14 - Convite Gelado
À minha frente, o responsável por me jogar nos braços da Antártida, a gélida e fria Antártida (enquanto que aquele rapaz encontrava-se nos braços de um vulcão aceso). Ainda estávamos acomodados nas confortáveis poltronas do piano-bar, perto da lareira. Voltei-me para o contra-almirante H. Nunes ou, simplesmente, almirante e perguntei se ele também estava de férias.
— Quem me dera! — respondeu. — Estou em missão para o governo federal. Sou secretário da Secirm, a secretaria de Recursos do Mar. Conhece o Proantar?
— Não.
— Proantar: o Programa Antártico Brasileiro. Seu desconhecimento do assunto é a prova de como os temas antárticos no Brasil são praticamente ignorados. A mídia pouco se interessa.
— Isso é fato! Então está indo para o continente gelado...
— Sim, amanhã! Embarco logo cedo, rumo à Estação Antártica Comandante Ferraz. Mas só fico um dia e uma noite por lá.
— A estação brasileira? Um conhecido meu, o Jairo, falou do assunto. Ele é professor de Geografia.
— Um professor haveria de conhecer. Sim, é a nossa estação.
O almirante então me explicou haver uma disputa, muito comum na área científica, entre a "pesquisa básica" e a "pesquisa aplicada". Buscava concentrar-me no assunto, muito embora aquele casal tão perto de nós distraísse sempre minha atenção. Estariam em lua de mel?
— Investigar o continente sem a obrigação de desenvolver novas tecnologias... Ou reverter em tecnologia qualquer estudo empreendido: eis a questão.
Enquanto ouvia as enfadonhas explicações, o casal, para minha tristeza, retirou-se do piano-bar. Com certeza, iriam finalizar no quarto o que haviam começado ali.
— O ministro da Ciência e Tecnologia é um dos que defendem a pesquisa aplicada — comentara o almirante, enquanto eu desviava meus pensamentos para outro dos prazeres mundanos: tomar uma boa taça de vinho. — Ele acha que só isso vai garantir verbas da iniciativa privada ao Proantar.
— Ele quem, desculpe-me?
— O ministro, Basílio!
— Ah, sim! Pelo que entendi, nem o governo federal, nem a iniciativa privada, estão querendo botar a mão no bolso sem contrapartidas financeiras. Não querem o estudo pelo estudo. Querem investir, mas ter garantias de lucro nesse investimento.
— Compreendeste bem. Isso mesmo! Pensei que nem estava prestando atenção...
— Na minha profissão aprendi a ter um olho no peixe e outro no gato. Mas também estava difícil me concentrar, com aqueles dois... Puxa!
Ele concordou, com um assovio. Sugeri tomarmos uma taça de vinho. O almirante não apenas acatou a ideia, como ainda fez questão de escolher um bom vinho chileno. Saboreou sua bebida, como quem entendesse do assunto, um verdadeiro sommelier, dando-me explicações a respeito:
— O Carménère é excelente, não? Encorpado, mas tem um sabor leve e macio. E vai bem com queijo de textura mais dura.
— Concordo. Muito bom. Vamos pedir o queijo, então?
Ele não se fez de rogado, solicitando ao garçom o acompanhamento. Mas continuou, com seus assuntos monótonos:
— Tu não sabe, mas noventa por cento dos gastos dessa estação são com o apoio logístico das Forças Armadas.
— Tudo isso?
— Pois é! Com as pesquisas nem se gasta tanto.
E já um pouco mais à vontade, desabafou:
— Bah! Dei com os burros n'água! Confiaram-me a missão de convencer os cientistas a aceitarem a pesquisa aplicada, mas falhei. Desde então, fica essa briga entre os donos do dinheiro e seus destinatários. Os guris da pesquisa são duros na queda, não querem queimar etapas e querem primeiro a pesquisa básica. Segundo eles, conhecer o ecossistema é primordial. Sem esse conhecimento, dizem, podemos causar sérios danos ao meio ambiente. Mas sejamos francos, investidores estão lá preocupados com o meio ambiente?
Coloquei o almirante contra a parede:
— E o senhor? De que lado está, afinal?
Ele hesitou um pouco:
— Estou dividido, mas sem a iniciativa privada, nada feito, não é?
Degustou mais um pouco de vinho:
— Mas, meu caro Basílio, tu gosta de futebol? Torce pra que time? Tu é um sujeito macanudo, espero que não seja gremista... Mas é paulistano... Palmeirense?
A pergunta fora uma proposta nítida de sair daquele assunto entediante. Devia ter sido porque passara por nós um sujeito vestindo, por cima do agasalho, uma camisa do Barcelona. Respondi, orgulhoso, quase batendo no peito:
— Estou com a maioria, sou corintiano! Orra, meu! Palmeirense, não!
O almirante riu, ao mesmo tempo em que desdenhou:
— Bah! E quem disse que a maioria é corintiana? Certamente é flamenguista! Já eu, torço para o campeão de tudo, o colorado.
Soltei um assobio:
— Internacional de Porto Alegre? Bem que imaginei! Aí vai dar discussão boa! Aquele 'bendito' campeonato brasileiro de 2005...
— Roubalheira pura! — arrematou o almirante.
Փ
Pela manhã, levantei-me por volta de sete horas e subi para o último andar, a fim de tomar meu café. Para minha surpresa, o almirante já se encontrava tomando seu desjejum. Convidou-me para a mesma mesa que ele:
— Sua esposa e amigos não vem?
— Na verdade, Jairo e Clara não são amigos, apenas colegas de viagem. Devem estar dormindo. Minha esposa, porém, já está subindo.
Lembrei-me de um fato:
— O senhor não disse que iria para a Antártida, hoje?
Ele parecia consternado:
— Sim, irei daqui a pouco, às 8h30. A missão não é das melhores, como bem sabe, em função do que conversamos ontem... Os impasses nas pesquisas. Volto amanhã cedo, felizmente.
Nisso, seu telefone tocou. Pediu-me licença e levantou-se para atender à ligação, em local mais privado. Enquanto estava ausente, Regina chegou e preparou seu café, sentando-se junto a mim. H. Nunes retornou três minutos depois Feitas as devidas apresentações, para minha consternação ele voltou ao assunto da noite anterior:
— Era a presidente da República, acredita? O governo resolveu baixar uma medida provisória, proibindo a continuidade das pesquisas, até que se resolva o impasse entre investidores e pesquisadores. O Ary Rongel, um dos nossos navios, está fundeado no porto do Rio de Janeiro. Não zarpou! Iria trazer para cá a maioria dos pesquisadores desse verão. A revolta está geral! Hoje mesmo vários cientistas devem ir ao planalto, em agenda com a presidente. Enfim, o caos está formado.
— Não vai mais para a estação antártica, então?
— Continuo tendo que ir. Só que minhas ordens mudaram. Iria conversar com os cientistas, agora tenho de comunicá-los da paralisação e trazê-los de volta. Minha presença será necessária para a manutenção da ordem.
Logo entendi a delicada situação. Surgiu-me uma dúvida:
— Se o navio não zarpou, desculpe-me a ignorância, estes pesquisadores que já estão lá, como chegaram na estação?
— Simples! De avião. A maioria dos pesquisadores, contudo, chega à estação de navio, de onde, por vezes, nem desembarca, trabalhando na própria embarcação, pois a estação só comporta vinte e quatro pesquisadores, afora os militares. Mas alguns, por questões logísticas, vão de avião. É como irei para lá daqui a pouco.
E suas próximas palavras chancelariam de vez meu passaporte para o frio austral. Maktub:
— Aliás, não gostaria de vir comigo, Basílio?
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Bem se vê que o Basílio tá querendo curtir o passeio e o chato do almirante, com esse papinho furado... rsrsr... Mas será que ele vai aceitar o convite?
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