação, mas de qualquer forma, eu não esperava que fosse perguntar. Apenas obedeço e me dirijo até a porta no final do corredor. A janela estava aberta e a mesma brisa quente de sempre bagunçava meus cabelos.
Eu ligo a televisão apenas para que o barulho de fundo criasse a ilusão de que não estou sozinha e começo a encher a banheira.
A proposta de minha professora continuava a ecoar em meus pensamentos. Meus pais não deixariam eu desistir de tudo para aceitar uma proposta como aquela.
Já tinha feito vários vestibulares e fora aprovada em uma renomada faculdade de direito. Já havia até feito a matrícula. Eu sabia que eles queriam apenas o que fosse melhor para mim, mas mesmo assim eu queria que houvesse um jeito de meu desejos se conciliarem com as necessidades deles.
Eu respiro fundo, coloco um vestido que acho socado dentro do armário e tomo uma decisão. A decisão de que eu não desistiria sem ao menos tentar.
Pelo menos eu poderia dizer que fiz o máximo que estava ao meu poder, mesmo que tivesse falhado. Eu poderia voltar atrás. E eu iria voltar atrás se isso significasse me afastar ainda mais da minha família.
Algumas horas haviam se passado e um frio não parava de subir pela minha espinha toda vez que eu repassava o diálogo que teria com meus eles na cabeça. Minhas mãos estavam escorregadias e não paravam de tremer. A garota que me encarava do outro lado do espelho quase não parecia eu com seus olhos inchados e seu sorriso forçado. Mas de algum modo consigo reunir coragem e descer as escadas quando minha mãe me chama para o jantar.
O cheiro delicioso de peru trazia memórias de natais esquecidos e risadas a muito tempo enterradas.
Eu nunca havia desejado tanto poder voltar no tempo.
Sento com cuidado na cabeceira da mesa detalhadamente arrumada. A toalha de mesa vermelha combinava com meu vestido. Os pratos verdes combinavam com as delicadas taças de vinho adornadas por filetes dourados.
Nós continuávamos quietos e o único ruído vinha dos talhares ao encostarem na louça. Algumas palavras eram a única coisa que me separava de aceitar a oferta que mudaria a minha vida.
- Como foi o dia de vocês?- eu começo, me mexendo na cadeira, desconfortável com o que viria a seguir.
- Foi bom- eles respondem, quase em uníssono, mais eu vejo em seus olhos que não é verdade. Eles fingem que não, mas eu posso ouvir de meu quarto quando brigam. Eu daria tudo para as coisas voltarem a serem como eram antes. Para um tempo muito mais simples, em que meu choro era de emoção e não de melancolia.
- E o seu filha? - minha mãe continua, evitando meus olhos quando pergunta.
Eu paro por um momento, olhando pela janela, para a noite que se estendia pelo horizonte e desejando sorte para uma estrela qualquer.
Quando finalmente crio coragem para fazer a pergunta sinto como se meu coração estivesse prestes a parar.
Aquilo nunca fora um segredo, mas sempre fora um assunto que eu evitara.
A única coisa que eu odiava mais do que o silêncio eram as brigas.
E então acontece. A discussão. O soco na mesa que derruba a taça de cristal. O som de vidro se quebrando como as memórias estilhaçadas de milhares de natais que nunca voltariam.
Então eu desisto.
Eu volto atrás.
Eu peço desculpas como sempre faço e subo para o quarto.
Eu digo que não irei aceitar, porque eles eram a única família que havia me restado e eu não suportava a ideia de decepcioná-los.
Eu seguro o travesseiro com força e fecho os olhos, sentindo as lágrimas caírem.
Um dia eu posso voltar a acreditar.
Um dia você vai olhar através da janela e eu estarei dançando com meu amor nos braços. Uma ou duas crianças estariam correndo em volta da árvore. A chuva molharia a mesa de frutas. Os fogos de artifício voltariam a ser falsas estrelas cadentes capazes de realizar qualquer desejo.
Um dia o Natal voltaria a dar certo.
Mas não agora.
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