Capítulo XV - Alvedrio

5220 palavras

Tamar, província de Tahagul

O silêncio pelo casebre era espesso, exceto pelos grunhidos provindos de Ravish. Seu copo o respondia com um calafrio incessante, ele observava algumas vezes para o coto onde antes estava seu braço para ter certeza de que sua regeneração não o havia abandonado, ela estava um pouco mais lenta como de costume. Mas a dor era o que lhe deixava inquieto, semelhante a um veneno que parecia consumi-lo a cada segundo.

- Puta que me pariu. Era mais simples tê-la deixado me matar - Ravish balbuciou, sentindo suas forças indo embora junto as palavras.

Temendo que aquele fosse seu fim, Ravish atirou a manta para o lado e se levantou. Em meio a escuridão do casebre, ele tateou os móveis e caminhou de forma incerta pelo corredor escuro, adentrando o primeiro cômodo que viu. Ele segurou na bancada da cozinha, os nós dos dedos brancos de tensão, e começou a vasculhar freneticamente na dispensa. Pratos de barro e utensílios de ferro chocavam-se uns contra o outro, mas nada parecia útil para aliviar sua dor. Se arrependeu no mesmo instante de ter arrancado o próprio braço.

Ravish mal se importava em ser discreto, havia uma preocupação maior. O barulho apenas se intensificava naquele fim de noite.

- Mãe? - Uma voz grave e sonolenta veio da porta, Ravish virou-se subitamente, o rosto retorcido em uma careta.

A luz fraca iluminou o rosto de Andras. Ele piscava lentamente, os cabelos desgrenhados e a roupa amassada indicava que havia sido arrancado de um sono pesado.

- Não tem nenhuma mamãe aqui não - Ravish respondeu, tentando mascarar a irritação com uma falsa leveza.

As sobrancelhas de Andras se uniram em confusão, se sentindo afetado pela embriaguez. Sua mente, mesmo lenta, associou imediatamente o cenário: um intruso, sangue, caos. Ele não pensou duas vezes antes de erguer as mãos.

A gravidade ao redor de Ravish pareceu explodir, jogando-o contra a parede com força. O impacto tirou o ar de seus pulmões e ele soltou um gemido abafado enquanto era mantido no lugar por uma força invisível.

- Está procurando o quê aqui? - Mantendo uma distância calculada do desconhecido, Andras o confrontou.

- Nada. Quer dizer... estava procurando algo para minha dor desaparecer. - Ele tentou levantar o braço amputado como prova, mas sem sucesso, Andras estava contando os seus movimentos.

O feiticeiro olhou para o curativo ensanguentado com uma careta de repulsa, não queria imaginar como aquilo tinha acontecido. O sangue escorria pelas ataduras mal feitas, uma visão que o fez virar o rosto.

- Não invadi sua casa, se é isso que pensa. Foi uma moça que me deixou entrar.

Andras hesitou, questionando o motivo de Ilana tê-lo deixado entrar. Mas ao avaliar melhor - um homem pálido, claramente exausto, e com um braço a menos -, decidiu que ele não era uma ameaça. O brilho etéreo das mãos de Andras sumiu, com isso a força gravitacional diminuiu e Ravish caiu no chão com um baque surdo.

- Vai embora daqui - disse Andras sem pestanejar. Não aceitaria a presença de um desconhecido na sua casa.

- Você poderia me ajudar? - Ravish suplicou. - Fui atacado por uma daquelas criaturas sórdidas lá fora...

- Não me interessa - Andras o interrompeu. Não estava em condições de resolver outros problemas além dos seus.

Ravish se calou diante de tamanha frieza provinda do feiticeiro, mas respirou fundo, controlando a raiva. Ele precisava da ajuda desse homem, gostasse ou não.

- Ao menos me forneça algo para aliviar minhas dores. - Ravish implorou, dessa vez, sendo verdadeiro mediante a toda aquela farsa.

Andras comprimiu os lábios, seus olhos verdes avaliaram Ravish por um longo momento, pensando se deveria ajudá-lo, no final das contas, não negaria um pedido de ajuda, sua natureza não permitiria.

- Fique quieto - disse Andras antes de caminhar em direção ao fogão à lenha.

As mãos ágeis de Andras se moviam entre os potes de ervas e frascos. A luz da lamparina lançava sombras dançantes na cozinha, criando contraste entre sua figura concentrada e o caos que Ravish havia deixado para trás.

Enquanto isso, Ravish permanecia quieto, com o olhar inexpressivo, tentando ao máximo não focar em sua dor.

- Já está pronto. - Andras colocou uma tigela com um líquido arroxeado sobre a mesa.

Sem pensar duas vezes, Ravish pegou a tigela com a mão trêmula e esvaziou em segundos, sentindo o líquido amargo descer pela sua garganta.

Andras observava em silêncio, seus olhos estudando cada movimento de Ravish.

- Quem é você?

A pergunta pairou no ar, carregada de desconfiança.

Ravish endireitou-se na cadeira, encarando Andras de cima a baixo. Julgou ser o filho de Téça, a quem Mikail havia mencionado.

- Sou Ravish de Katacrista - respondeu, seus olhos encontraram os de Andras com firmeza.

Andras permanecia com uma expressão neutra, enquanto Ravish aguardava uma enxurrada de perguntas, porém foi surpreendido quando o moreno lhe deu as costas sem dizer uma palavras sequer. Ravish se sentiu confuso, mas não achou ruim, ao menos poderia descansar.

Minutos após a saída de Andras, ele retornou acompanhado de uma mulher, cujos cabelos loiros brilhavam como uma coroa sob a fina camada da luz do sol, que invadia timidamente as frestas do casebre. Por um momento achou que fosse Téça, mas se lembrava perfeitamente bem que ela possuía cabelos escuros.

- Uh! O que temos por aqui? - Uma voz feminina cortou o ar, Ravish ergueu os olhos para ver Katalin. Ela sorriu assim que o viu, demonstrando estar encantada com a imagem à sua frente. - De onde saiu essa belezinha?

Andras pigarreou, desconfortável, mas explicou a situação.

- Foi ele quem eu mencionei que precisava de ajuda.

- Ai, tadinho! O que aconteceu com você?

As perguntas uma hora ou outra iriam vir. Ravish iniciou a história que veio preparando há um bom tempo, a fim de convencê-los.

- Fui atacado por um raedras na noite anterior.

- Raedras? - Andras finalmente pareceu demonstrar alguma reação durante todo aquele tempo. - Não pode ser verdade!

O rapaz temia que as criaturas brutais que protegiam o palácio de Tahagul surgissem por lá após a abertura da redoma. Se resolvessem atacar, seria um problema a mais na vida dos moradores de Tamar.

- Juro pela minha vida - respondeu Ravish, com um falso medo em sua voz. - São criaturas inconfundíveis. Estudei sobre elas, mas não imaginava que seria atacado por uma.

- Precisamos investigar sobre isso. - Andras estava agitado, decidido a sair naquele exato momento, mas Katalin o impediu.

- Uma coisa de cada vez. Primeiro vamos ajudá-lo, depois vamos ver se os raedras estão próximas da nossa região.

- Está bem. - Andras cedeu ao pedido.

- Seu nome é Ravish, certo? - Katalin perguntou, o rapaz apenas assentiu. - Iremos procurar um curandeiro para você antes que o pior aconteça. Depois te ajudamos com o restante, querido.

Ravish apenas deu um fraco sorriso para a feiticeira.

- Você consegue me ajudar, Andras? - Katalin colocou o braço de Ravish ao redor de seu pescoço, Andras se aproximou ajudando Ravish a se erguer.

- Eu posso ir junto com vocês? - Surpreendentemente, Ilana apareceu na porta da cozinha. Com a aparência de quem mal havia conseguido dormir, o semblante parecia assustado.

- Ah, olha quem chegou. - Katalin mal disfarçou o descontentamento em vê-la ali.

- Você quem sabe, acho que é até melhor já que foi você que o encontrou - Andras respondeu.

Os quatro saíram em silêncio do casebre. A manhã já começava a se desdobrar com a luz suave do amanhecer, o ar fresco característico da região preenchendo seus pulmões. Katalin, com seu semblante calmo e focado, guiava a carroça, enquanto Andras e Ilana seguiam a pé, mantendo o ritmo moderado, já que o veículo só podia acomodar duas pessoas. Ravish, ainda fraco e dolorido, estava esticado na carroça, seu corpo protestando contra os movimentos bruscos do veículo.

- Vai demorar muito? - Ravish perguntou, a voz carregada de cansaço e dor.

- Não muito. O templo está logo depois daquela ponte - respondeu Katalin, em um tom leve, como se quisesse compensar a frieza de Andras. - Não se preocupe, querido, você vai sobreviver até lá.

A estrada parecia se estender sem fim à medida que a carroça balançava sobre o terreno irregular. Ravish forçava-se a se manter atento, os olhos vagueando pelas terras desconhecidas ao redor, como se o simples fato de estar em um lugar estranho o tornasse mais vulnerável. Ele sabia que em terras desconhecidas o perigo nunca estava longe.

Logo chegaram ao templo. Katalin dirigiu a carroça até um local mais tranquilo, onde um curandeiro, um feiticeiro habilidoso e conhecedor de muitas formas de cura, tratou rapidamente dos ferimentos de Ravish, trazendo-lhe de volta o alívio.

- Como está se sentindo agora? - Katalin perguntou, entregando-lhe pedaços de panos para que Ravish pudesse se limpar.

- Muito melhor, obrigado, senhorita... - Ravish fez uma pausa, procurando por um nome.

- Katalin - ela respondeu, corrigindo-o suavemente.

- Posso te chamar de Kat? Acho mais fácil de lembrar - sugeriu, sorrindo timidamente, sua voz carregada de um charme suave.

Katalin sorriu de volta, um sorriso quase imperceptível, mas genuíno. Era a primeira vez que alguém a chamava de forma tão direta e familiar, e isso de alguma forma a fazia se sentir menos distante, menos intimidadora.

- Claro, sem problemas. - Ela assentiu, mais descontraída.

Sentou-se ao lado de Ravish, decidindo iniciar uma conversa para aliviar o clima pesado. Havia algo nele que despertava sua curiosidade, algo que a fazia querer entender mais.

- De onde você veio? - ela perguntou, observando-o com uma mistura de interesse e cautela.

Ravish parecia se perder em seus próprios pensamentos por um momento, antes de responder, sua voz adquiriu um tom sonhador.

- Vim de Unquituho, uma província das terras férteis, abençoadas pela mãe natureza. Lá, tudo o que se toca floresce - Ravish cantarolou, imitando fielmente a maneira como os katacristanos falavam.

Katalin levantou uma sobrancelha, surpresa pela beleza da descrição.

- Não conheço muito sobre lá - confessou, mais por educação do que por real interesse.

- Posso te afirmar, Kat, é um lugar incrível. Já viajei por muitas terras, mas Unquituho... Bem, modéstia à parte, é o lugar mais bonito que já vi. - Ravish falou com uma paixão silenciosa, como se as palavras saíssem quase naturalmente, envolvido de uma saudade profunda.

Katalin o observava atentamente, sentindo um leve desconforto ao ver como ele se entregava à lembrança. Havia algo em sua voz, uma melancolia disfarçada, que sugeria que ele não estava apenas falando sobre um lugar físico, mas de algo muito mais pessoal.

- E o que trouxe você até aqui? - Ela não pode evitar perguntar, a curiosidade falava mais alto.

- Fui um explorador, até que o azar me encontrou. Aconteceu que, ao invés de descobrir um novo horizonte, encontrei quase a minha morte. Se não fosse por vocês, não sei o que teria sido de mim. Perdi muito, mas, pelo menos, estou vivo - ele disse com uma expressão que era tanto grata quanto pesarosa.

Katalin o olhou com um misto de pena e compreensão. A dor de Ravish estava evidente em cada gesto, e a tentativa dele se limpar com uma mão era um esforço silencioso para disfarçar o quão difícil era sua adaptação. Ela podia ver que a adequação não era apenas física, mas emocional.

- Não me interprete mal, não estou te tratando como um pobre coitado. Mas você precisa de ajuda, Ravish? - perguntou, um pouco hesitante.

Ele sorriu, mas era um sorriso fraco e carregado de uma tristeza que parecia pesar cada vez mais.

- Agradeço, Kat. Mas acho que a partir de agora, vou ter que aprender a viver com isso - respondeu, seu tom melancólico transmitindo mais do que qualquer palavra poderia expressar.

Katalin ficou sem reação, seus olhos abaixaram procurando por palavras que fossem confortá-lo, mas ela era péssima naquilo.

Seu olhar se levantou em direção a Ravish, o contemplando por um momento. Ele tinha uma beleza exuberante. Seus cabelos platinados e a pele clara contrastavam com os traços suaves de seu rosto, os olhos se assemelhavam ao céu azul brilhante, limpo de nuvens. Juntos, criavam uma contraposição forte com a dor visível em seu âmago.

Katalin se levantou, sentindo a necessidade de dar espaço ao rapaz, embora uma parte de si desejasse ficar.

- Eu já vou indo - disse Katalin. - Não se preocupe, você está em segurança aqui. Vou cuidar para que nada mais te aconteça.

Antes que ela pudesse se afastar, Ravish segurou sua mão com delicadeza, seus olhos agora mais intensos, expressando vulnerabilidade e gratidão.

- Eu vou te ver novamente, não vou? - perguntou, a voz cheia de uma esperança que ela não conseguiu ignorar.

O coração de Katalin disparou com aquelas palavras, e ela sentiu algo brotar dentro de si que não esperava. Sua resposta saiu mais eufórica do que imaginara.

- Claro que sim. - Ela não conseguiu esconder o sorriso que se formou em seus lábios. - Eu estou sempre aqui no templo, você me verá com frequência.

Ravish sorriu de volta, e a visão daquele sorriso fez com que Katalin sentisse algo ainda mais desconcertante.

- Até logo, Kat. - A maneira como ele disse o nome dela parecia tão íntima, quase como se houvesse algo a mais, algo não dito, que pairava no ar.

Katalin não conseguiu dizer mais nada. Ela se afastou, seu coração ainda batendo mais rápido do que deveria, e atravessou a cortina, já tentando retomar o foco em suas tarefas. Mas algo dentro dela sabia que, naquele momento, algo havia mudado.

Andras e Ilana aguardavam do lado de fora do templo, enquanto Katalin lidava com a situação de Ravish. Ilana achava irônico a forma que a feiticeira estava se prontificando a ajudar um completo desconhecido, enquanto não perdia a oportunidade de tratá-la de maneira hostil. "Talvez Katalin tivesse suas preferências" pensou, reprimindo uma risada amarga.

- Que dor de cabeça infernal! - Andras resmungou, passando os dedos por entre os cabelos bagunçados.

Ilana olhou para ele franzindo a testa. Seu semblante estava sério, quase severo.

- Eu gritei por você a noite inteira quando o forasteiro chegou, mas você sequer me respondeu. Não me diga que estava bebendo?

Andras hesitou, pensando em uma alternativa para contornar aquela pergunta.

- Nem adianta me enganar - Ilana continuou, cruzando os braços. - Seu cheiro e o que acabou de dizer já entregaram tudo.

Os ombros de Andras caíram, se sentindo derrotado.

- Sim, eu estava - confessou, seus lábios se comprimiam em constrangimento. - É a única alternativa que encontrei para silenciar minha cabeça.

- E funcionou?

- Por um breve momento, sim.

Para a surpresa de Andras, Ilana não o repreendeu. Em vez disso, soltou um suspiro cansado.

- Talvez eu também precise disso - disse, quase num sussurro.

- Não está conseguindo dormir também? - o feiticeiro perguntou, encostando a cabeça na parede externa do templo.

- Consigo, mas os pesadelos me acordam. Está tudo tão vívido na minha mente que parece que eu ainda estou lá. - Ilana abaixou a cabeça, olhando para suas mãos, naquele momento não havia nada, mas corria risco do poder da entidade esvair por entre seus dedos, como aconteceu naquele acidente. - Tenho medo de ficar sozinha. Por isso pedi para vir.

Andras inclinou-se em direção a ela, pegando em suas mãos com cuidado.

- Você não vai estar sozinha enquanto eu estiver aqui.

Ilana deu um sorriso fraco, sabia que podia contar com Andras, mas não sabia por quanto tempo.

- Deve ser porque foi algo recente - Andras continuou. - A sua mente ainda está assimilando o que aconteceu.

- Eu tenho muito medo dessa entidade tomar posse de mim novamente. E se ela fizer pior do que da última vez? - O desespero na voz de Ilana era palpável, parecia que ela entraria em colapso a qualquer momento.

- Calma. - Andras segurou o rosto de Ilana com as mãos em formato de concha, fazendo-a olhar diretamente em seus olhos. - Estamos rodeados de muitos feiticeiros, se a entidade vier a se manifestar, iremos contê-la.

Ilana assentiu, tentando não pensar sobre o assunto, mesmo que fosse impossível.

Percebendo o desconforto de sua amiga, Andras pensou em uma alternativa que fosse distraí-los, nem que fosse por pouco tempo.

- O que acha de fazermos algo para nos distrair. Cozinhar, talvez?

- Vamos.

Quando começaram a se afastar, Ilana se lembrou de Katalin.

- E ela? Não vai avisá-la que estamos indo?

- Ela saberá onde estamos. Mas, por via das dúvidas... - Andras deu um pequeno sorriso, fechando os olhos por um breve momento. - Pronto.

Ilana arqueou as sobrancelhas, intrigada.

- É assim que vocês se comunicam?

- Sim. Posso fazer com você também, se quiser.

- Não, obrigada. Já tenho vozes demais na minha cabeça, uma a mais só vai piorar - respondeu ela, com um sorriso amarelo.

Mais tarde, em casa, os dois separavam os ingredientes para o preparo da refeição. Ilana não estava com fome, mas a tarefa foi o suficiente para distraí-la por um tempo.

Andras, cortando os temperos, parecia focado. Entretanto, Ilana notou o semblante abatido em seu rosto e sentiu seu coração ficar apertado em seu peito, como se não houvesse espaço para comportá-lo. Ele estava sempre tentando cuidar dela, enquanto carregava sua própria dor.

Era visível que o desaparecimento de sua mãe havia quebrado algo nele, e mesmo fingindo estar bem, Ilana via as rachaduras. Sentiu-se egoísta por não conseguir consolá-lo.

- O que foi? - Andras perguntou, ao notar que ela o encarava demais.

Ilana percebeu que uma fina lágrima rolou por sua bochecha. Ela passou as costas das mãos para secá-la.

- Nada. Vou buscar mais água.

Apressadamente, Ilana pegou um balde e caminhou para fora de casa, para evitar dar explicações para Andras.

No poço, ela perdeu a noção do tempo. Subia e descia a corda, distraída, enquanto seus pensamentos se agitavam em sua mente.

Ilana apoiou o balde na borda, encarou o seu reflexo com um misto de apatia e de nojo, era como se tivesse aversão à própria imagem. As pequenas oscilações da água ocasionada pelo vento a relembrava de grandes ondas formadas pelo mar, a concebendo memórias do dia que tanto tentara esquecer.

Carregava o peso de muitas mortes. Os gritos se aprofundaram em sua mente como espinhos, trazendo-lhe desespero e agonia.

Não sabia quando teria novamente uma boa noite de sono, mal conseguia fechar os olhos, e quando finalmente adormecia, os pesadelos viam como um baque.

A sensação que ela carregava era semelhante à primeira vez que tirou a vida de alguém. A única diferença era que ela aprendeu a conviver com o fardo, não saberia se seria igual dessa vez.

Ilana não se sentia orgulhosa de suas ações, antes, poderia contar quantas mortes causou, hoje, não mais. Aquilo a deixava inquieta, e temia que o pior fosse acontecer a qualquer momento.

A sua mente parecia querer sabotá-la, e as memórias cruéis de seu passado voltaram a atormentar. Eram seus pensamentos que precisavam ser silenciados. Ilana lutava contra si mesma, espantando as recordações, mas ela a puxava e a domava, sem piedade.

- Cuide bem do seu irmão, querida - Tânia disse ao depositar um beijo na testa de Ilana, o gesto tão terno quanto a mulher à frente dela. - Estaremos em casa em breve.

- Pode confiar em mim, mãe. - A Ilana de aparência mais jovem e olhar sonhador a prometeu.

Ilana já estava acostumada com a tarefa de cuidar de seu irmão mais novo, enquanto seus pais iam em busca do sustento para a família. Era apenas mais um dia comum na vida dos garotos.

O dia estava muito bonito, o céu vasto com as nuvens correndo, sem ameaça sequer de chuva. Perfeito para aproveitar o melhor do que a mãe natureza havia oferecido.

Airam, arteiro como sempre, pulava de um lado para o outro no quintal, caçando alguns insetos para sua "coleção". E vez ou outra, ia perturbar as outras meninas do vilarejo jogando os insetos que julgava ser desinteressantes nelas.

- Airam, chega de provocar as meninas. - Ilana chamou a atenção do seu irmão ao ouvir os gritos agudos de desespero.

- Você não cansa de ser chata? - disse Airam de forma rude.

- Já para dentro, quando a mãe chegar vou contar o que estava fazendo e ela irá te castigar

Contra sua vontade, Airam voltou para casa, bufando e batendo os pés contra o chão. Nesta época, o mais novo encarava sua irmã como sua inimiga. Ilana sempre aparecia nos seus momentos de diversão para estragá-los ou dedurar seu comportamento aos seus pais. Os dois viviam em pé de guerra, Tânia sempre precisava ficar como intermediadora para a briga não acabar em um desastre.

Ilana se arrependeu instantaneamente de ter colocado Airam para dentro de casa, o moleque parecia estar mais inquieto com o confinamento. Ele provocava, corria pelos cômodos, derrubava as coisas e isso estava irritando Ilana.

Talvez a grande diferença de idade entre os dois que ocasionava esse atrito, Ilana era uma adolescente e Airam apenas uma criança, as conversas e pensamentos não ornavam entre eles. Ilana enxergava o mais novo como um menino teimoso e pirracento e Airam a enxergava como uma chata e controladora.

A tensão estava cada vez maior, para não perder o controle de vez, Ilana teve uma ideia.

- Já chega! Vamos sair um pouco. Que tal dar uma volta pelo vilarejo?

Airam abriu um sorriso de orelha a orelha ao ouvir aquilo, finalmente algo diferente das proibições e broncas.

- Vamos! - Ele esticou os braços para o ar, eufórico com a ideia.

Ilana e Airam seguiram caminhando pelo vilarejo, até que passaram por uma rua comercial, com diversas mercadorias expostas em barracas e em tabernas. A movimentação de pessoas causava curiosidade em Airam, enfim, o garoto estava quieto, o plano de Ilana havia dado certo.

- Aqui é muito grande - disse a criança, impressionada.

Ilana deu uma risada anasalada, quando mais nova, também achava certos lugares extremamente grandes, mas com o passar do tempo, passou a ser apenas uma impressão.

- Conheço um lugar ainda mais interessante, quer ver? - perguntou a mais velha.

Airam não precisou dizer nada para confirmar, logo, os dois adentraram um pequeno estabelecimento, os donos tinham a especialidade em entalhar bonecos e outras peças em madeira. Sempre que podia, Ilana passava pelo lugar e ficava horas admirando as peças perfeitamente desenhadas pelas mãos dos donos, eram tantos detalhes que era impossível de notá-los em uma única vez.

- Olha que legal! - Airam correu pela taberna animado para mostrar uma miniatura de um navio para sua irmã.

- Que lindo. - Ilana abriu um sorriso, certamente Airam ficaria tão apaixonado quanto ela pelos objetos. - Só tome cuidado na hora de devolver para o lugar - ela o avisou, temia que ele quebrasse algo que não pudessem pagar.

Airam segurou o pequeno navio com mais força ainda, estava encantado pela peça, imaginando as diversas brincadeiras que poderia inventar com aquele objeto.

- Eu quero ele - a criança pediu, esperançosa em poder levar para casa.

O sorriso no rosto de Ilana desapareceu no mesmo instante, se arrependendo de ter levado Airam até aquela taberna, deveria ter imaginado que indo até lá, despertaria a vontade dele de querer levar algo dali. Airam ainda não entendia que eles mal tinham o que comer, que seus pais passavam o dia inteiro fora apenas para trazer o básico para casa. Nem Ilana estava acostumada com aquele choque brutal de realidade que tiveram, quem dirá uma criança tão pequena como ele.

- Não podemos levar. Não temos dinheiro para pagar - Ilana tentou dizer da forma mais cautelosa possível.

Podia-se notar o olhar triste de Airam a quilômetros de distância. Porém, o garoto não contestou, apenas devolveu o objeto para o lugar onde o encontrou. Em silêncio, os dois retornaram para casa.

Aquela cena ficou gravada na mente de Ilana, não suportou ter visto o olhar tão abatido de seu irmão, queria poder ao menos atender o desejo dele.

Ilana então decidiu aprender sozinha a entalhar madeira. Passou semanas praticando. Teve diversos cortes espalhados pelas mãos, até cogitou desistir, mas após tanto esforço, finalmente conseguiu fazer um singelo barco. Seria o presente perfeito para a passagem de ano.

Quando entregou o presente a Airam, o brilho em seus olhos foi mais do que suficiente para compensar o esforço. Ele segurava o barco com admiração, mostrando-o para as outras crianças

- Que belo presente, Airam! - disse uma das crianças do vilarejo. - Mas o que você vai dar de presente para sua irmã?

Airam parou, pensativo. As palavras acabaram com sua alegria de forma instantânea. Não estava pensando em retribuir o gesto. A tradição repassada pela sua Deusa dizia que todos deveriam trocar presentes na passagem de ano, um símbolo de prosperidade e gratidão.

Ele sentiu uma tristeza profunda ao perceber que não tinha nada para dar para Ilana. Se afastou das outras crianças, com a mente a mil. Então teve uma ideia, não era correta, mas ele precisava tentar.

No dia seguinte, insistiu para que Ilana o levasse para a rua comercial novamente. Apesar de relutante, ela cedeu. Enquanto passeavam entre as barracas, Airam observava com atenção cada mercadoria, a fim de encontrar algo que agradaria Ilana.

Foi então que viu uma barraca repleta de doces brilhantes e de aroma que seduzia o paladar, os preferidos de sua irmã.

Airam analisou perfeitamente o ambiente, os vendedores estavam distraídos, ninguém estava prestando atenção nele. A chance era perfeita.

Com andar sorrateiro, Airam esticou a mão e enfiou rapidamente os doces no bolso da calça, depois se misturou às pessoas como se nada tivesse acontecido.

- Ele está roubando! - A voz retumbou em seus ouvidos, fazendo o coração de Airam disparar. Sem pensar, suas pernas entraram em ação, levando-o em disparada.

Ilana, que não estava muito distante, viu apenas o vulto de Airam passar por entre as barracas, com uma moça furiosa logo atrás. Sem hesitar, ela correu também.

Não fazia a mínima ideia do que tinha acontecido, torcia para que Airam não tivesse feito algo para despertar a fúria de alguém, mas também não deixaria que ele fosse pego por ela.

Eles adentraram um bosque, troncos recaiam sobre o chão e as árvores altas escondiam qualquer traço de civilização. O chão estava coberto por folhas secas e musgo escorregadio, dificultando os passos de qualquer um que corresse por ali.

- Onde você está moleque maldito? - A moça deu um berro parando aos poucos de correr.

Ilana se guiou pelos gritos. Entre as árvores, raízes grossas jaziam do chão, tornando-se armadilha para os desatentos. Mais à frente, o terreno começava a se inclinar, revelando um barranco traiçoeiro.

- Por que está perseguindo ele? - Ilana inquiriu, ofegante, ao alcançar a moça.

A moça a olhou com desprezo antes de responder:

- Aquele desgraçado estava roubando a barraca do meu pai.

- Ele é só uma criança, não tem noção do que faz - Ilana disse, esperando a compreensão dela.

- Ele e mais outras dezenas de crianças roubam ali todo dia. Mas não podemos fazer nada porque são crianças, mas roubar eles sabem.

- Fale o que ele pegou, dou um jeito de devolver o dinheiro.

- Não quero dinheiro, quero o garoto.

A moça deu as costas para Ilana e voltou a procurar por Airam. Ilana foi atrás dela, implorando para que o deixasse em paz. Estava apavorada com a ideia de que aquela moça o entregasse. Se fizesse isso, era capaz das pessoas lincharem ele, mesmo que fosse apenas uma criança.

- Não há nada que eu possa fazer? - Ilana tentou negociar pela última vez, o tom como se estivesse pedindo por misericórdia.

A garota parou de andar, cansada de ouvir a voz de Ilana.

- Já te falei que eu quero o garoto - ela rosnou como uma fera faminta.

Ilana olhou ao redor, rezando que Airam tivesse encontrado um bom esconderijo, era questão de tempo até ela desistir.

Porém, as armadilhas do bosque não deixaram que Airam se escondesse por muito tempo. Uma aranha fazia-lhe companhia no buraco da árvore que a criança estava, sentindo-se ameaçada, a aranha o picou, fazendo o garoto soltar um pequeno gemido.

A moça ouviu e disparou em direção ao som, arrastando Airam para fora do buraco pelas roupas. O som das folhas secas sendo esmagadas misturava-se aos protestos da criança.

Ilana viu a cena e o sangue ferveu como lava. Ela correu para cima da moça, ignorando o fato da moça ser muito maior que ela.

- Solte-o agora! - gritou Ilana, agarrando os braços da garota.

Os três se debatiam em meio às raízes e pedras, quase perdendo o equilíbrio. Para se livrar de Ilana, a moça desferiu uma cotovelada certeira no estômago dela. Na mesma hora, Ilana caiu para trás, sentindo que colocaria os próprios órgãos para fora.

Mas não demorou muito para que Ilana se recuperasse, o medo daquela moça de machucar Airam estava cada vez mais crescente e ela não mediria esforços para defendê-lo.

Levantou-se meio zonza, e lançou-se para cima da moça, prendendo o pescoço dela em um mata-leão improvisado. Foi o suficiente para Airam conseguir se levantar e correr para longe.

A criança olhou para trás, hesitante, observando sua irmã tentar conter a garota. Por pouco não voltou para ajudá-la.

- Vai embora! - Ilana deu um berro. - Eu resolvo isso. - Ela lançou um olhar confiante para seu irmão, mesmo não sendo verdade. Estava prestes a soltar a moça devido a força que ela fazia.

A contra gosto, Airam correu para longe, com as lágrimas nos olhos e pedindo que sua Deusa ajudasse Ilana naquela situação.

Como esperava, Ilana não conseguiu manter o golpe por muito tempo. A moça era forte e se libertou. Agora sua fúria estava direcionada a ela.

Ilana sentiu as pernas tremerem e a bile subiu em sua garganta. Pelo olhar da moça ela tinha certeza que sairia dali muito machucada. Ela só poderia contar com a sorte.

Ou com a morte.

O barranco estava mais próximo, e Ilana sabia que não poderia enfrentá-la de igual para igual. Seus olhos buscavam por uma rota de fuga. Mas antes que pudesse reagir, sentiu o impacto de um soco no rosto que a jogou para trás, quase à beira do barranco.

Ilana se agarrou às raízes das árvores para se levantar, sentiu seu corpo protestar. Ela só havia tomado dois golpes, mas era como se tivesse enfrentado uma batalha inteira. Seus músculos tremiam e ela sabia que não aguentaria por muito tempo.

A moça não hesitou. Avançou contra Ilana sem piedade alguma, empurrando-a com força. O barranco, coberto de folhas e musgo escorregadio, fez o chão desaparecer sob seus pés. Num reflexo desesperado, Ilana agarrou-se ao braço da moça, arrastando-a junto para a descida.

Os corpos rolaram ladeira a baixo, o mundo virando de cabeça para baixo. Os galhos secos e pedras pontiagudas rasgavam a pele de Ilana, formando escoriações que queimavam como álcool jogado em uma ferida aberta. Cada impacto lhe arrancava um grito de dor, a queda parecia infinita.

A descida terminou de forma abrupta, quando um som oco ecoou pela floresta. Ilana parou, o corpo pulsando de dor. Levantou o olhar, encontrando a moça desacordada ao seu lado, o corpo imovél, silencioso.

Seu coração começou a palpitar quando ela viu o sangue se espalhar, manchando as folhas ao redor com um vermelho vibrante. O cheiro metálico invadiu o ar da floresta preenchendo os pulmões de Ilana, ela engoliu em seco e se arrastou para perto do corpo da moça.

Com a mão trêmula, conferiu a respiração da moça, mas a certeza estava ali, ela estava morta.

Ilana recuou abruptamente, sentindo as lágrimas preencherem os seus olhos e derramarem em uma cascata. Por muito pouco, não foi ela quem batera a cabeça naquela pedra. Uma sensação de alívio e horror se misturavam em seu peito. Mas era tarde para voltar no tempo.

Aquela cena se repetiu por várias e várias noites na mente de Ilana, se tornando a memória mais sombria de seu passado. Era uma cicatriz que nunca havia fechado e que talvez nunca iria fechar.

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