03. Eu dou-te um cravo


A troca de beijos, ainda que fruto de um improviso, tinha gerado burburinho suficiente para nos converter no centro das atenções nos dias seguintes. Quando falámos sobre o assunto no regresso a casa dele, bem no fim da noite, Benji reconheceu que tinha sido uma boa jogada e acabámos a concordar não repetir o feito, exceto em casos de extrema necessidade. De qualquer forma, a empresa inteira tinha engolido a nossa relação. Poderia não ser o suficiente para nos ilibar de espionagem, mas agora que o disfarce era conhecimento geral na farmacêutica, as nossas ações já não levantavam tantas suspeitas.

Porém, a gala teve uma consequência inesperada: a notícia do meu namoro com Benjamin espalhou-se como fogo florestal pela minha família. Denise, a minha irmã mais nova, encontrou uma fotografia que imortalizava o beijo que Benji depositou no meu pescoço, ainda comigo nos seus braços, em frente ao séquito da Miriam. Depois disso, bastou uma mensagem para o chat de família para que todos me pedissem para trazer o meu namorado para o almoço no domingo seguinte.

— Então, Benjamin, o que é que fez com que a Mara passasse de colega de trabalho para namorada? — perguntou a minha tia.

Estávamos no jardim. Eu tinha acabado de trazer a cachupa para a mesa. Gil Semedo marcava o compasso do funaná nas colunas da minha prima a partir da janela da sala. A família, esfomeada, servia-se sem cerimónia.

Eu olhei para o Benji, curiosa com a sua resposta. Se eu me atrevesse a intervir naquela situação para o ajudar, nunca mais ouviríamos o fim daquilo.

— O sorriso radiante e as fitas coloridas que ela usa no cabelo, por cima dos cachos presos num rabo-de-cavalo.

Ele olhou-me nos olhos. Quando construímos a mentira para momentos assim, aquela linha não fazia parte do guião.

— Foi isso que me fez reparar nela quando entrámos na empresa. — Ele sorriu para o resto da mesa, como um encantador de parentes. — Depois disso, meteram-nos no mesmo laboratório, a trabalhar no mesmo projeto. Pareceu-me obra do destino.

A minha irmã assobiou.

El sta kaidinhu*!

— Denise!

Acabou tudo a rir. Durante a refeição, perguntaram-lhe sobre os seus gostos e sobre a sua família. Ele explicou que vivia ainda com os pais para ajudar a cuidar da mãe dependente, que eu tinha visto pela primeira vez na janela do prédio na noite da gala. Disse ser filho único e ter poucos primos. Referiu só saber cozinhar para sobreviver, mas que gostaria de aprender a fazê-lo para mimar os que mais ama. Falou da escalada quando lhe perguntaram pelo culpado da musculatura e da mota quando comentaram a sua aparência ao chegar.

À sobremesa, aumentaram o volume da música. Tocava Julinho KSD. Como era proibido não dançar num almoço de família naquela casa, levantei-me para seguir os bailarinos natos. Porém, impediram-me de me afastar.

— Fico feliz que tenhas encontrado alguém. Es omi i limpu korson* — disse-me a minha mãe, com certo orgulho na voz.

Olhei para o Benji, a abanar-se ao ritmo das instruções de Eva, a minha outra irmã.

— É, sim.

Com um sorriso, ela empurrou-me para a pista de dança improvisada no quintal. Quando me teve ao seu alcance, Benji puxou-me contra si, encostando a sua testa na minha.

— Estou aprovado pelo conselho familiar? — perguntou, o tom de voz exclusivo para os meus ouvidos.

Sorri-lhe, fazendo-o girar pela pista comigo.

— Espanta-me como é que ainda não nos marcaram o casamento.

Demos nova pirueta, rindo a bandeiras despregadas. A minha família mantinha-nos debaixo de olho, talvez intrigados pela reação, talvez apenas felizes por me verem com alguém pela primeira vez na vida. Éramos só amigos, mas o que eles não sabiam, não os chateava.

— Obrigada por me ajudares com isto, Benji.

Ele beijou-me a testa.

— De nada, Mara. Obrigado eu também.

Dançámos a tarde toda. Os meus primos convenceram o Benji a jantar connosco para ver o futebol antes de todos nos despedirmos dele no portão do quintal, fazendo-o jurar que voltaria em breve.

Com um piscar de olho na minha direção, ele prometeu e partiu.

Os benefícios do engodo que oferecemos aos meus pais começaram a manifestar-se pouco depois na minha vida: convidavam o Benji para tudo, mas já não me falavam em conhecidos jeitosos solteiros nem da solidão do meu apartamento — que eu arrendei de propósito para fugir de todo aquele circo — ou dos casamentos de outras mulheres que conheciam na minha idade, como forma indireta de me perguntar pelo meu. Tinha ganho todo um outro nível de tranquilidade e isso agradava-me.

Benji, ouvindo-me falar do assunto, pediu-me que estendêssemos a farsa para as nossas vidas privadas também. Eu aceitei. A apresentação aos amigos dele foi a minha estreia como sua namorada fora da farmacêutica, mas não tardou a que me apresentasse aos seus pais também. A Dona Ana e o Senhor Raúl eram um casal encantador, que me acolheu como sua nora desde o momento em que coloquei o primeiro pé na sua casa. Era mais que evidente onde é que o Benji tinha ido buscar o carácter e os bons modos.

Assim, por todas as vantagens que estar numa falsa relação amorosa com um grande amigo trazia, a nossa conexão manteve-se, mesmo depois da Miriam ter sido detida por espionagem. A princípio, começou por ser para agradar às nossas famílias, que já nos viam solteiros "há demasiado tempo". Estávamos na idade de começar a assentar e criar raízes e era mais tranquilo para a nossa sanidade que achassem que o estávamos a fazer do que o contrário. Depois, a questão da separação foi ficando suspensa, como uma última fatia de bolo que ninguém queria ser egoísta demais para tirar do prato. Era inegável que aquela relação, por mais inusual que fosse, nos fazia bem. Mantê-la era quase tão natural como respirar.

Mas ela evoluiu por si própria. Numa noite de cinema no meu pequeno apartamento, os dois estendidos em pontas opostas do sofá, ouvi a sua voz casual a perguntar-me se queria sair com ele.

— Um encontro a sério, Mara. Quero estar numa relação contigo, começar a namorar e ver onde isto acaba.

Fui apanhada de surpresa. Não era um convite para mais um encontro encenado, tampouco um encontro amigável para nos conhecermos melhor. Ele estava a propor algo com intenções românticas e depois de aceitar a sua proposta, ainda meio atordoada, passei a manhã do dia seguinte em chamada com as minhas melhores amigas, toda eu pânico. Não sabia como o encarar depois de decidirmos tentar.

Ele sabia-se apaixonado. Eu não tinha a certeza. Respondia ao seu flirt de forma automática, ria das suas piadas, tentava retribuir os elogios que recebia com outros do mesmo tom. Trocava mensagens até altas horas da madrugada, fossem de trabalho ou doces nadas, antes de o ver no laboratório no dia seguinte. Concordava em sair e jantar como se fosse uma segunda natureza, ainda que noutros tempos tivesse preferido vegetar no sofá. Mas aquela era a primeira relação que tinha na vida, tanto fantasiosa como real. Nunca antes tinha sentido algum tipo de atração por alguém e não sabia dizer se era isso que me invadia quando estava com ele, além da diversão dos nossos momentos juntos e do nervoso miudinho quando ele chegava perto. Era tudo novidade para mim e deixei que o Benji, aparentemente mais experiente, me guiasse. Mesmo que aquele sentimento não fosse paixão, talvez chegasse a sê-lo, se passasse pela metamorfose certa.

Saímos uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Parecíamos dois meninos de coro, de tão religiosamente decentes que éramos quando juntos. As mãos entrelaçadas a maior parte do tempo, alguns abraços, um único beijo no calor de um momento por ele iniciado e nada mais. Eu não me sentia compelida a avançar, a demonstrar que queria — porque não sabia o que queria — e o Benji respeitava os meus tempos.

E depois, quando dei por mim, estava cansada e a sufocar. As mensagens e os pedidos para sair do Benji eram demasiado insistentes. Ele parecia-me demasiado meloso, demasiado carente. Eu dava por mim a evitá-lo, tanto na empresa como fora dela. A dar-lhe desculpas para não estar com ele, mesmo quando não tinha nada para fazer. Já não me apetecia andar de mota, ver o mar ou almoçar fora. Já não me apetecia sair para dançar, ir ao parque ou ao cinema. Já não me apetecia convidá-lo para o meu apartamento — só esse pensamento iniciava uma cadeia de reações que acabava comigo à beira de um ataque de pânico.

A novidade e o interesse tinham desaparecido, deixando para trás algo desagradável.

E quando percebi o que era, já não havia volta a dar. 

[1432 palavras]

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