Capítulo 1
Ano 2017...
Narrado por Túlio
— Mil e quinhentos reais numa multa? E quem vai pagar isso?
Nesses últimos dias sinto-me anestesiado quando alguns eventos quase me derrubaram.
— Túlio, a funcionária que esqueceu de enviar essas três declarações, saiu da contabilidade faz... uns cinco meses...
— Orra, três declarações? Eu sempre bato na tecla da comunicação. Tinha que ter me passado. Toda situação anormal aqui dentro deve ser passada pra mim, gente. Quem foi que enviou com atraso?
— Eu acabei enviando porque o cliente precisava de uma CND, mas daí ficou o débito da multa na Receita... — Monique chefe do departamento Fiscal tira seus óculos e seca as lágrimas.
— Claro que ia gerar multa... — nervoso, eu passo a mão na cabeça.
— Mas se pagar antes do prazo não reduz o valor pela metade? — Mauro tenta justificar a falha para acalmar Monique que tá muito nervosa dentro de sua razão.
— Sabem que o seu Camilo quer que eu rateie esses valores entre os funcionários? Multas, juros de guias e outras coisas. Se não "doer" no bolso, a desatenção vai continuar. Preciso que vocês reforcem com o pessoal e façam assinar uma circular de novo. Esqueceu de enviar declaração e guias, vai arcar. Ou centraliza em alguém essas declarações.
— No fiscal é pra eu chefiar, mas tô sobrecarregada com a mesa cheia de empresas pra conferir o básico. Quando era só o Túlio que passava as coisas, beleza, mas agora o seu Camilo "retornou do além" e dá uma ordem totalmente diferente do que o Túlio já havia dado. O povo tá pedindo demissão, ninguém aguenta mais.
— Monique, calma. — minha azia tá queimando — É uma reunião exatamente para acertar alguns pontos e esse das multas tá chamando a atenção. Ultimamente tá demais, não concordam?
— Filha, pensa só... imagina no setor contábil, que o velho senta do nosso lado e manda abrir a contabilidade de anos anteriores, que eu analisei, que o Túlio analisou, que já tá encerrada e com as declarações enviadas. Eu também tô com a mesa cheia e passei pro Túlio quase vinte das empresas de Lucro Real que o seu Camilo "inventou" que tá errado. E nós dois aqui sabemos o que ele quer?
— Sim, Monique, em empresa onde a família interfere sem resolver a parte pessoal em casa é assim. — tento acalmá-la — Nosso societário que havia sido passado para o Júnior, foi abandonado porque ele ou o patrão acham que o cara é mais necessário em outros setores. Estou fazendo abertura de empresas e Alterações de Contrato Social porque não fecho com ninguém, seja em questão de salário ou implicância.
— Sobrou a gente da velha guarda. Sou contra o rateio dos valores das multas e sim a favor de que que cada um deve ser responsabilizado pelas próprias falhas. — Comenta Mauro, o chefe do Contábil. — Concordo com isso sim. Mas tem que ver quanto aos juros e multas de recálculos de guias que em geral é responsabilidade dos próprios clientes.
— Verdade, Túlio. Daqui as guias saem bem antes do vencimento.
— Tudo bem pessoal, isso sim. Por isso vamos nos conversando pra não deixar passar mais esse tipo de coisa.
Hoje definitivamente não é meu dia, multas não são nada perto do que tenho pela frente, pois vou literalmente me ajoelhar perante um cliente, implorar para que ele não saia do nosso escritório e pedir desculpas pelo tratamento que este recebeu do Camilo Júnior filho do dono da contabilidade que gerencio há anos.
A rede de supermercados do Braz é cliente/parceira há mais ou menos 14 anos, porém antes de eu lidar diretamente com o proprietário atual, sempre foi meu patrão quem tratou com ele ou anteriormente com seu pai, senhor Joaquim Vieira quando este era o dono da empresa desde muito antes de eu entrar nesta contabilidade. Digamos que eu me envolvi demais numa situação... e só eu sei como estou quebrado no momento.
Tentarei portanto resolver da melhor maneira, antes de desistir de tudo de uma vez.
─ Júnior, vem na minha sala, faz favor.
Irritado, desligo o ramal enquanto massageio minhas têmporas. Vou tentar dialogar com o filho do dono deste escritório, um rapaz que recentemente passou pelo Exame de Suficiência do CRC e já pensa em dar carteirada em colegas novos e não formados. Insubordinado, não leva nada à sério, arrogante e imaturo por querer, não se esforça para ser menos irritante. Imagino que minha gastrite possa virar uma úlcera se eu permanecer mais um mês aqui dentro.
— Que é? Vai começar cedo? Não tenho nada haver com seus problemas pessoais, Túlio. Se for encher meu saco por causa do Braz, tô saindo. — Ele entra e já me irrita de cara: sem uniforme, com fones de ouvido e boné.
— Júnior, por gentileza, senta. — Eu respiro calmamente no meu limite, lógico.
— Nem vem com essa história de que há dezessete anos não tira férias e que não podemos perder clientes, que te mando a merda. — Ele revira os olhos e desaba na cadeira a minha frente.
— Dá pra manter só um pouco do respeito? Se você fala desse jeito com seu pai, problema de vocês. Comigo, eu exijo respeito. — Ele dá aquele meio sorriso debochado e em mim cresce a vontade de meter uma bofetada ou um soco. E por quê eu não faço? Porque nessa altura do campeonato ir para a rua por justa causa ou responder algum processo não é meu objetivo. Ainda. — Pode me explicar o que houve, mas sem gritar ou se exaltar como sempre você faz?
— Aquele filho da puta fica...
— Júnior, modera o linguajar...
─ Tá, tá... aquele porra compra coisas pro sítio e paga com a conta da empresa. Eu liguei pro camarada bem de boas, fui educado e ele me respondeu que a empresa é dele e faz o que bem entender. Daí eu perguntei: "Porra cara como é que fecho a merda da contabilidade da tua empresa?" Daí ele responde: "Se vira o contador é tu, não foi o Túlio que decidiu isso?" Daí eu perdi a cabeça e falei pra ele não vir com coisa pessoal pra cima de mim. O Braz falou que não queria que eu colocasse a mão na empresa dele e eu falei: " Então enfia essa empresa no cu."
— Tá, eu já entendi. — interrompo passando a mão em minha calvície num sinal de desespero — Não precisa continuar. Júnior você não pensa na possibilidade de um dia dar continuidade ao trabalho que seu pai iniciou com tanto esforço? Porque precisa "mostrar" para algumas pessoas que tu se acha um badass?
— Sei lá — novamente ele revira os olhos — cara, eu não tô a fim de ouvir isso.
— Sabe que posso te dar advertência? Então segura o palavreado chulo com quem paga o salário dos seus colegas e proporciona a vida de playboy fútil que você tem. Tu é mimado. Vai tomar juízo quando?
— Ah cara, não aturo meu pai com essa encheção de saco... não fica tentando me dar lição, ok? Tu me chamou aqui por causa daquele viado do Braz...
— Chega Júnior. Chega! Se não sabia lidar com ele, porque não me passou a situação? Vê se cresce. Porra, você só faz cagada. — sinto a azia queimar mais forte e em minha garganta forma um caroço doloroso. Meu patrão me elegeu o "tutor" de seu filho que me desrespeita o tempo inteiro e torna a contabilidade um brinquedo seu. Sério, só vi coisa assim em novela.
─ É pra isso que o meu pai te paga um salário alto pra caralho, pra resolver problemas. Ele disse pra mim o quanto que tu ganha. Te vira com aquele babaca. — Dito isso ele sai da sala batendo a porta me deixando no vácuo.
Naquele momento eu queria ser protagonista do filme Kill Bill, onde um abuso desse tipo desencadearia uma cena de violência banhada a sangue. Muito sangue... Ah, o senhor Tarantino me compreenderia. Mas já que não sou ator, soco o arquivo de latão com toda minha raiva.
Limite? Eu estou à beira do surto.
Enfim, numa pequena pausa após discorrer sobre o que aconteceu em uma certa manhã contábil, falarei muito brevemente de minha pessoa para criarmos um pouco de afinidade.
Talvez.
Me chamo Túlio, e iniciei a narrativa em início de 2017, quando tinha trinta e sete anos e talvez estivesse diante do momento mais decisivo de minha vida.
Sou pós graduado em Ciências Contábeis, área pela qual tenho uma afinidade absurda e defendo minha profissão com zelo, pois é uma área ótima para trabalhar. (e estressante no nível máximo às vezes) Trabalhamos sob pressão devido às inúmeras obrigações, prazos de impostos e declarações ou multas que podem ocorrer pelo não cumprimento de algumas dessas informações não prestadas. Para quem está familiarizado só concorda que esse é apenas mais um dia numa contabilidade e para quem não conhece: seja bem vindo. Espero que ao virar alguns capítulos desse diário, vós não sejais tragados junto comigo para o mundo contábil no aspecto negativo.
Bem, eu descendo de alemães e poloneses, nasci no oeste do Paraná na região rural onde morei até os quatorze anos. Minha aparência não destoa dos meus parentes, tenho pele clara que não se dá muito bem com o sol, meus olhos são verdes claros e os cílio e cabelos, ou melhor, os cabelos que eu tinha eram castanhos claros. Ok, minha calvície começou com as entradas pronunciadas bem cedo e hoje prefiro manter raspado. Minha auto-estima nunca foi grande coisa, mas dizem que sou bonito... tem gosto pra tudo, afinal.
E... sou um homem divorciado, tenho um casal de filhos, um menino que tinha nove anos em 2017 e a filha, Rafaela com quatorze anos, que dizem ser a minha versão feminina. Fiz menção ao casal de filhos que tenho com minha ex-mulher e grande amiga Iraci e pelos filhos lindos que temos, mantemos um bom relacionamento pelo qual tenho me desdobrado para não falhar outra vez.
Quanto à mim, bem... no momento estou solitário. E infeliz por isso.
Seguindo com o que interessa...
Visualizo no celular o número do Braz, então me falta coragem de ligar. Ainda olhando no espelho penso em ensaiar alguma coisa, pois não consigo agir com naturalidade. Sei o que me aguarda. Eu melhor que todos, SEI, o que me aguarda e penso:
Porque o desespero, Túlio? Talvez porque ele tem seis supermercados e o valor de seus honorários cobre a folha de pagamento dos meus colaboradores?
Ou porque o Júnior é apenas um merda que ganha tudo de bandeja e não dá valor ao esforço alheio? E por isso, ele fode com tudo! Tudo o que me custou saúde, paciência e muita dedicação. E seu pai largou de mão. Tô literalmente me fodendo. De novo, repito incessante: à beira de um surto.
***
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