Capítulo XIV - Alvedrio
2307 palavras
Tamar, província de Tahagul
O único ruído presente naquela madrugada lúgubre eram das respirações contidas e dos galhos secos se partindo abaixo dos pés da pequena comitiva, enquanto adentravam as densas florestas que marcava a fronteira entre Nubiamak e Tamar.
A segunda parte do trato estava prestes a ser selada. Olozor caminhava à frente, seguro do trajeto que percorria. Conhecia aquelas terras como ninguém. Ele conduzia os soldados pelas rotas menos vigiadas, garantindo que pudessem atravessar o domo sem alertar os inimigos. Evitando assim qualquer confronto indesejado.
Ravish, mais calmo agora, se sentia confiante. A magia que antes o inquietava, pareceu não surtir efeito algum, era como nem tivesse sido executada, como se fosse fruto de seu imaginário.
— Acho que é aqui que nos separamos — Ravish disse com firmeza aos seus soldados, assim que Olozor confirmou o fim do trajeto.
Mikail aproximou-se em silêncio, as sombras das árvores lançando figuras distorcidas sobre seus rostos. Ele estendeu dois pergaminhos para Ravish, que os abriu de imediato, sob o olhar atento de seus homens
— Estas são as coordenadas da localização da feiticeira — explicou Mikail, sua voz baixa, quase como se temesse que as árvores pudessem escutá-lo. — E este é o retrato dela.
Ravish avaliou com cuidado o retrato do rosto de Téça, mesmo em um simples desenho, a mulher transparecia uma aparência imponente. Gravou em sua memória cada detalhe que fora descrito, como se o destino de todos dependesse disso, e talvez dependesse mesmo. Em seguida, guardou os pergaminhos na bolsa, os dedos tocando o couro frio, seus olhos brilhando com uma determinação sombria. Olozor continuava em silêncio, como se o peso da missão pairasse entre eles.
— Perfeito. — Um estalo curto saiu da boca de Ravish, como um comando decidido. — Mikail, você ficará comigo em Tamar. Badjinn, você será o intermediário entre as fronteiras. O resto de vocês permanecerá em Nubiamak, atentos a qualquer sinal meu. Se eu mandar recuar, recuem. Se eu ordenar avançar, avancem sem hesitação.
— Sim, capitão — os soldados responderam em uníssono cortando a quietude da floresta.
Mikail foi o primeiro a se separar. Com um movimento fluido, transmutou-se em uma coruja, suas asas cortando o ar pesado da noite enquanto ele desaparecia entre as copas das árvores, fundindo-se com a escuridão.
Ravish permaneceu em silêncio por um momento, observando o vazio onde Mikail havia desaparecido, antes de se voltar para Olozor. O feiticeiro, que aguardava pacientemente, ergueu o olhar.
— Agradeço pelos seus serviços, Olozor — Ravish disse, a voz carregada de respeito.
— Disponha. Se precisarem dos meus serviços novamente, estarei à disposição. — Olozor respondeu, a sua voz sempre sóbria.
Ravish sabia que aquelas palavras tinham mais peso do que pareciam. Olozor era uma força da natureza disfarçada de homem. Ravish sentia que o feiticeiro tinha a chave para mais do que apenas a travessia do domo.
Virando-se de costas, Ravish deixou para trás seus soldados e o feiticeiro. O manto em seu corpo, balançantes ao vento, desapareceu junto a ele, como um vulto na noite.
— Perdoe-me mãe natureza! Juro que o sacrifício destes pobres animaizinhos não será em vão... trará benefícios imensuráveis para a humanidade.
Ravish contemplava os coelhos capturados, os pequeninos tremiam em terror, cada espasmo dos corpos transmitindo um medo primitivo, visceral, provavelmente já sabendo do destino final que teriam.
O capitão estava escondido em meio a floresta, pretendia usar o sangue dos coelhos para simular uma luta, queria ao máximo, fazer com que a feiticeira se comparecesse em ajudá-lo, precisava estar próximo a ela, assim seria mais fácil de encontrar a entidade.
— Quatro... talvez seja demais — murmurou.
Ravish selecionou um dos coelhos, e o retirou da armadilha. Com um movimento preciso, posicionou o animal no solo e, com uma adaga afiada, perfurou o coração da criatura, sua respiração amenizou aos poucos, até cessar por completo. E assim o ritual se repetiu até o quarto coelho.
— O pior já passou — disse Ravish, limpando o sangue da lâmina da adaga em um lenço.
O capitão avaliou suas vestes, as roupas deveriam refletir uma árdua luta, precisava ser mais selvagem.
Despindo-se do paletó e suspensórios, restou apenas em calças e camisa. Sapatos foram descartados, calças rasgadas, e na camisa simulou feridas com cortes profundos. Terra úmida foi esfregada em sua pele, emulando um homem marcado pela batalha.
O sangue dos coelhos serviam de tinta, sendo espalhado sobre o rosto, abdômen e braços, mas faltava algo, algo que realmente provocasse compaixão, algo que horrorizasse.
Com pensamentos macabros, Ravish considerou um ato extremo: cegar-se. A lâmina dançou perigosamente perto de seus olhos, mas o medo o deteve. A região ocular era sensível, e a incerteza de sua regeneração o atormentava.
Ravish então cogitou em retirar seus dedos, já os haviam perdido uma vez, e não demorou muito para que voltassem ao normal. O rapaz andou em direção a uma rocha, que aguardava seu ato desesperador.
Respirando fundo, ele posicionou o braço sobre a pedra fria. A adaga subiu, não ameaçando mais os seus dedos, e sim, o pulso. Ele repensou no que faria, sabia que poderia ir um pouco mais além.
O tecido de sua camisa foi rasgado, um pedaço para garrotear o braço, outro para morder e abafar os gritos.
O corte começou, profundo e cruel, o sangue jorrou, pintando o gramado verde de vermelho. Músculos e tendões se romperam em um estalo úmido, enquanto as artérias pulsavam furiosamente, derramando vida, o tecido na boca de Ravish sufocava seus urros de agonia.
A força o abandonou, por um breve momento ele parou.
— Deveria ter convocado a droga de um clone para isso. — Cuspiu o tecido com desgosto. Sua voz repleta de rancor. — Seria mais rápido, mais preciso.
Olhando para o braço ali pendurado, preso por fragmentos de carne e pele. Sabia que não podia hesitar, parar no meio do processo não era uma opção. A dor era intensa, mas familiar.
— Vamos lá Ravish, já sofreu dores piores que essa — disse a si mesmo, mas cada palavra era um afinco.
Com um último esforço, ele retomou o corte. O suor misturava-se ao sangue, a determinação silenciando seus gritos.
Quase no fim, a adaga caiu e com um puxão brutal, Ravish libertou o braço de sua prisão de carne. Caído, esperava que a dor cessasse, que o pior não acontecesse. Mas uma sensação de ânsia lhe invadiu, Ravish vomitou, torcendo que toda a dor fosse embora junto com a comida.
Ravish se permitiu ficar por um instante deitado naquela grama úmida, sua visão turva, o mundo ao seu redor parecia girar, os pensamentos eram como fragmentos que não o permitia raciocinar. Encolhendo-se em uma posição fetal, a poça de sangue e vômito o cobria como um manto de miséria.
Ele sabia que a dor não cessaria tão cedo. Mesmo assim, a missão não podia ser abandonada. Cada segundo contava, ele precisava encontrar a feiticeira. Ravish, ainda trêmulo, limpou a boca com as costas da mão ensanguentada e, com um esforço sobre-humano, forçou-se a ficar de pé. A missão acima de tudo.
Seus músculos protestavam com uma ardência implacável enquanto ele cambaleava até o rio. Cada passo parecia uma eternidade, cada respiração uma luta desesperada contra o colapso iminente. Ao chegar à margem, ele soltou a bolsa, que fluiu junto à correnteza, desmanchando todas as provas que poderiam colocá-lo em risco.
Seu coração tamborilava em seu peito, o medo de não conseguir concluir a missão o invadia. "E se eu não conseguir?", pensou, sequer sabia se ainda lhe restava forças para usar suas habilidades.
Mas então, um leve sorriso curvou em seus lábios. Havia prometido a sua mãe que voltaria para casa, e nunca havia quebrado uma promessa sequer. Mesmo no desespero, as palavras sábias de Sulam ecoavam em sua mente, trazendo resquício de esperança.
"Jamais revele todas as cartas que carrega, pois haverá um momento em que apenas aquilo que ficou oculto será capaz de virar o jogo."
Ele sempre valorizou esses conselhos. Sempre os guardou, pois sabia que um dia precisaria deles. E esse dia havia chegado.
Respirando fundo, Ravish ergueu o olhar para o céu escuro, como se pedisse força às estrelas invisíveis. Lentamente, sua pele acinzentada, começou a mudar. O vento noturno parecia levar consigo sua aparência demoníaca, dissipando a máscara da criatura que ele era. Sua pele adquiriu uma tonalidade mais viva, mais humana, e os chifres que uma vez adornaram sua cabeça desapareceram como sombras fugazes.
Agora, de pé, em meio à escuridão, o reflexo no rio mostrava não mais o monstro que ele escondia, mas um homem de feições angelicais, pronto para encarar seu destino.
Ninguém seria capaz de suspeitar que havia um demônio entre eles.
Ravish sentia o peso da exaustão pressionando cada músculo de seu corpo, agravado pela escuridão que se adensava naquela noite sem lua. A visão turva pelo suor que escorria em seus olhos e a dor lancinante de seu membro recém-amputado tornavam cada passo uma tortura.
A pequena casinha dos feiticeiros emergiu à frente, uma silhueta solitária contra o breu, sua única esperança. Com um esforço supremo, Ravish reuniu o último resquício de força para seu ato final de enganação.
— Socorro! — O grito rasgou a noite, carregado de um desespero fingido, mas não menos arrepiante.
Ilana, que se encontrava fora de casa naquele momento, estremeceu ao ouvir o clamor. Aquela região era tão pacífica, que qualquer som anormal era um presságio de perigo.
Preparada para a situação, Ilana agarrou algumas pedras para tentar se proteger caso fosse necessário. Os gritos animalescos não cessaram, deixando a garota ainda mais nervosa.
— Andras! — Ilana deu um grito em busca do feiticeiro, mas apenas teve o silêncio como resposta.
Não querendo estar a mercê do destino, Ilana correu de volta para o casebre, trancando-se dentro. A voz masculina que suplicava por ajuda do lado de fora era humana, ou assim parecia.
— Não é possível que Andras não esteja escutando isso. — Ilana disse para si mesma, o desespero crescente em seu ser. — Andras, cadê você? Está ficando surdo?
Pela fresta da porta, Ilana tentou descobrir do que se tratava, mas a escuridão sequer permitia isso.
As batidas na porta a fizeram agir. Não esperaria ser atacada. Foi até a cozinha e armou-se com um cutelo, Ilana escapou pelos fundos, determinada a pegar o intruso de surpresa e confrontá-lo.
Ela se escondeu atrás da carroça, observando a figura ensanguentada que batia na porta. Um homem, com o braço amputado, implorava por ajuda.
Ilana hesitou. Ajudar um desconhecido era um risco; a última vez que o fizera, resultou em uma tragédia. Porém, a humanidade dentro dela pulsava, recusando-se a ser ignorada.
Da mesma forma que havia saído de casa, cautelosamente retornou a ela. Talvez do porão ela não ouviria os gritos, era para lá que iria.
Mas para onde havia ido toda a sua humanidade se praticasse aquele ato? Já havia ceifado algumas vidas, mas nenhuma foi para que sofresse amargamente até sua morte.
Com o cutelo ainda em mãos, Ilana caminhou lentamente para a porta principal, os pés descalços tocando o chão frio que se estendia através de seu corpo e gelava sua espinha, suas mãos trêmulas tocaram a maçaneta, ainda temendo se arrepender, cogitou se faria uma boa escolha. Ela abriu a porta, um olhar de desespero encontrou o seu, clamando por misericórdia, Ilana mediu cada centímetro do homem à sua frente, erguendo o cutelo em direção a face dele.
— Se tentar alguma gracinha, eu termino o serviço e te mato de vez — ameaçou, a voz firme apesar do medo.
Ravish, o estranho, apenas assentiu, incapaz de falar.
Ilana ajudou o rapaz a se levantar, cada passo era um gemido provindo de seus lábios, os nervos de Ilana pulsavam em ansiedade. Acomodou-o na poltrona com esforço, buscou uma forma de estancar o sangramento. Já havia lidado com diversos tipos de feridas, de tamanhas profundidades, mas como faria para ajudar alguém com o braço decepado? Certamente ele morreria, mas ao menos ela tentou ajudá-lo
Lamentava a ausência de Andras e de seus chás curativos. E em principal Téça, e sua magia capaz de salvar vidas à beira da morte.
Desesperada, Ilana correu para o porão e voltou com alguns tecidos. Tentou fazer um torniquete para parar o sangramento. Ravish apenas gemia, tinha certeza que a garota não fazia a mínima ideia do que estava fazendo, ela só ia deixar a situação ainda pior.
— O que aconteceu com seu braço? — perguntou, curiosa e cautelosa.
— Fui caçado por uma besta-fera — mentiu Ravish, entre dentes, evitando revelar sua verdadeira natureza.
Ilana o encarou, mas voltou sua atenção para o curativo.
— Quem é você? — perguntou ela, inquieta, enquanto o cutelo permanecia em fácil alcance para ela.
Ravish olhou para ela, os olhos refletindo um turbilhão de emoções. Ele sabia que não podia revelar sua verdadeira natureza, mas também entendia que Ilana merecia alguma forma de honestidade.
Como Indifell possuía dezenas de príncipes, era quase impossível alguém de fora saber o nome de cada um deles, a não ser que ocupassem um papel bem relevante na história.
— Meu nome é Ravish — começou ele, hesitante. — Ravish de Katacrista.
Ilana o observou por um longo momento, tentando sondar o que ele escondia, ela então assentiu, mas em nenhum momento se afastou do cutelo. Não baixaria a guarda.
Após tratar o ferimento da melhor forma que podia, ela o ajudou a se limpar. O cheiro de sangue e vômito quase embrulhou seu estômago. Ela lhe ofereceu roupas limpas e preparou uma bebida quente e um pouco de comida do que sobrou do jantar, sabendo que Ravish precisaria de toda a força possível para se recuperar.
— Descanse agora — Ilana disse, oferecendo-lhe um cobertor. — Amanhã decidimos o que fazer.
Ravish aceitou o cobertor, agradecendo em silêncio. Ele sabia que tinha muito a explicar, mas por enquanto, estava grato pela ajuda de Ilana. Enquanto a escuridão da noite se fechava ao redor do casebre, ambos se perguntavam o que o amanhecer traria.
Olá queridos leitores!
Acho que esse foi o menor capítulo que escrevi até o momento, pois decidi dividir o capítulo 13 em duas partes para melhor fluidez da história.
Me digam o que estão achando. Será que Ravish conseguirá enganar Ilana e os feiticeiros?
Até a próxima!
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