20 - Fase Heroica

Próximo das 17h30, Carlos Eduardo perguntou se podia sair para conhecer a área externa da estação, querendo, no entanto, que Ernani o acompanhasse como guia. Mas esse não queria, pois a nevasca se aproximava e já se ouvia o vento batendo contra as paredes metálicas dos módulos.

— Vamos, Ernani. Você é o único corajoso por aqui! — brincou Carlos.

— Não vou de jeito nenhum! — declarou exaltado,fazendo um trejeito com a mão, ao mesmo tempo em que lançava um olhar enviesadoao biólogo. Desde que haviam sido apresentados, notei que houvera, da parte deErnani, uma antipatia aparentemente gratuita em relação a Carlos Eduardo. Parapiorar, Carlos ainda fez uma brincadeira que pareceu a todos preconceituosa:

— Quanto mais 'homens' pra proteger Ema, melhor...

E riu. Ernani ficou com os olhos vermelhos de raiva, mas preferiu retribuir com um sorriso amarelo. Ema, percebendo o possível entrevero, desviou o foco:

— Não ligue para as bobagens que o Carlos fala. Vamos, vai? — encorajou-o. — Vou embora para o navio sem conhecer nada? Íamos ficar aqui o verão todo, mas agora temos de ir para o navio muito antes do programado, talvez amanhã mesmo.

Ernani estava relutante e soltou, numa frase típica dos cariocas:

— Ema, tá tirando onda com a minha cara? O médico não orientou repouso?

— Não se preocupe, estou bem agora.

Ele suspirou, cedendo aos encantos da maravilhosa Ema. Ou talvez aos de Carlos, quem sabe:

— Está bem! Mas não podemos ficar mais do que meia hora lá fora. A nevasca já está chegando!

Enquanto saíam, notei que, vistos de costas, Carlos Eduardo e o almirante eram muito parecidos. Mesmo porte físico, ombros largos, costas ligeiramente curvas, o corte de cabelo semelhante... Mal sabia o quanto seria importante essa observação, feita quase que instintivamente. Comentei com Inês e ela concordou.

Փ

Após a saída dos três, ficamos na sala, sentados em sofás muito confortáveis, eu, Inês e o almirante. Porém, o almirante também acabou por se retirar, para obter mais informações das condições meteorológicas, que se agravavam a cada instante.

Como não houvesse o que fazer, Inês pegou seu livro e folheou-o. Observei-a melhor. Meia idade, estatura mediana, muito simpática. Usava os cabelos crespos com bastante volume e balanço e a melhor definição que eu encontrava para definir sua beleza, era: de tirar o fôlego! Olhos perscrutadores, que nos sondavam a todo instante, às vezes se fixando por vários segundos em nosso rosto, como a buscar todos os detalhes de nossa alma. Não era, portanto, do tipo que baixasse a cabeça quando numa interlocução.

Enquanto esperávamos novas notícias sobre a tempestade, ela brindou-me com algumas histórias do desbravamento do continente, no chamado "Período ou Fase Heroica":

— Delegado, não sei se sabe... Grandes homens pisaram essas terras no final do século XIX, início do XX. Foram grandes desbravadores, mas eu diria, verdadeiros loucos! Se a conquista do polo norte parou nos tribunais, a do sul notabilizou-se por uma épica corrida entre duas expedições rivais: a do norueguês Roald Amundsen, no comando do navio Fram, contra a do inglês Robert Falcon Scott, navegando o Terra Nova...

"Roald Amundsen já havia invernado na Antártida, quando da expedição do navio Bélgica. Ficou treze meses preso no gelo, num inferno gelado e escuro, sendo que a "noite antártica" durou praticamente dois meses!

Ela riu das próprias palavras:

— Paradoxal! Inferno, gelado e escuro!

Aqueles assuntos não eram nada agradáveis, levando-se em conta a tempestade que se achegava, sem pedir licença. Mas a voz de Inês era tão apaixonante, que não havia como não ouvir. Espantei-me:

— Treze meses? Meu Deus!

— Sim! E dois meses sem sol! Imagina o horror! Mas prefiro lembrar do momento em que o sol voltou. Na descrição de Cook — aquele mesmo, o do polo norte...

Pegou o livro:

—"O céu tomou a cor do limão, descortinando os icebergs, depois mudando para o dourado, o laranja e finalmente o azul"...

Comecei a interessar-me pelo assunto:

— E a expedição do Bélgica... Alcançou o polo?

— Não! Desistiram! Em geral, o fracasso sempre vinha pelos mesmos motivos: falta de comida, falta de animais, erros de estratégia e cansaço.O próprio Robert Falcon Scott, também teve sua tentativa anterior frustrada, a partir do marde Ross, impedido de prosseguir por enormes cordilheiras geladas.

— E a tal corrida, entre as expedições?

— Ah, sim! Amundsen e Scott deixaram a Europa em 1910, chegando à Antártida no início de 1911. Estabeleceram-se na baía do mar de Ross, distantes um do outro cerca de 600 km. Nos primeiros meses, planejaram suas jornadas e organizaram os depósitos de alimento, até a primavera chegar. Quando Amundsen partiu, o fez com uma equipe reduzida. Foi uma jornada de 56 dias, até a tão sonhada conquista! E, no total por terra, uma viagem de 99 dias, ao longo de 2.600 km.

— E Scott?

— Esse se deu mal! Se Amundsen fez um grande planejamento, Scott errou feio, a começar pela escolha do caminho marítimo, onde o Terra Nova quase afundou. Depois, escolheu por terra um caminho que levou 22 dias a mais que Amundsen. Ambos tinham experiência, mas Amundsen fez escolhas melhores. Scott, as piores.

"Scott e equipe já tinham gasto energia, enfrentando os mares, chegando exauridos ao continente, o que não aconteceu com Amundsen, mas o maior erro de Scott foi por terra: saiu com toda a carga que podia e com todos os homens... Esses homens iam montando as tendas, retornando ao navio, para que Scott as utilizasse na sua volta do polo. Isso foi, mais uma vez, muito desgastante, partir com tanto peso, tantos animais e tantos homens. Além disso, partiram todos "no escuro", sem conhecimento prévio do caminho que teriam de percorrer.

"Já Amundsen, fez diferente, enviou na frente os homens. Eles iam montando as tendas, enquanto o norueguês aguardava, descansando no navio. Quando finalmente partiu, Amundsen o fez com pouco peso, poucos homens e poucos animais, pois tudo já estava devidamente alojado, nas várias tendas dispostas ao longo caminho, que ele utilizou, não somente na volta, mas principalmente na ida. Além disso, ele escolheu uma topografia melhor. E, aqueles que voltavam, davam aos outros as informações, daquilo que poderiam esperar à frente. Quem saía, já tinha conhecimento prévio do terreno.

Inês lamentou:

— Scott não merecia, coitado! Chegar ao polo e lá encontrar a bandeira da Noruega, tremulando... E duas cartas de Amundsen para ele... Uma grande decepção!

— Duas cartas?

— Sim! Uma delas, na verdade, um bilhete, que dizia: "Entregue a carta anexa ao rei da Noruega, caso eu morra na volta".

Não me contive:

— Filho da puta!

Folheando posteriormente o livro, descobri as seguintes palavras, transcritas do diário do norueguês: "Em nome do rei Haakon VII, tomo posse do planalto polar. Assim se rasga para sempre o véu! Um dos maiores segredos da Terra deixa de existir".

Já Scott escrevera o seguinte, em seu diário: "Ó Deus, que lugar horrível. É muito desalentador ter sofrido tanto para chegar e não ser recompensado pela glória da prioridade".

Eu estava ansioso pelo fim da história:

— E então, Inês, o que aconteceu com o Scott?

— Morreu, no caminho de volta!

— Não acredito!

No diário, Scott ainda escreveria: "O fim está próximo, pela Graça de Deus; tomem conta de nossas famílias". Oito meses depois, seu corpo foi encontrado. Ele tinha os olhos abertos e a mão esquerda estendida; sob sua cabeça, os diários. Seu corpo foi deixado ali mesmo, sobre monturos de pedra servindo de túmulo.

— E o safado do Amundsen?

Inês riu:

— Sobreviveu, para contar a história e, após o feito, ainda sobrevoaria o polo norte, num dirigível, em 1926. Era destemido. Mas morreu, dois anos depois, no próprio polo norte. Seu corpo nunca foi encontrado!

— Bem feito!

Inês arregalou os olhos:

—Uai, delegado, que é isso?

— O miserável mereceu.

Gargalhamos juntos. Fiquei impressionado, com aquelas histórias — e com uma baita raiva do tal Amundsen! Que sacanagem, a história do bilhete!

Enquanto eu ouvia as incríveis histórias contadas por Inês, que tinha uma doce e melodiosa voz, Ema, Carlos e Ernani se encontravam do lado externo da EACF. Ouvir Inês falar sobre os navegadores do passado tinha sido, sem dúvida, uma escolha muito melhor do que ir lá fora enfrentar o frio.

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Eu só me pergunto se essas histórias todas, da conquista do polo sul, terão alguma coisa a ver com o crime? Será? Bora, prosseguir?

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