19 - Robert Peary
Como mencionei antes, estava previsto partirmos da EACF somente na manhã seguinte, mas com a crescente piora nas condições do tempo, isso já se mostrava cada vez mais difícil. De qualquer modo, o pernoite na estação, com ou sem nevasca, já era algo programado. Era necessário, portanto, ter paciência e esperar.
Após o almoço, onde fui o convidado de honra, retirei-me para um cochilo, que perdurou por umas duas horas e meia. Creio que o almirante, inadvertidamente, fez o mesmo. Mais tarde, lá pelas 16h45, formamos uma pequena roda na sala de estar, numa conversa bem descontraída.
A Dra. Ema passara mal, logo depois do almoço. Tivera uma indisposição, com dores moderadas, provavelmente de origem renal. Entre duas e cinco da tarde ficara internada na enfermaria, recebendo medicações por via endovenosa e agora já se encontrava melhor, conversando conosco na sala. Recebera alta, mas com ordens de fazer alimentações leves e permanecer em repouso.
Admirei-me com o interesse dela por histórias policiais. Praticamente direcionou a conversa para o tema, dizendo-se uma admiradora do assunto. Já ouvira falar de mim e dos casos Timóteo Arautra e Felipe Torres — este último, genro do poderoso Nilo Romano, banqueiro do jogo de bicho em São Paulo, um dos casos mais famosos que eu investigara, até mais famoso do que aquele que me projetara no cenário nacional, o da Gouveia & Carvalho.
Como o foco da conversa houvesse se encaminhado para o campo policial, Inês, que viria a se mostrar uma sumidade em vários assuntos, nos brindou com a história de Peary e Cook.
— Um caso policial, antes de tudo! — iniciou. — Robert Peary, engenheiro da Marinha americana, afirmou que fincou a bandeira dos Estados Unidos no "topo do mundo" — o polo norte geográfico, em abril de 1909. Além disso, ao descobrir uma fenda, atirou uma sonda para medir a profundidade, que chegou a quase três mil metros, dando indícios de que o Ártico era somente o mar congelado, hoje já comprovado por submarinos que passaram debaixo dele.
O almirante deu seu pitaco:
— Exato, o Ártico não é um continente, é apenas uma calota de gelo, diferentemente da Antártida, que é um continente coberto por gelo.
Inês deu prosseguimento à aula, falando como se estivesse em um seminário:
— Algum tempo depois, o doutor Frederick Cook, para espanto de todos, passou a sustentar que fora ele, na verdade, na companhia de dois esquimós, quem conquistara o polo — e isso um ano antes de Peary, gerando uma grande polêmica na imprensa mundial. Quem estaria falando a verdade?
"Um comitê dinamarquês foi formado pela National Geographic. Examinaram as provas. As de Cook acabaram por ser consideradas insuficientes. Assim, Peary foi finalmente declarado como o legítimo conquistador do polo norte!
Perguntei:
— E o tal Cook, não foi punido?
— Não, delegado, mas anos depois acabou sendo preso por desvio de correspondência. E morreu na prisão!
— Como diria minha mãe, "Não era flor que se cheire", então!
— Não mesmo! — concordou ela. — Mas Peary, por sua vez, talvez não tenha sido totalmente honesto também...
— Ah, não? E por quê?
— Explico. O astrônomo Dennis Rawlins, em 1988, ao estudar as anotações de Peary, concluiu que as medidas de sextante dele indicavam, na verdade, um ponto a 180 quilômetros do polo. Rawlins afirmou que Peary sabia disto, mas que preferiu sustentar a mentira mesmo assim!
Ema entrou na conversa:
— E por que demoraram tanto para descobrir?
Inês esclareceu:
— É que Peary morreu em 1920 e todos os seus apontamentos foram depositados nos arquivos nacionais norte-americanos, vindo a público somente em 1984. Enfim, quem estará com a verdade? Cook ou Peary. Que tal esse desafio, delegado?
— Querida Inês, mantenha-me distantes desses casos gelados! Mas, segundo seu relato, parece haver evidências de que nenhum destes dois miseráveis chegou ao polo norte, efetivamente. Como não vi o local do crime — e nem quero, caso encerrado!
Apesar das risadas, Carlos Eduardo perguntou a Inês se ela já tinha visto as anotações de Peary. Ela respondeu, afirmativamente:
— Vi sim! Está num livro que estou lendo. Querem ver?
Ao menos, o mistério de Inês eu descobriria: o livro "Antártida, a Última Terra", de Ulisses Capozzoli, era sua fonte de informações. Inês pegou o livro na bolsa e nos mostrou a foto dos famosos apontamentos de Robert Peary.
— Aqui estão!
Enquanto o livro passava de mão em mão, ela comentou:
— Delegado, sabia que esse assunto está novamente nas manchetes? Parece que os apontamentos foram roubados recentemente. Dizem que foi um colecionador que fez a encomenda e ele seria chileno. Esse colecionador já teria em seu poder vários suvenires históricos, relativos às conquistas polares. Por exemplo, o diário de Robert Falcon Scott. Agora, os apontamentos de Peary.
O almirante parecia conhecer o assunto, mas desdenhou:
— Eu já ouvi falar, mas isso tudo é boato! São notícias mentirosas, inventadas na internet, tudo pra se ganhar público.
Carlos Eduardo, que ainda olhava a foto dos apontamentos, lançou um olhar a Ema, colocando dissimuladamente o dedo indicador sobre os lábios, como se dissesse "bico calado" (gesto que eu só viria a compreender tempos depois). Foi quando Ernani entrou abruptamente na sala, assustado:
— Más notícias! Agora é definitivo. Uma tempestade se aproxima da EACF. Em Presidente Frei já neva forte há algumas horas. Os aviões Hércules e nosso helicóptero não poderão levantar voo, até nova ordem.
— Isto significa...
— Significa, delegado, que talvez fiquemos aqui bem mais tempo do que o governo deseja. Que Deus nos proteja!
Gelei! E aquele aspecto místico com o qual Ernani revestia os fatos, mesmo sendo um cientista, tinha o poder de nos assustar ainda mais. Franzino, as maçãs do rosto proeminentes, os olhos ligeiramente saltados, o nariz adunco, ele próprio parecia saído de uma história de terror. Não me contive e perguntei:
— Corremos algum risco?
Ernani respirou fundo:
— Todos, delegado! Por vezes, mesmo no verão, a estação pode ficar coberta de neve.
— O quê? Não brinca!
— Verdade! Além disso, quem conseguirá prever o que poderá nos acontecer diante de uma tempestade de neve na Antártida? Nem eu, que sou meteorologista. Aqui nessa região, agem forças estranhas. Há algo de sobrenatural nesse lugar!
Estava assustado. O almirante não se conteve:
— Basílio, como pode um homem como tu, acostumado a lidar com criminosos, assustado desse jeito?
— Lidava com criminosos, não com as forças naturais!
Ernani parecia mesmo falar sério:
— Delegado, na Antártida acontecem coisas que transcendem a compreensão humana!
Inês soltou uma gostosa gargalhada:
— Pare com isso, Ernani! Está assustando o nosso bom policial. Não há perigo algum! Fique tranquilo, Basílio. Estamos bem protegidos, temos conforto, temperatura ambiente, comida, meios de comunicação, podemos até assistir a um filme, mais tarde, na sala de vídeo. Que tal? Têm uns bons DVDs no acervo da estação. Vamos manter a calma, estamos no verão, o próprio Ernani sabe, logo essa tempestade passa.
— Inês, não arrisco palpites! — rebateu Ernani. — Trabalho com probabilidades, mas para além disso, acredito piamente nesses fantasmas antárticos!
Inês ironizou-o mais uma vez:
— Ernani, não posso crer, você só pode estar brincando! Não é possível que seja tão medroso assim. E tem outra: na Antártida tudo tem mesmo a chance dobrada de dar errado, é um ambiente dos mais inóspitos. É da natureza do lugar. Por isso que parece haver forças agindo contra!
O medo de Ernani era irracional. Todavia, as palavras de Inês foram as que em verdade me deixaram mais assustado, porque, contrárias às dele, refletiam a mais pura racionalidade.
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Será que essa história toda, lá do polo norte, terá a ver com nossa aventura do polo sul? Sigamos, para descobrir...
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