Capítulo 3
Achei interessante fazer um retrospecto do meu caso com Braz desde 2010. Logo o próximo capítulo é o início de tudo, estilo flashback, um extenso flashback...
Ano 2010...
Narrado por Túlio
Lembro-me que era início de janeiro de 2010, eu já gerenciava a contabilidade do Camilo há alguns anos, na verdade desde que me formara em Ciências Contábeis em 2002. Só eu sei tudo o já faz fiz pela empresa, quantos clientes consegui, quanto já trabalhei depois do horário e que abri mão do salário para receber um percentual sobre cada honorário, algo que me transformou num escravo. Eu sei o que sacrifiquei para que aos trinta anos, pudesse dar entrada em um segundo imóvel e um carro melhor. Sacrifiquei um tesouro. Minha família. Meu tempo e meus filhos pequenos. Dissolvi meu próprio casamento e tento aparentar que sou inabalável, mas as pessoas em volta percebem que posso desabar a qualquer momento. Umas tentam invadir meu espaço com seus conselhos sem jamais me compreenderem de verdade, enquanto outras apenas ignoram, o que eu prefiro.
Na porta de minha sala, ouço uma batidinha e Mauro, chefe do Departamento Contábil põe cabeça para dentro:
— Bom dia, muito ocupado Túlio? Que pergunta, né? — ele ri — Tem dois minutos?
— Claro, entra. Sua nenê já nasceu?
— Quase. A Lívia optou pelo parto normal e tá nessa ansiedade. Sabe como é... a Iraci teve dois, né?
— Aham. Eu assisti os dois e cheguei a suar frio. Mulher é uma criatura forte, só por Deus.
Ele acha graça no meu comentário e confessa que não terá coragem de ver a Gabriela nascer, depois limpa a garganta, usando isso como sinal para uma mudança de assunto.
— Ei, tu conhece pessoalmente o filho do português? Aquele da rede de mercados que o seu Camilo atende sempre?
— Não. Só por e-mail que me comuniquei com o cara e uma vez por telefone. Ele tá sempre ocupado ou viajando. Nem o IR de pessoa física é feito por aqui. Seu Camilo tem meia dúzia de clientes meio excêntricos que ele trata como divindades. — reviro os olhos porque nunca entendi alguns detalhes inventados por meu patrão. — Mas o que você precisa?
— É que eu solicitei a contagem do inventário físico. Na verdade, tem dois trimestres que eu peço isso, desde que o seu Camilo do nada, disse que era pra pedir essa informação por e-mail para ter registrado. Mas nunca me dão resposta. Nunca. Já fui na empresa na metade do ano passado, o Braz não recebe sem agenda. Liguei de novo e nem à merda ele mandou. Só disse que ia pedir pra providenciar.
— Saco, isso...
— Sim. Sabe o que ele perguntou da última vez que falei com ele? Porque estão inventando essa "moda" agora? O Camilo nunca pediu isso antes.
— Porque não me passou no começo?
— Eu tentei resolver, né cara. Pra ti fica complicado para ir lá conversar pessoalmente? Tenta explicar que não podemos inventar valores pra fechar o imposto dele.
— Você que tá apurando o imposto dessa empresa agora? Desde quando isso? — meu patrão simplesmente empurrou uma empresa que ele sempre cuidou pessoalmente para um colega meu e nada me disse. Isso me dá azia e dor de estômago sempre. Certas atitudes de meu patrão eu não entendo.
Mauro explica que por dois anos, nosso patrão pedia algumas coisas para ele a respeito da empresa do Braz, porém nos últimos dois trimestres largou de mão. Eu nunca interferi no caso dessa empresa, porque até cinco minutos atrás, antes do colega me contar, sequer sabia que esse cliente estaria sob nossos cuidados. Sei porque seu Camilo faz isso. Exatamente os seis maiores clientes, pagadores dos maiores valores em honorários ele diz que prefere cuidar e quando digo isso, assinar com seu próprio CRC, para que não precise tirar destes também um percentual que integraria meus proventos. Porém, ele na calada da noite, passa essas responsabilidades para meus subordinados pelos quais eu respondo e assino também. E se eu vou assinar a escrituração dessa empresa, ela vai se adequar ao que eu aprendi a respeito de ética e exatidão nas informações.
— Vou dar um pulo lá e ver se acho o cidadão. — Levanto e pego a chave do carro do escritório.
— Melhor é marcar hora, ele não vai te atender. Não atende ninguém fora de horário.
— Não interessa. Vou lá resolver isso ou não consigo nem almoçar.
— Tu é teimoso, Túlio. — Mauro me afronta — Peça pra agendar um horário. Liga pro seu Camilo então.
Uma volta de carro às vezes favorece um momento reflexivo. Só se estivesse tranquilo e não com a cabeça cheia de coisas como sempre. Meto o pen-drive na entrada do carro e em vez de Renato Russo, ouço o início de uma aula sobre alteração de algumas Normas Contábeis. Nem daria pra relaxar, pois me encontro parado em meio ao trânsito irritantemente lento, numa cidade litorânea, onde observo lojas fazendo suas ofertas dos saldos de produtos que encalharam no Natal e o comércio a ferver de tanta gente.
Finalmente avisto o grande supermercado onde vou conhecer pessoalmente o famoso Braz. É meio estranho ser gerente de uma contabilidade e até então não conhecer pessoalmente um dos clientes mais antigos, como que pode?
Expliquei meio por cima, mas o que acontece é que meu patrão, Leonardo Camilo é amigo do pai desse tal de Braz desde que eram apenas um contador e um dono de mercearia, logo, ele cuidava pessoalmente de todas as declarações, fechamento dos balanços e o que mais o senhor Joaquim Manoel Vieira quisesse. Naturalmente Braz quando comprou as cotas de seu pai deu continuidade ao ramo de comércio varejista quando o velho saiu da jogada no intento de usufruir do capital acumulado e gozar a vida enquanto ainda se tem saúde e disposição.
— Doutor Túlio, por favor, pode entrar. — Eu ouço depois de segundos que me anunciei ao interfone ainda no andar térreo diante da porta de acesso à escadaria que dá acesso ao setor administrativo da empresa.
Doutor? Isso é sempre engraçado, porque chamar um cidadão de gravata de doutor? Fico divagando enquanto me encaminho para a recepção da sobreloja, aliás, um verdadeiro luxo. Eu dei tanta sorte quando falei com a secretária que sem muitas perguntas, permitiu minha entrada e me instruiu a aguardar seu patrão que terminaria de atender um representante comercial, então "gostaria" de me atender em seguida. Observo a porta que imagino ser da sala do proprietário que se encontra entreaberta.
— Moço... — a jovem secretária me aborda — Pode esperar lá dentro. O seu Braz foi pegar um cafezinho e já volta.
Sentindo-me esquisito, entro na sala vazia do seu Braz que antes só atendia com hora marcada e de repente quer falar comigo. Sou desconfiado demais, meus sentidos se aguçam e meu corpo arrepia inteiramente sem explicação.
E... já que ninguém está vendo, sento-me no grande sofá em couro negro que deve valer meu fígado e observo um lustre que me leva a ter dó da faxineira. Como que se limpa um troço desses? Porque esse exagero? Mesmo que eu goste de lustres, odiei a extravagância daquele. O que é isso que está sob meus pés? Será que é um persa legítimo? E a mesa de madeira maciça com um tampo de vidro grosso em fumê? Deve ser muito cara. Tirando essa frescura toda, achei bonito o ambiente. Falta um detalhe pelo que me lembro, ah sim, onde está o seu Braz?
Uma voz grave vinda do corredor me faz levantar do num salto, então a porta abre num supetão e entra um homem grande e mal encarado que penso ser segurança do estabelecimento. O cara é muito alto, a roupa social caindo-lhe perfeitamente, seus traços faciais bastante marcantes pela barba bem feita e ainda assim a lhe sombrear a cara, o deixam instigante. "Que pensamento estranho de um homem por outro homem", me alerto mentalmente.
— Tu que é Júlio da contabilidade? — Ele estende sua mão e aperta a minha com vontade mantendo a expressão séria. — Já tratei contigo?
— Já nos falamos por telefone uma vez, seu Braz.
— Então, Júlio, nada de SEU Braz — ele erra meu nome de propósito agora com uma expressão maliciosa, pronunciando o SEU com entonação de pronome possessivo — Apenas Braz, meu jovem.
— É Túlio, não Júlio. Olha Braz, primeiro te agradeço por ter me recebido e prometo ser bem rápido.
— Isso é bom. Olha, é sobre o estoque? Já respondi o rapaz lá... Senta aí... — Ele pede, mas fica parecendo uma ordem — Falei para aquele cabeçudo da tua contabilidade que não há possibilidade de fecharmos as lojas para contagem de estoque, não agora no verão. Estamos em temporada de praia, você sabe quanto vendo por dia?
Eu tento abrir a boca algumas vezes, mas ele desata a falar sobre seus motivos pelos quais não pode fechar a empresa para a contagem do inventário físico e me questiona sobre o porque do seu Camilo nunca ter solicitado dele essa informação. Eu também me questiono internamente. Afinal meu patrão melhor que eu sabe da importância de informações exatas na contabilidade. Estranho é conversar com esse homem que me olha para além dos meus olhos. Eu gaguejo pelo menos duas vezes inexplicavelmente.
— Braz, o imposto trimestral não pode ser apurado sem essa informação. Isso compõe o custo no DRE. Não sei como o seu Camilo fazia, mas não existe como apurar o imposto...
— Vocês não se comunicam?
— Ele cuidava da sua empresa e nos passou, precisamos acertar esse detalhe. Desculpa, se você acha que atrapalha ou não, mas é essencial isso.
Ele desvia o olhar do meu quando seu celular toca:
— Oi anjo... — ele pede licença e atende, usando um tom de voz muito manso — Sim, meu querido, segunda já tem teu horário agendado. Nada mudou não. Continua a me atender, entendeu?
Naquele instante sou invadido por um sentimento estranho. Lembro-me que um dos meus funcionários comentou certa vez que achava que Braz fosse gay. Sei lá porque me senti incomodado no momento. Inclusive chamei a atenção do colaborador como se ele houvesse ofendido alguém ao opinar sobre sua orientação sexual. Talvez nem seja...
O que eu tenho com isso?
A seguir ele atende mais uma ligação e dessa vez se irrita com a pessoa do outro lado. Ao desligar, levanta-se de sua confortável cadeira e num sorriso de canto me propõe:
— Será que tem como agendar para amanhã à tarde? Tenho um compromisso que me surgiu, pode ser?
Eu lá tive chance de negar? Nem deu tempo de falar que não havia muito mais para conversar e que só precisávamos do valor do inventário, mas tudo que saiu foi:
— Claro.
— Às duas? Não, não, é melhor às três horas da tarde. — Ele decide. Eu não consigo fechar a boca e meu olhar escapa do seu. Homem estranho, eu penso meio apavorado, mas nada me perturba mais do que o momento em que ele estende sua mão grande e quente, apertando firmemente a minha, chamando-me a atenção para olha-lo novamente em segundos estranhos nos quais sou sugado completamente para dentro de um mar negro e perigoso que são seus olhos...
Saí desconcertado daquela sala, invadido por uma grande confusão de curiosidades, sendo que a primeira é a respeito da homossexualidade. No início de 2010 eu tinha trinta anos e uma opinião construída a respeito deste assunto. Cansei de usar a palavra "homossexualismo" sem me dar conta de que a expressão incomodava as pessoas, pois aprendi desde cedo que meninos devem ficar com meninas e que os gays "escolhem", "optam" por viver algo que é errado. O desconforto que senti ao segurar naquela mão máscula, eu creio que foi pelo choque de perceber que não são somente afeminados os gays, mas que um homem bruto como aquele também poderia ser. E de novo me questionei: o que eu tenho com isso?
Eu tinha muito que aprender e muito para entender.
***
***
Oi gente, relutei em informá-los, até porque creio que o pior eu já tenha passado. Estou me recuperando desse mal que está em alta. Comecei com dores no corpo há duas semanas, tosses que me levavam a vomitar e que doía mais ainda as costas. O exame positivo pra mim foi um detalhe, pois o mal estar foi o que havia de pior. Desejo muito que vocês não passem por isso e nem queria ter comentado antes de melhorar um pouco. Fiquem fortes e se cuidem por favor. No meu caso em específico os sintomas foram terríveis, mas conheço pessoas que não tiveram sintomas ou que foram mais fracos. Vos adoro e torço pra que fiquem bem.♥
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