Pausinha do contador, pra respirar
Acima, ator Jude Law
Por Túlio...
Mais de uma vez comentei que o início de um ano na contabilidade é puxado. Tem ajustes, fechamentos e os impostos do mês vigente. Declarações pra se esbaldar, morrer abraçado com o computador, fazer hora extra até no sábado, morrer de dor de cabeça, sair esgotado que não dá tesão pra nada, se cobrar em excesso e saber que muita gente nem liga pra isso. Afinal é minha rotina. É meu trabalho. E cada função tem seus "apêndices".
Pra resumir ainda mais, o tróço não muda. Só aumenta e o governo nos agracia com novas Instruções que estabelecem novas obrigações maravilhosas. Isso vem como uma forma de incentivo que faz nossos dias mais iluminados e felizes. Dá-nos propósito já que não temos coisas suficientes pra fazer.
Só me resta o sarcasmo e as risadas de nervosismo diante de tanta novidade boa.
Mas deixa-me largar um pouco disso tudo pra não tornar vossos dias tão empolgantes quanto os dias vividos dentro do setor contábil.
Numa manhã da semana retrasada...
— Bom dia alemão lindo do Braz.
— Oi. — eu não queria ser chato logo ao acordar e por isso sou econômico nas palavras. Queria dormir mais uns vinte minutos ou meia hora ou quem sabe a manhã inteira. Porém o compromisso grita tão alto dentro da minha cabeça que deve ter acordado o quarteirão onde moramos.
— Ih, já vi que tá azedo logo cedo. — Braz pula da cama e vai pro banheiro assobiando.
A merda da preguiça/cansaço/desânimo fecha meus olhos por mais dez minutos e só acordo de verdade quando o cheiro do café da Itália vem me buscar pelo nariz.
Cadê o Braz?
Pensou em café e comida, ele é o primeiro da fila. E não é que ele me esperou pra começar a comer. Ficou mexendo no Instagram até eu chegar à mesa.
— Pensei que não ia levantar mais. — meu urso tá aborrecido e sei as razões:
1ª é a fome, Braz fica insuportável quando tá com fome;
2ª é o atraso, Braz odeia esperar;
3ª é que eu não disse bom dia e não fiz dengo.
Porra, ele não cansa dessa manha? Eu já sou maduro, detesto essa coisa de dengo. Mas ele adora, então eu respiro, suspiro e entro na sua.
— Amor... podia ter comido, eu tava tão cansado que esses dez minutos fizeram tão bem.
Ele me dá um gelo daquele, come calado e eu, como bom escorpiano que sou, dou o troco. Sou orgulhoso. Que se lasque. Quer ficar de birra, problema dele.
Odeio quando ele fica assim. Braz nunca fica caladão e eu odeio isso.
— Braz, quer falar direito comigo?
— Ué? Eu te tratei mal?
— Tá fazendo essa cena toda.
— Um "bom dia, amor" cai bem sabia? Percebe que eu acordo todo disposto, te encho de beijos, te encho de mimos e tu parece uma pedra.
— Meu Deus, longe de mim, eu me queixar que estou cansado. Ultimamente tá puxado...
— Sim. Eu até te entendo, também canso, também tenho responsabilidade, tenho noção do que tu faz e que teu serviço é estressante, mas não custa dizer: "bom dia, amor".
— Que coisa infantil Braz.
Pronto. Ele ficou mais irritado ainda. Já disse, eu não corro atrás.
Oito em ponto, eu estou em minha sala e Davi já está ali.
— Bom dia Túlio.
— Bom dia. — respondo.
— Bom dia Davi. — Braz fala atrás de mim e eu me arrepio.
— Bom di... ué. O seu Braz tá meio chateado com alguma coisa?
Conto ao Davi sobre o episódio matinal e ele dá uma risadinha. Depois comenta que é semana de pagamento e patrões ficam azedos, que deve ser isso.
— Deixa eu me estressar com essa "poia" dessa EFD-Reinf, mais uma declaração gostosinha. — tenho até o dia 15 pra mandar, mas quanto antes, melhor. Já faço as guias dos impostos retidos nas notas de serviços tomados, lanço no meu sistema, arquivo, faço um pouco de cada coisa, conferimos o fiscal acumulado de alguns dias, para apurar o imposto estadual e meu telefone toca.
— Oi Raul.
— Túlio, faz minha declaração de IR? O que eu preciso levar? Ei, o primo do Marcelo pediu se tu faz pra ele?
— Faço, faço. — não respondo com tanta animação.
— Ele tem um enteado, dá pra declarar como dependente? O pai do guri disse que não, porque ele já declara o filho como dependente.
Isso me tira da rotina, só pra variar.
— Túlio, não esquece que tem um cursinho on-line que começa as 13:30.
— Hoje?
— É. Duas horinhas. Posso ver também.
— Deve. A gente sempre aprende alguma coisa a mais nesses cursinhos.
Meu dia no trabalho rende pouco. Almoço de qualquer jeito porque o Braz tá com a mesma cara séria que não me encoraja a chegar perto. Só à noite que melhora...
— Amor... para de ficar emburrado comigo. — apelo pro abraço. Abaixo o orgulho! Dane-se, ele merece o dengo. — Não dá esses tapas, tua mão pesa pra caralho.
— Tu é bem nojentinho. Fiquei esperando o dia inteiro pra ganhar um dengo dessa coisa ruim, braba, esse alemão peste e só vem pertinho quando tô debaixo do chuveiro. Ainda faz isso que é pra eu ceder a água quente...
— Não entendi, sinceramente, porque você tava tão emburrado.
— Deixa de falar "bom dia amor" amanhã que vai entender bem.
— Credo...
Acho que fui perdoado e sinto até medo de esquecer de cumprimentar o homem na manhã seguinte. De novo dormimos abraçados, ultimamente só isso mesmo. Somos dois amiguinhos comportados, cansaço generalizado. Sorte que acordo primeiro e o chamo:
— Bom dia, urso.
— AH, bom dia, meu zóião verde. Paixão do Braz. Meu gato malvado. Peste. — cada elogio, um beijo, na cabeça, na bochecha, no pescoço. Porque beijo na boca logo ao acordar, só em fanfic.
Então depois dessa coisa toda, esse dengo com meu homenzão safado, só me resta produzir, né.
Coisa linda, meu SPED Fiscal deu um monte de erros. Tudo o que eu mais queria na vida. Sério, eu tenho tempo sobrando, foda-se.
Não, isso foi sarcasmo mesmo.
Mais alguns amigos que ligam pra agendar a declaração de IRPF e ficam batendo papo. Lá se vai meu tempo e mais tempo, porque tenho que sair correndo pra levar o Edu no oftalmologista. Tudo na corrida.
Na área de vendas do mercado, algumas funcionárias me abordam e perguntam se eu que faço RAIS e eu comento que é o departamento pessoal, daí as bem-informadas falam que quanto antes mandarmos, antes é liberado o abono do PIS.
— O abono é pago conforme calendário do governo. Temos prazo pra enviar a declaração.
Mais pra frente, uma funcionária reclama que é a primeira empresa que tá exigindo que ela faça o CPF do filho.
— A empresa não tá exigindo de você. Mas para cadastrar como dependente no e-Social, é obrigatório informar o número.
— Nunca nenhuma empresa pediu. Porque eu só recebo salário família de dois filhos, se tenho três?
— Menores de 14?
— Ah não, só dois que são.
Perto do açougue, outro funcionário pergunta se eu faço um acordo com ele pra sacar o FGTS.
— Sobe e fala com o Braz, isso é com ele.
— Será que eu posso pegar o Seguro Desemprego?
— Se você for demitido pela empresa, talvez.
Quando ele termina de falar, já tem mais outra funcionária com o holerite na mão, reclamando que não apareceu as horas noturnas.
— Horas noturnas? Trabalhou entre as 22 às 5 horas?
— Pelas minhas contas passou uns quinze minutos um dia. Eu trabalho na limpeza, fico aqui depois que o mercado fecha.
— Sobe e fala com o DP. Lá elas te explicam.
— Ei Túlio, o Ademar do depósito pediu se tu podes ir lá na portaria que a nota veio sem a guia.
Era mais fácil, o cara ligar pro faturamento e resolver. Eu tô com meu serviço parado e começando a ficar estressado. Mas como eu tô perto do setor, dou uma chegada lá e preciso acalmar o conferente, que é mais grosso que cano de passar bosta. O motorista do caminhão foi elegante, em minha opinião, se fosse comigo, eu respondia à altura.
— Tá vendo essa nota? Tá vendo alguma guia grudada nela?
— Eu transporto a mercadoria, moço, isso daí nem é nota, é uma Danfe. Não trabalho no setor fiscal ou no faturamento onde expedem a nota — toma papudo, quis dar uma de metido pra cima do motorista e levou uma resposta. Só que Ademar não gosta muito e só segura a língua porque eu chego.
— Túlio, né que não é pra aceitar nota de carne sem a guia? Esse daí trouxe essa nota. Cadê a guia?
— Quando falta guia anexada a Danfe, você tem que ligar pro comprador e ver o que foi combinado. Se a carne é comprada dentro do estado não precisa de guia.
— Porquê?
Pela décima vez, sem exagero, eu explico pro Ademar e que no fim, responde:
— Aham, eu sei.
Túlio, não é uma pessoa tão elegante.
— Sabe? Porque pergunta cada vez? — ele me olha com raiva e não retruca.
Volto pela área de vendas e alguém pergunta se o seu Braz tá contratando menor aprendiz, depois, ouço uma repositora falando pra outra que a empresa ainda não mandou a RAIS. Me pergunto, o que ela tem com isso? Isso é obrigação da empresa!
AH, preciso da minha sala e voltar para os meus fechamentos. Tô com o SPED parado, já é dia 8. Eu e Davi temos o ICMS pra apurar, mas antes gosto de validar e corrigir os erros, pois já me aconteceu de influenciar no valor da guia.
Resumo para o Davi sobre minha aventura recente na selva.
— Sério! Ele disse: eu sei. Eu, simplesmente odeio do fundo do coração, quando alguém pergunta algo, aí você começa a explicar da base, porque não sabe o quanto a pessoa está inteirada e aí ela te corta e diz: eu sei. Aí pergunta de novo, aí a gente respira e começa de outra maneira e ouve novamente: sim, isso eu já sei.
— Dá raiva só de escutar tu dizendo. Pensei que só eu ficava puto com isso. Mas eu respiro mais umas cinco vezes, não consigo ser seco e dar uma resposta dessas. Não adianta, sou muito mole.
— Tu é bonzinho demais Davi. Eu perco a paciência mais fácil. Mas agora vou baixar a cabeça e tentar trabalhar.
— Deixa que eu atendo o telefone quando tocar. Digo que tu saiu.
— Obrigado. Faz isso, por favor.
O telefone parece que tem vida própria. Meu ramal chama e Davi puxa a ligação, mas me passa.
— Oi — falo com desânimo — Amor... vou sim. Já tô indo. Davi, tô ali na sala do Braz.
Me encaminho para a sala dele. Nada de excitante, só uma reunião entre ele e quatro funcionários que lançam as notas. Deu uma briga no setor e a chefe tava com o ego inflamado.
— Ela disse: "o que eu tô fazendo aqui?", só porque eu fui explicar pro Richard, uma coisa que ele não entendeu. Cara, somos uma equipe! Qual o problema se eu respondo algo que sei?
— Tu sempre sabe mais que todo mundo. Mexe em tudo. Fica rindo quando eu falo, faz eu me sentir como se fosse uma idiota...
Aiai, porque Braz me chamou? Quase duas horas de exaltação, pedido de demissão, sincericídio em todas as direções, não importando que alguém seja atingido por essas balas perdidas, choradeira, calma e no fim, tudo resolvido.
— Que dia, alemão. Tá foda hoje. — Eu tava pronto pra pedir um colo, choramingar meus problemas e que estou atado, com o tempo cagado e que meu serviço não está rendendo e tudo o que faço é socorrê-lo. Massageio seus ombros por um tempo, cafungo seu pescoço, aspiro seu cheiro bom e faço algum dengo, pedindo colo e deixando-o todo calmo... e tarado.
— Para! São quatro horas da tarde, tem gente esperando pra falar contigo. Deixa eu ir.
— Vai... mas hoje à noite quero mais dengo, vai se preparando.
Claro, pra ele... sempre.
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Oi pessoal querido. Pausa pra postar um conto, que é quase uma justificativa pela minha ausência. Mas tirei uma pausa, porque amanhã tem mais correria, cansaço, suor e contabilidade, kkkk.
Beijo e muito carinho♥♥♥♥
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