9 - Porta-Malas
Patrícia asseverou a Carlos que precisava ver a cena do crime com seus próprios olhos, certificando-se da morte de Ema. Utilizando-se da ideia de esconder o corpo no porta-malas, decidiu chegar ao chalé da mesma maneira. Ao se aproximarem da pousada, Carlos estacionou o automóvel em um local de pouco movimento e ela escondeu-se na mala.
— Você saiu sozinho, tem que voltar do mesmo jeito.
Já na garagem individual do chalé, que era bem reservada e tinha comunicação com o interior, saiu do esconderijo e Carlos, trêmulo, enfiou a chave na fechadura. Virou-a, abrindo a porta lentamente. Ema estava no mesmo lugar, caída junto à cama, vestida com um agasalho de moletom fino.
Patrícia a examinou. A marca do tapa era muito evidente e um edema formara-se no lugar onde ela bateu a cabeça. Considerou estranha outra marca, roxa, em volta dos lábios, mas imaginou que fosse devido ao frio: o corpo de Ema já estava gelado, o moletom que vestia era de malha fina e o quarto estava com o aquecimento mínimo. Sequer passou-lhe pela cabeça a efetiva razão daquela outra mancha. Tentou verificar a pulsação, sem sucesso:
— Nenhum sinal aparente de pulso!
— Está morta, não disse? Nem se mexeu. Do jeito que a deixei, está.
Patrícia incorporou definitivamente um personagem de seus escritos:
— Tendo em vista as duas doses de uísque, não sei até que ponto meu julgamento não será prejudicado. Mas vamos fazer o quem tem de ser feito. Me ajuda a colocá-la na cama.
Havia um celular, praticamente debaixo da cama, próximo da mão de Ema. Patrícia o pegou, tencionando verificar chamadas realizadas. Carlos perguntou:
— Por que está examinando o celular?
— Para saber se ela realizou alguma chamada, após você sair daqui.
Ele não acreditou na possibilidade, enfatizando:
— Mas ela morreu! Como podia ter ligado?
Patrícia esclareceu:
— Podia ainda não ter morrido e ter conseguido ligar, vai saber... Mas... Está descarregado. E não vamos ter tempo de olhar isso agora, fica para outra hora — concluiu, guardando o celular na bolsa de Ema.
Carlos preocupou-se com o celular:
— E como esse celular foi parar aí?
— Devia estar em cima do criado e caiu no chão, quando ela bateu a cabeça. Foi mera coincidência ficar perto da mão dela.
Patrícia julgou que precisavam colocar nela uma roupa mais quente. A ideia a seguir seria que ela tivesse sido morta longe dali, após um assalto, numa rua qualquer. Vestiram nela um agasalho mais pesado, mas, para sorte de Carlos, Patrícia não retirou a calça de moletom, o que revelaria ainda mais as marcas da violência sexual. Por ser de malha fina, resolveu apenas colocar outra calça por cima, sem retirar a que Ema já vestia.
— Ema não ia sair só com esse moletom fino, certo? Está pronto!
"Ema, é muito triste. Perdoe-me", pensou Patrícia.
Havia um constrangimento imanente entre os dois. Cegamente, porém, seguiam juntos por aquela rota criminosa.
"Ema, o que fui fazer?", pensou Carlos.
Arrependia-se de tê-la estuprado. Julgara, no entanto, prudente esconder isso da amante. Em que pesasse o fato dela ter aceitado participar de tudo aquilo — o que já era muito, imaginá-la aceitando todos os detalhes mais sórdidos do crime, já seria demais.
Toda a trajetória amorosa deles, até então, jamais estivera dentro das normas estipuladas pela sociedade, no entanto, o problema agora começava a ser a lei, a lei penal, não mais a civil. A certeza de que cada vez mais se complicavam perante a lei, não os impedia, mesmo assim, de prosseguir, pois um quê de cumplicidade os unira de tal forma em um pacto silencioso e cruel, que a preocupação com as leis humanas e as inerentes questões morais estavam sendo ignoradas peremptoriamente, principalmente por Carlos Eduardo.
Colocaram a bióloga no bagageiro do veículo. Somente nesse instante, ele se deu conta de mais uma dificuldade:
— Ei, Patrícia, como você vai sair, sem ser vista, se Ema está no porta-malas? Pior! Ema tem que deixar o hotel. Foi ela quem se hospedou, não você. Ema precisa sair — e tem que sair viva!
— Verdade. Mas já pensei nisso!
Patrícia agilmente procurou um chapéu nas coisas da morta. Buscou também um par de óculos escuros. Eram itens obrigatórios numa cidade onde os raios ultravioleta eram tão letais, por causa dos problemas existentes nos polos do planeta (devido às falhas na camada de ozônio).
— Achei! — disse.
Amarrou os cabelos, colocou um lenço para esconder a vasta cabeleira negra e ajustou o chapéu. Ajeitou os óculos escuros:
— Outro clichê: uma mulher à distância, de lenço, óculos escuros e chapéu, é somente uma mulher, são todas iguais. Eu não vou descer do carro. Você desce e acerta tudo. A película escura do vidro vai ajudar a me ocultar. Seja rápido!
Arrumaram as malas — as de Ema e as de Carlos, e as colocaram no banco de trás, uma vez que o porta-malas encontrava-se criminosamente ocupado. Verificaram tudo, estava tudo em ordem, sem pistas. Saíram. Na portaria, Carlos parou, desceu e acertou a conta. Voltou rapidamente e partiram.
— Perguntaram se você gostou da estadia. Eu disse que sim, mas que decidimos passar uma noite no Magallanes, até a viagem de amanhã cedo.
— Ótimo! Viu como estão todos atentos? Não podemos bobear.
No caminho um leve trânsito os fez ficar apreensivos. Pior, uma blitz policial, fora dos limites da área urbana.
— Patrícia... E se resolverem nos parar e verificar a mala do carro?
— Olha, não devia dizer isso, diante de tantas barbaridades que estamos fazendo, mas comece a rezar. Desconfio, porém, que Deus não vai querer nos ouvir.
Carlos estremeceu ainda mais, quando viu um dos policiais utilizando um bafômetro, num dos motoristas. Ambos, Patrícia e ele, estavam alcoolizados.
Um a um, os carros foram passando, fila indiana. Alguns eram parados e vistoriados, outros, eram orientados a seguir. Outros, conduzidos ao bafômetro.
— Carlos, a película dos vidros! Abra os vidros, rápido! Vamos mostrar as caras, senão vão querer nos parar para ver quem está dentro.
Quase em cima da revista, ele conseguiu fazer o que ela pediu, pois se atrapalhara para encontrar os botões dos vidros elétricos. Passando ao lado do policial, o mesmo fez menção de pará-los.
— Ferrou!
Contudo, com os vidros abaixados, o policial conseguiu observar melhor os passageiros e, não desconfiando de nada, ordenou que seguissem. Patrícia sentiu um alívio:
— Ufa! Foi por pouco! — disse, apontando em seguida o caminho, com o dedo indicador. — Por ali, Carlos, à direita. Rápido!
Já tinham combinado onde largar o corpo. Patrícia estivera, alguns dias antes, em um local ermo. Para lá imbicaram o carro.
Alguns minutos mais tarde, chegaram a uma sinuosa e vicinal estrada de terra, na subida de uma serra.
— Pare ali!
Ele obedeceu. Patrícia orientou-o:
— Eu vou descer do carro, vou ficar na curva ali embaixo, para ver se vem alguém. Fique de olho na outra ponta da estrada e... depois...
Ela nem tinha coragem de dizer, mas disse, só que de forma implícita:
— Faça o que tem de ser feito!
Desceu a estrada rapidamente e, do ponto em que estava, podia avistá-la bem longe. Os dias, pela proximidade do polo sul, eram bem longos naquela época do ano, durando mais de dezessete horas. De qualquer modo, ainda eram cinco da tarde, havia excelente visibilidade. Nenhum sinal de viva alma. Aquela estrada não tinha saída, apenas chegava ao topo de um morro e não havia residências. Alguns pontos da estrada, mais acima, eram até intransitáveis. Deu um positivo a Carlos, que olhando na outra direção, tendo igualmente um bom campo de visão, pode agir com confiança. Retirou Ema do compartimento de bagagem.
— Vamos, Carlos, rápido! — bradou Patrícia, gesticulando com as mãos.
Ele colocou Ema na beira do barranco:
— Adeus!
Com o pé direito empurrou-a encosta abaixo. O corpo rolou a ribanceira e acabou entrando no mato, escondendo-se natural e providencialmente.
Patrícia logo estava junto a ele, avaliando o resultado:
— Deu certo! Acabou! Vamos embora, não aguento mais isso!
Nisso, ouviram um barulho. Assustados, olharam em volta e nada viram, mas deduziram que fora algum animal na mata. No caminho de volta, ela comentou:
— Carlos, eu quis tirar o corpo dela de lá, para ganharmos tempo. Supostamente ela saiu viva daquela pousada, em sua companhia. Para todos os efeitos, ela ainda está viva e com você, mas preciso te arranjar um álibi, fazer com que pensem que eu sou ela e ainda fazer com que nos vejam juntos. Temos que pensar. E torcer para que ninguém nos tenha visto nessa desova.
— Desova? Pô, que palavra tosca pra usar.
Ela riu, ainda que um sorriso nervoso:
— Tem alguma melhor?
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Como disse Patrícia, o velho truque do porta-malas. Essa história não vai dar certo! Mas, que tal prosseguir, para saber?
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