23 - Profundezas
Os três exploradores conseguiram chegar na EACF a tempo de se abrigarem da nevasca, que começara em meio à chuva, com ventos fortes e fazendo a temperatura cair assustadoramente.
Carlos e Patrícia adentraram o quarto, trancando a porta. Enquanto ela tirava do bolso do casaco, o osso de baleia furtado na praia, enrolando-o num lenço colorido de cabeça e depositando-o cuidadosamente sobre a mesinha do quarto, ele bebia uma golada de uísque. Analisando-o, Patrícia sugeriu-lhe tomar cuidado, pois estava a meio caminho do alcoolismo. Ignorando a observação, ele retrucou:
— Patrícia, você trouxe o osso?
— Trouxe! Ernani nem viu! Ele também não viu o que você pegou, lá na estação inglesa. O que foi, afinal? É a tal 'encomenda', do tal 'colecionador'? Os "apontamentos de Peary", estou certa?
— Eu tinha que ter ido sozinho lá, sem testemunhas, mas não tive escolha. Ou era agora ou nunca, pois a tempestade chegou e talvez eu não tenha outra oportunidade. Ainda bem que ele não viu nada. Mas você está certa, sim, são as medidas de sextante!
Tomou mais um gole e depois tirou do bolso do casaco a misteriosa embalagem plástica e a colocou dentro de sua agenda, também sobre a mesa, ao lado do osso de baleia. Comentou:
— A tira de papel roubada... Não sei como alguém pode pagar tanto dinheiro numa velharia dessas...
— Têm pessoas que tem dinheiro saindo pelo ladrão. E essas coisas são verdadeiros troféus históricos para elas. Mas, então... A história do roubo...
— É verdadeira!
Ela o criticou:
— Você nem saiu de uma enrascada e já se meteu em outra...
Ele sorriu, sarcasticamente:
— Correção: nessa enrascada eu já estava metido, bem antes do problema com a Ema...
— Problema? É assim que você define o que fizemos com ela? Mas, sobre Peary... Não entendo por que deixaram esse "troféu" justamente aqui, nesse fim de mundo.
— É uma longa história, mas eu também não sei todos os detalhes. Pediram que eu pegasse o suvenir, por uma grana preta.
— Quem te contratou? E quanto vão te pagar?
— Não posso dizer agora. Quanto menos você souber, melhor.
Patrícia achou melhor deixar o assunto para depois, pois tinha coisas muito mais importantes com que se preocupar. Comentou:
— O Ernani não é biólogo, mas ficou bem desconfiado lá na praia. Preciso evitar essas conversas científicas a qualquer custo, principalmente com a Inês, essa sim, bióloga. Carlos, você não acha que está bebendo demais?
Ele tomou mais um trago e depois fechou o cantil:
— É, tô mesmo. Você tá certa! É que estou ansioso. Tá muito perigoso! Pra tua sorte, com a paralisação das atividades, Inês perdeu o foco e está mais interessada em Peary e Cook, do que em qualquer outra coisa! Se bem que isso, por outro lado, pode ser perigoso pra mim...
Patrícia pegou a embalagem plástica e olhou a tira de papel. Tencionou tirá-la do pacote, ao que Carlos admoestou:
— Não, não faça isso! É um documento muito antigo, melhor nem tocar. Deveria até estar mais bem protegido. Mas depois resolvo isso.
Pelo que Patrícia observou, parecia mesmo a tal tira de papel. Era igual à da foto do livro de Inês. Recolocou a embalagem dentro da agenda.
— Carlos, amanhã... Estava pensando em nem levantar, já fingir outra crise renal — o médico vai me entupir de remédios, fazer o quê, mas é necessário. Assim, eu fico fora do raio de ação da Inês e do Ernani, torcendo para que o helicóptero consiga levantar voo. É a minha carona. Não vejo a hora de sumir daqui.
— E se o Besnard chegar?
— Eles não vão me mandar para o navio, nessas condições. Assim, coloco o resto do nosso plano em ação. Só espero que não venha aqui algum marinheiro do Besnard, pois eles conhecem a Ema.
— Verdade. O duro vai ser eu ir para o navio e ficar lá, sem a Ema de verdade. Vou ficar perdido, com essas questões das pesquisas.
— Te vira, meu caro. Tudo pelo seu álibi.
Carlos lembrou mais uma vez do delegado:
— Temos que ter cuidado com o Basílio.
— Não se preocupe com ele. Está aqui a passeio.
Carlos fez uma pausa, em que retirou o pesado casaco. Acidentalmente, lascou a unha do polegar:
— Que droga!
— O que foi?
— Quebrei a unha. Tem um cortador, aí?
— Não... Mas espera... Tenho uma tesoura.
Procurou na bolsa e, encontrando-a, entregou a ele uma tesoura de tamanho médio. Ele riu:
— Cacete, não vou conseguir cortar, com esse monstrengo, ainda mais com uns goles na cabeça.
— Deixa eu cortar pra você... Estende sua mão... A posição tá meio ruim, vira um pouco mais... Hum... Cortei... Olha, tenha cuidado, ainda ficou uma lasquinha, mas não dá pra cortar além disso...
Patrícia colocou a tesoura sobre a mesa. Carlos voltou ao assunto do delegado:
— Viu ele? Tá caidinho pela Inês.
— Será? Mas é casado.
— E daí? Eu também sou... quero dizer... fui...
Falar de Ema de forma casual e natural, como se ela ainda estivesse viva, era algo estranhamente constrangedor, afinal, o que eles tinham feito com ela não fora nada, em absoluto, normal. Esse sentimento era mais forte em Patrícia do que nele, em quem a noção da gravidade do crime perpetrado era menor. Ema estava morta e fora desumanamente jogada numa ribanceira. Essa era a verdade, nua e crua!
Patrícia ainda estava na cama e Carlos, inadvertidamente, deitou-se sobre ela. Ela sentiu o hálito de uísque:
— Essa tara do delegado pela Inês, me deu uma boa ideia, sabe?
Patrícia reprovou a tentativa:
— Nem vem! Não estou com vontade.
— Ora, vontade é só começar...
Levantou-se, tencionando despir-se. Patrícia repreendeu-o:
— Carlos, tô falando sério, não insista.
— Ah, Patrícia, meu amor...
Aproximou-se e deitou-se novamente sobre ela, apertando-a contra o colchão. Tentou beijá-la e ela virou o rosto:
— Carlos, já disse. Para com isso. Não quero!
— Como, não quer? Você sempre quer! Ontem mesmo, nos esbaldamos!
Ele insistia e fazia uma pressão anormal sobre o corpo dela, algo não habitual na relação dos dois. Patrícia tentava se soltar:
— Já falei, não quero!
Tentou sair debaixo dele, mas não conseguia. Veio-lhe à mente Ema, sendo esbofeteada, caindo e batendo a cabeça... Patrícia, até então, parecia que estivera anestesiada pela adrenalina, mas começava a despertar dolorosamente para a realidade. Ainda não se sentira tão culpada por tudo o que fora capaz de fazer, quanto agora.
Carlos continuava insistindo, tentando retirar a roupa dela, mas era bem difícil, eram roupas de frio. Ela começou a se sentir mal. Em sua mente, veio à tona a cena de quando era menina... O padrasto sobre ela... Ela, impotente, nada podendo fazer... E aquele monstro, abusando dela... Usando de energia, nas forças que lhe restavam, consumidas que eram pelos traumas do passado, advertiu-o, com veemência:
— Carlos! Para! Já falei, não quero!
A força da voz dela o fez recuar. Mas ela tinha a sensação de que, se estivessem em outro lugar, em uma cabana isolada na mata, por exemplo, ele teria ido em frente. Carlos soltou-a e levantou-se. Sem dizer uma única palavra, saiu. Parecia ter percebido a besteira que ia fazendo, besteira, aliás, já feita com a Ema, mas nem imaginava o peso de seu ato, sobre o psicológico de Patrícia. Não podia imaginar que havia desenterrado traumas muito bem escondidos nas profundezas da mente dela... Sensações de desespero, de medo e revolta. Tudo aquilo de volta, a fez chorar.
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Não tem outra palavra pra definir esse sujeito: canalha! Concorda? Acho que o cerco está se apertando, mas, se lembrarmos bem, o morto, mencionado lá no início, era alguém da Marinha, lembram-se? Mas, quem?
*Registe seu voto e comentário. Grato.
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