Aceitação
Por Túlio...
Nem todos os dias nos trazem somente sorrisos.
Eu fui criado numa família religiosa protestante, filho de uma descendente de poloneses e um descendente de alemães. A família de minha mãe veio para o Brasil na década de vinte do século passado, a família de meu pai já estava aqui há mais tempo, eram imigrantes e agricultores, sendo meu pai, um colono dono de poucos alqueires no oeste do Paraná.
Minha educação foi rígida, foi marcada pela disciplina na qual os métodos corretivos eram surras de cinta, chinelo, vara de pessegueiro. Os delitos que cometíamos nos anos 80, época de minha infância não eram graves delitos. Também nunca fui espancado violentamente. Meu pai achava que uns tapas diziam mais que palavras. Eu fui um moleque que se precisasse surrar um colega pra me defender, eu o faria. Eu não fui uma criança infeliz, eu brinquei muito, tive amigos, muitos primos, brinquedos nem tantos, pois no interior sempre achávamos mais legal pode correr riscos como provocar bois no pasto, atirar esterco seco com estilingue, matar sapos (não me orgulho, infelizmente era molecagem e até hoje eu odeio os pobres coitados), encher vidro de Nescafé com girinos e correr atrás das meninas que tinham nojo e ser caçoado por algum apelido quando estava na pré adolescência.
"Nenenzinho da mamãe", apelido que recebi por ser a única criança que não tinha irmãos. Geralmente o povo tinha de três pra cima e eu jamais tive, pelo menos por parte de mãe. No início da adolescência eu tive que vê-la definhar, perder os cabelos e do pai ouvir apenas que ela tinha um problema no fígado e que as ausências dela na época em que ficava hospitalizada era pra receber "vitaminas". Isso foi dos meus treze até o início dos meus quatorze anos, em dezembro de 1993.
Para a morte dela, disseram-me que foi por falta de ar. Parecia um tabu, dizer a palavra câncer.
Eu parei de comer. Não dormia. Não sorria. Ficava olhando pela janela do meu quarto, imaginando que o Corcel do meu pai em algum momento a traria de volta e que passaríamos o natal juntos. Eu não tive alegria naquele natal, nem mesmo chorava. Eu senti um bloqueio estranho. Mesmo imaturo, eu estava prestes a explodir. Consegui chorar quando uma irmã dela, a mais velha, que tinha uns quatro filhos, pediu ao meu pai para me levar com ela para Santa Catarina e ele... sem hesitar disse: "pode levar".
Ele estava tão machucado quanto eu. O homem, em sua simplicidade, achou que eu poderia acabar igual a minha mãe em pouco tempo. Eu me senti rejeitado por ele. Já não éramos muito próximos, então minha partida significou a separação definitiva.
Mais tarde, meu casamento com uma mulher de pele negra foi motivo para novas discussões, pois ele defendia um posicionamento racista, que eu nunca entendi. Meus dois filhos nos aproximaram, porém logo eu estaria separado judicialmente de Iraci, que jamais deixou de ser uma amiga, amiga de verdade.
Então aconteceu que me descobri, me aceitei como um homem gay, quando depois de anos com Braz, eu teimei que era bissexual por já ter tido relações com mulheres. Não me importo hoje em dia de falar para quem quer que seja que eu sou gay, amo um homem, tenho um companheiro e nada me fará mudar isso. Amor acima de tudo.
Meus filhos, amigos (nem todos os de antes), Iraci e pouquíssimos parentes me aceitam, me apoiam, mas meu pai, jamais aceitou ou aceitará.
Tentei me reaproximar, quando sempre foi uma complicada relação, amor quase nulo, do homem pelo qual sou unido pelo laço de sangue, mas tudo que encontro é sua reprovação e palavras duras, ferinas.
Em 22 de março foi seu aniversário e mais uma tentativa de minha parte de ter um contato mais próximo e caloroso...
Quem me atendeu a princípio foi sua esposa, a madrasta que nunca gostou de mim.
— Walburga, tudo bem contigo? Como que...
— Espera que já chamo o Pedro.
Ela me corta, sem dar assunto. E quando ele atende, eu começo do mesmo ponto:
— Pai, como o senhor está?
— Tô "bão". Trabalhando muito na lavoura, mesma coisa.
— De saúde, o pai tá bem? As meninas?
— Tá tudo bem.
Uma pausa de uns três segundos é algo bem negativo, mas insisto em puxar assunto com ele.
— Aqui, nós todos estamos bem. Pai, sabe que pode vir me visitar aqui.
— Ali? Eu fui dois anos seguidos na casa da tua tia Sigfrida, é ali perto, mas não te liguei porque não quero ver "aquilo". Túlio, eu já tô velho, tenho sessenta e cinco anos, mas parece que tenho noventa. Envelheci muito mais rápido depois das tuas "novidades".
— Pai, uma pessoa de sessenta e cinco anos ainda tem muito vigor. Eu acho que o senhor trabalhada demais. Mas também sou assim e me cobram muito pra eu diminuir meu ritmo. Enfim... pai, queria ver o senhor, sentar pra conversar.
— Se for pra falar aquela merda, nem perca tempo. Nem é bom tu aparecer por aqui, porque a vergonha é tão grande, mas tão grande que virou piada. A parentada tá sempre comentando, não posso ir mais em nenhuma comemoração de casamento, crisma e batizado que sempre alguém me olha com pena. Ou fico sabendo das piadinhas pelas minhas costas.
— O senhor nem devia se importar. Eu tenho um monte de qualidades, sou uma pessoa de bem.
— Gente de bem não faz essas coisas. Onde que já se viu. A filha da tua tia é outra que não tem vergonha na cara, chamar uma mulher de esposa. Me dá nojo de imaginar um macho com um saco no meio das pernas chamando outro homem de marido.
— As pessoas se gostam pai. O senhor pode não aceitar, mas pelo menos não fica propagando essa raiva, por favor.
— Eu ainda não entendo o que fiz de tão errado pra ter recebido um castigo tão grande.
— Eu tenho dois filhos também. Eles me amam, sabia?
Um caroço começa a formar na minha garganta e eu peço mentalmente para que ele desligue na minha cara. Só que ele parece disposto a me insultar mais do que nas outras tentativas de contato.
— Deus me livre de saber que aqueles dois cometeram um erro igual ao teu. Sendo filhos daquela mulher, já se espera que...
— Chega. Que Deus te abençoe, que tenha muitos anos de vida. Tchau.
Eu desligo. Estou trêmulo. Choro. Volto a ter quatorze anos quando ouvi dele: "pode levar". Me pergunto, será que tem pai ou mãe que não sente amor por um filho? Claro que existe, senão não haveria tanta notícia de crueldades ocorridas dentro de lares. Ele disse numa conversa por telefone há alguns anos que se eu morasse mais perto, pagaria um caboclo pra me dar um fim. Minha filha se ofendeu tanto por isso que o enfrentou, falou que tinha raiva dele e que ia odiar pra sempre enquanto ele não me pedisse desculpas. E várias vezes ela me questionou se ele pediu desculpas a mim. Eu não menti. Ela continua com o coração tão fechado quanto o dele. Edu, pelo contrário conversa com meu pai e é educado ao telefone, retrucando com muita calma:
"vô, eu amo o meu pai, ele é bom pai e amo também o tio Braz".
Eu me agarro nesse amor o tempo todo, no amor de quem está perto ou longe, quem é ou não do meu sangue. Esse amor que antes só minha mãe teve por mim. Queria ser frio o suficiente para ignorar a existência do meu próprio pai, mas não consigo. E por isso que sofro a cada tentativa de aproximação.
Não há muito que fazer, senão deixar a tristeza ir embora, se dissipando lentamente como névoa e me esforçando pra não demonstrar o quanto meu coração ficou quebrado nesse dia.
— Túlio, vamos fazer um social hoje a noite?
— Hum?
— Amor? O que aconteceu?
Odeio quando Braz me vê assim, ele sabe quando estou triste e não tive tempo de lavar o rosto. Meus olhos ainda estavam molhados. Fui pego de surpresa.
— Liguei pro pai hoje, há uns dez minutos. Ele tá de aniversário.
— Oh alemão... vem cá.
Eu nem hesito em levantar e deixa-lo me abraçar. Peço em seu ouvido para que possamos ficar em casa ou sozinhos em algum lugar, pois não tenho ânimo para socializar naquela noite que chega devagar.
Não consigo entender como e com que tempo Braz conseguiu fazê-lo, mas quando chego em casa para um banho, encontro Iraci, seu marido, sua enteada, meus filhos, Carlinho, Francisco, Luíza, Itália, Raul, Davi e Adriano e... Vasco, um primo do Braz que está no país com planos de voltar a morar aqui na região.
Vasco e Raul no mesmo ambiente? Entendi o porquê de Marcelo não estar aqui.
A tristeza que eu sentia foi espremida para um lugar onde eu não consegui mais acessá-la. Amor? Ali eu tinha isso de sobra e disponível o tempo todo. Não sei porque o busco onde não me aceitam. Talvez eu ainda o faça, por achar que vale a pena compartilhar as coisas boas que tenho com meu pai. Mas devo deixa-lo. Meu momento, sexta-feira à noite foi delicioso. Todos ali vieram rapidamente quando Braz comentou que eu tava triste e eu nem pude dar bronca nele, pois foi maravilhoso outra vez.
Como que posso me imaginar sem isso tudo só para contentar pessoas que não me aceitam como sou?
Sinto muito para eles. Se a cor da pele, o credo, opinião política, orientação sexual separa as pessoas, devemos então nos unir a quem nos aceita com todas essas peculiaridades. Sentir o abraço dessas pessoas, deixar que nos amem. Que suas palavras nos encham de força e esperança. Ficar com elas porque elas querem ficar conosco. Pessoas que nos amam, não por essas "diferenças", mas porque nos amam, olham além disso, vendo apenas o que somos de verdade. Somos iguais. Nosso amor não tem raça, não tem religião, nem rótulo.
Minha vida é um presente do jeito que é.
Se uma pessoa me jogar uma pedra, sei que tenho um escudo chamado de família, que são além dos que tem meu sangue, os chamo de amigos.
Foi um jantar bem simples. Meu pai foi mencionado, o pai de Braz, o pai de Raul, pai do Adri, pai do Davi, todos os pais em algum momento tiveram que lidar com a aceitação. De todos, achei que o meu parecia ser o pior, mas Davi me mostrou uma cicatriz acima do olho que ficou após uma agressão física sofrida. Raul ficou quase dez anos sem falar com seu pai. Braz sofreu preconceito também. Adriano falou que seu pai morreu sem perdoa-lo como se isso fosse um erro. Carlinho disse que não sabe quem é seu pai, mas que sofre preconceito até hoje, porque afeminados se expõe mais e com isso são julgados de maneira mais dura. Francisco disse que sempre se fez respeitar, mas que dentro da polícia é um dos piores ambientes para assumir-se.
Terminei o dia mais leve, ainda que aquela feridinha doesse dentro de meu coração. Quis abraçar o Braz com mais força. Ele me abraçou. Não me senti mais emotivo. Me senti pleno quando lembrei das pessoas que estiveram recentemente conosco naquela noite. Só consegui fechar os olhos em paz, dormir bem e acordar feliz no sábado.
— Alemão do Braz... ei, vamo folgar hoje e amanhã?
— Opa... ai vamos sim, já fiz as guias do PIS e COFINS...
— SH! Sem falar "palavrão".
Ele me interrompe e tampa minha boca de maneira engraçada.
Tiramos o final de semana para um relaxamento de casal apaixonado. Em cima da hora, um hotel mais retirado. Tudo que eu preciso, Braz.
— Precisa apelar?
Ele tira a camisa quando chegamos ao hotel, fala que precisa de um banho, uma massagem nas costas, pois dirigiu quase quatro horas... Eu só penso besteira olhando o peitoral peludo. O corpo forte. O carinho dele que é só meu. Seu jeito brutão. O sorriso debochado quando eu fico sério.
— Amor. Me abraça.
— Vem cá que o papaizão enche essa peste de dengo.
Vou mesmo. Sob o chuveiro ficamos um tempo só abraçados. Só falando coisas bobas. Na cama, ele que me faz massagem, depois deita-se ao meu lado e me aperta, então dormimos algumas horas, nessa bagunça de horário que fizemos nem almoçamos. Jantamos no hotel, sopa de entrada, já foi o suficiente. Descobrimos uma casa noturna GLS, ele me insistiu para irmos, há uns anos que não íamos. Ficamos mais do que à vontade, nos beijamos em público, ouvimos risos de pessoas felizes, casais apaixonados se amassavam pelos cantos. Amigos dançavam juntos. Eles com eles, elas com elas, elas com eles e eles com elas, e todos juntos, iguais a nós.
Meu domingo, hoje, começou bem melhor. Acordei com dor de cabeça porque bebi uns destilados (não gosto, mas virei mesmo assim).
— Ah... tem dipirona?
— Oh meu cachaceiro, tomou duas caipiras ontem, o que aconteceu?
— Tava bom demais.
— Foi mesmo né? Garanto que muita gente ali tem histórias parecidas ou até piores que a nossa. A gente precisa se cercar disso: coisas positivas, alegres, das pessoas que nos amam e deixar o que faz mal de lado.
— Verdade.
— Te amo, peste ruim.
— Para de bater. — baixo a cueca pra olhar a marca da "manopla" na minha bunda, porque a mãozona dele pesa pra caralho. Porra, três tapas a troco de nada. Agora tá lá no frigobar, como se nada tivesse acontecido. Mas... ele vem na minha direção com água e paracetamol. — Isso aí não faz efeito pra mim. Tem que ser dipirona.
— É a mesma coisa.
— Não mesmo. Paracetamol...
— Toma logo. Toma dois e para de reclamar.
Até dá raiva na hora, mas depois passa, porque eu odeio ser contrariado, o paracetamol fez afeito e a dor de cabeça passou também.
Enfim, tudo passa. A vida passa. Não dá pra perder momentos preciosos e ignorar sentimentos maravilhosos, por causas que nós provavelmente não alcançaremos. A vida é maravilhosa, mas nunca será perfeita.
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Oii pessoal♥
Senti necessidade de escrever essas linhas hoje...
Um beijão e muito carinho em todo mundo♥♥
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