Ativo e Passivo - Briga


*Túlio*

O #ficaemcasa para quem trabalha em comércio varejista não houve. Operadores, repositores, açougueiros e demais funções não puderam parar em nossa empresa desde o início, observando todas as orientações, claro. No Administrativo fizemos escalas e dependendo do funcionário, preferimos que trabalhasse com acesso remoto, eu por companheirismo não fiquei nenhum dia em casa, devidamente enluvado e mascarado, dispensei o Davi do trabalho presencial no começo e fiquei com Braz na empresa.

Como sempre eu colocando meu trabalho acima de tudo. Atualizando: estamos bem, graças a Deus.

Pesou mesmo, pelo que acompanhei, ao pessoal de DP e RH com tanta alteração seguida relacionada ao evento atual. É complicado tomar um lado só nessa questão e a balança onde pesa economia x pandemia, está fragilizada demais. Tiramos por isso o foco da questão e partimos para os efeitos desse isolamento como casal.

No começo, Braz estava enlouquecido com os tumultos dentro do mercado quando se pedia isolamento social, foi um dos primeiros que adotou as medidas de controle para entrada de clientes. Cansei de ouvi-lo gritando com distribuidoras devido ao aumento de certos itens que de repente se tornaram essenciais.

— Aham, o 500 ml tu quer que eu repasse a dezessete reais pro cliente? Tá querendo que o Procon bata aqui? Claro que não pode fechar o pedido.

Ele andou cuspindo fogo com a história do álcool em gel. Eu procurei ficar mais na minha porque tomei uns coices ao comentar que dois colaboradores do ADM se negavam a vir a empresa buscar os documentos pra conferência.

— Porra, eu que tô indo aos quatro mercados todos os dias? Ninguém se preocupa comigo!

— Pode parar de se alterar comigo? Tem decreto...

— Acha que eu não sei ler?

Pior que eu nem tive energia pra fazer minhas vingancinhas que nos deixam bem no final da transa, pois a coisa é de uma proporção tão gigante que me calei de verdade. Olhava ou ouvia o Braz que mantinha um semblante preocupado com os empregados, com os nossos amigos empresários que estão fechados até o presente momento, preocupado com a Itália que tem problemas respiratórios e seu pai que é extremamente teimoso e não parava em casa nem com as broncas de dona Maria. 

Aí pra "relaxar" conecta no Face, Insta e Wpp: tá o Raul cutucando o governo estadual, Patrick com aqueles posts com piadinhas envolvendo o coronavírus, Tiago (dentista) fomentando correntes de oração, o que me surpreendeu de maneira positiva, sendo ele um dos que ficaram fechados, João aproveitou pra soltar aqueles posts contábeis informativos, que só eu e a Liz curtimos e os lados direito e esquerdo como sempre se tacando no pau.

GENTE! QUE SACO ISSO!

Já deu!

Não postei nada. Quem me conhece mesmo sabe que só tenho postadas uma meia dúzia fotos minhas com filhos, marido e lugares que fotografei quando viajamos juntos. Mais nada. Não sou modelo de interação social pra ninguém. Adoro privacidade e ninguém se mete muito nos meus assuntos. Não sei né, talvez eu seja o errado.

Mas gosto sim de interagir quando é possível. Conversar com alguém, ouvir os amigos, rir um pouco quando o clima tá bom pra falar umas besteiras, destilar umas bobagens sarcásticas e até trocar umas alfinetadas pra tocar/ouvir umas verdades sem perder amizade por isso.

Até eu que sou mais reservado senti falta de um encontro com amigos, então no sítio (domingo), convidamos dois casais para almoçar e passar a tarde. Raul veio como nem esperávamos, sozinho e Patrick com o mesmo drama que o amigo resultou em um encontro de quatro pessoa que renderam risos.

— Moreno tá puto comigo. Olha, eu juro que sosseguei pra caralho.

— Raul levou um pé no rabo? — Braz tira sarro — Sempre foste tu quem mandou e desmandou...

— Se tu visse pelo que o Maurício me trocou. Misericórdia. Um cara sem eira nem beira, um coitado.

— Resta você e o Patrick — brinco com Raul.

— Acho que um alemão deve ser uma delícia, Braz não te larga.

Ficou estampado na cara do Braz que ele não gostou do que ouviu. Relacionei com o evento atual e deixei guardada na cabeça a expressão dele. Não vi maldade na fala do Raul. Patrick confessou que Moreno merece muito o seu respeito e que há tempo a química tinha aguado, então suas idas e voltas não o abalam mais.

— Não quero parecer um canalha, mas quando volta, beleza, se não quer nada, por mim... indiferente.

— Tu só quer um corpo pra abraçar, seu canalha — Raul tira onda. — A hora que eu te pegar, alemão, tu se apaixona.

Deixa eu comentar uma coisa, ninguém tem por costume chamar ao Patrick de alemão como apelido, o que é diferente pra mim, que nem sou alemão nato igual a ele. Falam: o alemão do Braz, alemão chato, o alemão contador... por aí. E o Braz que já tava com uma cara meio emburrada, ouvia a palavra e desviava o olhar. Não consigo acreditar que ele estava com ciúme disso. A não ser que passou a nutrir alguma coisa pelo Raul de repente e nesse caso eu que deveria abrir os olhos.

Bem anos 90, eu estava com um moletom preto, daqueles que só se usa no inverno e no sofá de casa. Mesmo novo não é a coisa mais atraente de se olhar. Esquentou um pouco e eu tirei o casaco ficando só de camiseta e aquela calça que mostra mais contornos do que deveria. Não achei necessário trocar por um jeans quando avaliei no reflexo da janela que não tinha nada chamativo.

— Tá só provocando hoje Túlio... — Raul fixa o olhar na minha bunda que não teve como não entender do que ele tava falando e eu respondi:

— Repete essa merda na frente do Braz. Eu nunca dei confiança pra ninguém.

— Nem precisa dar confiança com um rabão desses...

— Eu alguma vez te dei liberdade? Nem fala mais comigo. 

— Túlio tu sabe que é brincadeira. Porra nada a ver. Mas que tira o sono, tira.

Com o rosto fervendo de ódio puro e receio de uma briga entre duas pessoas que sempre foram tão amigas, muito tempo antes de me conhecer até, eu coloco um jeans e não olho mais na cara do Raul, nem me dirijo a ele durante o tempo em que fica conosco. Patrick parece ter sacado porque cutuca seu amigo uma hora e pergunta se ele quer ir pra casa. Raul ainda bebe, acende um cigarro e fica pensando, antes de concordar e seguir o Patrick. E o Braz continua estranho.

— O que o Raul te disse?

— Falou da minha calça, daí eu troquei.

— O que que ele falou?

— Acha que eu dei confiança pra ele?

— Túlio, eu não perguntei isso. O que ele falou?

— Um comentário sobre a calça.

— Só vou perguntar mais uma vez.

— Braz! Quer parar com essa merda? Pergunta pra ele!

Dia maldito que eu não devia ter saído da cama.

Eu não consigo me rebaixar quando ele parte pra esse tom grosseiro. Nunca dei motivo pra desconfiança o que difere muito de um ciúme bobo. Fui pra longe dele, me joguei numa outra poltrona na mesma varanda do segundo piso e com incredulidade ouvi exatamente isso:

— Oi Raul, falou o que pro Túlio sobre a calça dele? Não quero saber se tava brincando ou não. Eu te conheço há uma vida. Confio sim. — Com o amigo a conversa foi tão de boa que pensei: graças a Deus, tudo certo agora", mas comigo foi na patada quando perguntou pra mim: — Legal... tá tirando o sono dele então?

— Pergunta pra ele. Foi o babaca do Raul que comentou. Ele não disse que era brincadeira e você ficou todo querido com ele? Não quero conversar. Resolve com o cara. 

Ao dizer isso, Braz levanta e não chega perto de mim pelo resto do domingo e segunda não olha na minha cara. Eu achei por um momento que eu estava errado em não tentar explicar melhor e insistir que não tinha dado abertura ao Raul que faz uma coisa boa entre várias merdas. Fiquei super deprimido, senti vontade de chorar, coisa que não é do meu jeito de ser, me senti injustiçado pela falta de confiança. O Raul falou merda pra mim, repetiu pro Braz e eu que estou errado?

— Túlio, querido, tu quis preservar a amizade deles. O Braz que deve estar com essa pressão em cima dele e descarregou em quem ele mais ama... — Davi tenta amenizar — Daqui a pouco ele reconhece.

— Vou falar com ele de meio dia. Pode ser que se acalmou.

De meio dia a comida ficou entalada, ele não falou comigo. Um silêncio tão frio que pensei que minha própria desconfiança sobre ele e Raul tinham mais fundamento do que eu imaginava. Só que minha esperteza me calou a tempo, porque ele ia me jogar na cara que eu estava tentando reverter as coisas.

Quando ele senta no sofá, encaixa o sapato no pé eu me ajoelho no estofado bem perto dele e falo:

— Braz... o Raul disse que eu tava provocando ele com aquela calça, sabe que eu preferi ficar quieto pra não ver os dois brigando.

— Preferiu não me contar.

— Sim, foi isso que eu disse.

— Ele te cantou de brincadeira, segundo ele mesmo e tu preferiu não me contar. Porque? E não vem com esse papo de amizade nossa. O cara dá em cima de você o dia todo, que quer pegar o alemão, que alemão é delícia...

— Falou do Patrick, porra!

— Aham... O Patrick, sei.

— Então ele dá em cima de mim, segundo você mesmo, e daí em vez de dar uma cortada dele, vem descontar em mim?

— VOCÊ tinha que dar um corte.

Poucas vezes tive vontade de mandar ele tomar no cu de verdade, sem o tom brincalhão.

— Se quer fazer essa merda comigo, vá até o fim. Eu me garanto com relação ao respeito, eu não vou me rebaixar mais do que isso. Acredita no seu amigo que terminou com o Marcelo e deu em cima dele fazendo o João e o cara quase se separarem, fora o monte de merda que ele faz que todo mundo acha graça. Se te ofendi, magoei tanto assim eu peço desculpas, só isso. Tô indo trabalhar, não quero carona. Vá sozinho.

À tarde eu me desliguei completamente da discussão. Davi não tocou no assunto prevendo de certo que ia me fazer mal. Brigar de verdade com a pessoa mais importante de minha vida é a pior coisa do mundo.


*Braz*

Em SC quando saiu o decreto em 17/03, tivemos problemas com o deslocamento de alguns funcionários que dependem de ônibus, então o alemão, Davi entre outros que fazem parte do escritório foram pra área de vendas auxiliar como foi possível até que eu conseguisse resolver isso.

Fechar os mercados não foi possível, então reduzimos horários e tomamos aquelas precauções solicitadas para andamento das coisas. Em casa, tudo mudou também. A rotina mudou. Nada de academia, jantar com amigos, voltinhas pra relaxar. Mas tudo isso se Deus permitir voltará ao normal em breve, agora tudo suspenso. OK? Ok então.

Os mercados antes fechavam as 21, mas a partir de sábado passamos a fechar às dezenove. Eu me senti no epicentro do pior terremoto, me chamaram de capitalista, me acusaram de não estar preocupado com a saúde dos empregados e alguns funcionários se estressaram comigo quando ofereci a oportunidade de trabalhar meio período no ADM em revezamento/escala para que não tivesse contato prolongado. Queriam estar 100% em casa. Gente, bom senso, né. Duas pessoas por setor, uma de manhã e outra de tarde gerou tanto desgaste que deu vontade de mandar todo mundo embora. Paguei Uber para quem tivesse problema de deslocamento, dei ajuda de custo aos empregados que têm carro pra que pudessem dar carona à mais alguém. Briguei por preços. Repassei álcool pelo preço que paguei na nota. Meu DP/RH trazia a cada pouco uma novidade com relação aos empregados caso eu tivesse que fechar, porque foi bem complicado e pensei na possibilidade. Fechei aos domingos, clientes xingavam na página do Face, abria, o povo dizia que patrão só pensa no seu bolso. 

Como se faz pra agradar todo mundo? 

Eu devia ter dado uma de babaca e ficado em casa, mas dava aquela sensação de eu estar arriscando meu colaboradores, enquanto eu ficava de boas. Túlio não aceitou quando eu mandei que trabalhasse em casa. Desde então eu fiquei com esse peso e preocupação com relação a tantas coisas que não relaxei. Mais de um mês que não tenho cabeça pra nada. Nenhum tesão e muita insônia daquela que nos faz acordar com cara de doido de tão cansado.

Sempre soube que era só abraçar o alemão que isso aliviava, mas o estresse era tanto que tinha medo de falar qualquer coisa e acabar discutindo de tão impaciente que eu tava.

Não deu outra...

Eu sempre fui um ciumento confesso, já briguei mais de uma vez com meu marido e por certo também sempre fui eu quem pediu desculpas. O que o Raul fez no domingo foi uma canalhice, antes quando me provocava geralmente fazia na cara porque sabe do meu ciúme pelo alemão. Mas ele fez pelas costas e o Túlio pra não explodir, não quis falar por esse maldito orgulho dele de achar que seu caráter é o suficiente pra não precisar se explicar muito. E eu pisei na bola. Há dois dias que o clima tá uma merda. Ele quis trabalhar no feriado e eu nem consegui dizer que já tinha decidido ficar em casa com ele. Queria me acalmar e pedir pra passarmos uma borracha no assunto, mas ele é duro. Já é complicado de lidar, quando tá com a razão, ele pisa. 

Sempre vamos no meu carro para a empresa, mas hoje cedo e o vi mirar seus olhos verdes na chave do seu enquanto arruma a gola da camisa social que aparece fora do suéter. O charme dessa praga mexe tanto comigo que me deixa sim extremamente possessivo.

— Tá... vai comigo né? — minha ordem sai disfarçada de pergunta, eu não me aguento. Pra testar minha paciência e ainda mais o ciúme, ele pisa:

— Se você tiver pronto.

Não me rebaixo no carro porque ele demonstra uma senhora frieza. A pessoa quando sabe que tem a outra na mão, ela pisa e se eu não pedir desculpas, ele não tem a menor pressa em me tirar do castigo. Assumo que mereço.

Ele é meu companheiro e amigo. Meu amor.

Maldito esse orgulho. Vou explodir.

Mal chego em minha sala, mando Skype ao Davi, mesmo sabendo de sua "fidelidade" ao meu Túlio, eu vou abrir o jogo com esse cara. 

"Davi, dá uma chegada aqui"

Eu sei que ele vai contar, ele joga limpo com Túlio. Mas vou implorar que ele pelo menos uma vez me ouça em segredo.

— Oi, bom dia patrão. — Davi me olha entre assustado e preocupado.

— Davi, não conta pra ele, por favor. Eu sei que Túlio e tu tem um laço de amizade e ele confia em você... Eu duvido que ele teria coragem de trair... mas sabe o Raul... — me sinto constrangido demais em falar essas coisas.

— Eu tô por dentro e acho um absurdo. Braz, você sabe que o Raul por mais boa pessoa que ele seja, sempre foi meio cacareco. O Túlio tá muito chateado.

— Eu imagino — nunca pensei que em tanto anos que tenho a empresa, ia chorar na frente de um colaborador, mas acabou acontecendo. Os olhos ficaram úmidos. Olhei para o sofá preto e respirei profundamente. — Não comenta?

— Eu não escondo nada dele, mas não vou me meter. Se eu puder ajudar faço qualquer coisa. Mas fala com ele. Ele é meio durão...

— Meio??? Rá! O Túlio não cede.

— Cede sim. Chama ele e conversa. Não gosto de saber que brigaram... aquela briguinha de todo dia é até fofo, mas assim sério dá uma baita tristeza.

— Ele vai me pisar um monte. Eu fui um babaca na hora da raiva.

— Vai não. Ele te ama. Mesmo sendo a sua peste ruim, ele é maravilhoso. Tu sabes melhor que eu né patrão.

Fiquei várias horas resolvendo assuntos sem contatar o Túlio e quando deu doze horas, pelo silêncio no escritório, imaginei que ele tinha pego um Uber pra não falar comigo. Catei a máscara e nisso ele entra na sala usando a sua.

— Vamos? — ah esses olhos verdes que amo!

— Tá. Ei...

— Me chama da próxima vez e não mete o Davi na nossa briga.

— Calma, Túlio. Não brigou com ele também, né?

— Até parece. Como assim, "também"?

— Ele contou?

— Não. Nem precisa, mas chegou chorando depois de vir falar contigo.

E quem chora sou eu. Desabo na frente do Túlio. Acho que aprendi com ele a segurar muita coisa e esse mês ficou à flor da pele. Ele me abraça e diz:

— É por isso que os anos passam, pra gente ganhar força e um aguentar o outro.

Queria chorar feito moleque e portanto se falar a voz sai embargada. Ele massageia minhas costas até que eu soluce e solte os pesos sobre a mesa junto com minha cabeça apoiada nos braços. No alto dos meus 4.3 senti vergonha de olhar para ele, pois eu estava me sentindo fraco.

— Perdoa? — Consegui pedir quando finalmente flagrei os olhos claros e o risinho metido dele.

— Aiai... tu merecia um soco e o Raul, uma voadora no peito. Sabe que ele ligou até pro Adriano pra ele falar pro Davi que trabalha comigo pra dizer que fez uma brincadeira e "achava" que tinha sido mal interpretado?

— Eu perdi a cabeça...

— Perdeu mesmo. Eu só perdoo porque você tá numa pressão grande, não tá dormindo direito, fica olhando o boletim do Covid-19 cada duas horas, tá pior que eu com o assunto com C. Hoje EU que vou te obrigar ficar em casa à tarde... é feriado. Holiday.

— Odeio ser possessivo. Não adianta.

— Se quer ser possessivo guarde pra si. Mas pra você ficar só um pouco convencido e parar de chorar, eu digo: você é meu dono sim. Pronto. Braz!

Esse alemão peste que não chora e parece tão frio... é a coisa mais querida do mundo.

Nem precisa dizer "eu te amo", já sabemos disso e preciso me lembrar dessa discussão chata quando cogitar desconfiar dele outra vez.

Pelo menos uma tarde (fora os domingos que não relaxei, um sequer) eu vou fechar os olhos e apertar meu olhos verdes, sem notícias, decretos, reclamações, Procon, DP/RH, ciúme e angústia.

*

oi gente♥ bom feriado de Tiradentes a vocês



***que dia de m... hoje não é um dos melhores, desculpe o desabafo e a qualidade desse conto de hoje***

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top