Capítulo XII - Progênie
Art by Leo Dalecio
4077 palavras
Tahagul
Correr sem rumo era sem dúvidas uma péssima decisão, entretanto, era a única escolha para Ilana, ela estava perdida em uma terra muito distante do seu lugar de origem, em meio a um povo que mal conhecia os costumes, por sorte, entendia o que eles falavam por possuírem o mesmo idioma. Só precisava de algumas informações, um mapa e um navio que a levasse de volta para Montuália.
Mas como faria aquilo sem uma moeda no bolso? Nem ao menos estava vestida, apenas possuía um cordão com seu anel de noivado no pescoço. Estava faminta, não fazia a mínima ideia de quando foi sua última refeição.
Deveria ter caçado algo antes de sair da floresta.
Vagar pela cidade como um lobisomem também não era uma boa opção, já que alguém poderia tentar abatê-la por engano. Andar nua também chamaria atenção, então, Ilana resolveu aproximar-se de uma das casas da redondeza à procura de roupas que tivessem a toa no varal para se vestir. Não encontrou nada confortável para se vestir, apenas um vestido com um corset apertadíssimo que mal lhe permitia respirar, e uns calçados improvisados que quase caíam de seus pés.
A noite foi estranhamente tranquila para alguém em sua situação. Com o sol nascendo, Ilana não tinha tempo a perder, daria um jeito de conseguir dinheiro para dar adeus a Tahagul.
Caminhando por entre as vielas da cidade, encontrou uma feira bem movimentada, semelhante às que Andras a levava, com barracas de alimentos, roupas e bugigangas, e também, compra de objetos.
Ilana se aproximou da barraca de um comprador, observando ele comprar alguns objetos de um rapaz, entregando algumas moedas para ele e finalizando o negócio.
Sem nada o que oferecer, Ilana cogitou tentar vender a aliança de noivado, infelizmente teria que se desfazer do único objeto que a ligava a Filippo, mas aquele sacrifício deveria ser feito para ela garantir seu retorno para casa.
— Hum... Olá? — timidamente, Ilana chamou a atenção do comprador para si.
— Bom dia, senhorita! Deseja algo ou vender algo? — De forma alegre, o homem recepcionou a jovem.
— Queria saber quanto o senhor paga por isso? — perguntou, segurando o cordão com a aliança.
— Deixe-me ver... — Ele observou minuciosamente o objeto, avaliando o quanto pagaria por ela.
— Juro que é feito de ouro e prata, a flor de lótus é feita de esmeralda, apesar de pequena, vale muito — Ilana tentou dar uma valorizada na aliança.
— Pago 15 mil manaquis por elas — o comprador propôs sem pestanejar.
Ilana franziu o cenho, não fazia a mínima ideia do quanto aquilo valia, estava descrente que as moedas entre Montuália e Tahagul eram diferentes, se arrependeu de não ter perguntado a Andras sobre aquilo.
— Sinto muito, mas não irei fechar negócio — ela recuperou a aliança, preferindo não arriscar a não se desfazer do item.
— Poxa, foi o maior valor que já ofereci por algo. Tem certeza?
Ilana voltou a olhar para a aliança, sentindo-se tentada a vender para o homem.
— Tenho. Não é um simples objeto, possui um valor sentimental também — tentou explicar, misturando verdade com uma desculpa para evitar a proposta.
O homem aceitou a recusa sem insistir, e Ilana, antes de partir, aproveitou para fazer uma última pergunta.
— Onde exatamente estamos?
— Em Nubiamak. Não está muito distante do palácio imperial. — O homem a respondeu, em seguida, percebeu que Ilana era completamente nova na cidade. — Você é de Montuália, correto?
— Como sabe?
— Os olhos não mentem — ele sorriu. — Passam-se anos e vocês montualeses continuam com os mesmos traços, uns com a pele mais retinta, outros mais pardas, mas sempre as mesmas características. Não é como nosso povo que perdeu o medo de se misturar a outras raças e já virou uma mistureba de gente.
— Bem observado!
— E essa sua fala com o S mais "retraído" denuncia que você se mudou há pouco tempo de suas terras.
Ilana se impressionou como ele se atentava aos detalhes, em Tamar ela facilmente passava despercebida.
— O senhor é muito observador, parece conhecer muito bem as pessoas e suas origens.
— Sou casado com uma montualesa. Meu filho nasceu com os traços mais semelhantes ao dela do que o meu. Além disso, tenho um interesse genuíno em outras culturas — explicou ele, com orgulho. — Cada um possui alguma característica que não se deixa enganar, mesmo que escondidas muito bem.
— Minha mãe era viajante, conheceu muitos lugares durante sua vida. Ela saberia identificar a localidade de alguém de longe, mas talvez não soubesse descrever tão bem quanto o senhor.
— Aceito como um elogio.
— Com toda certeza. — Ilana sorriu. — Foi muito bom conversar com o senhor, mas eu preciso ir. Saberia me dizer onde posso encontrar um mapa?
— Há uma barraca na feira que vende artigos para viagens, lá poderá encontrar o mapa. É só seguir reto.
— Agradeço a ajuda. Até mais!
— Até, garota lobo — o comprador cantarolou, despedindo-se.
Antes de partir, Ilana encarou o senhor e sorriu achando graça do pronome que ele havia lhe dado.
Ilana seguiu pelo caminho indicado, encontrando vários mapas, mas não possuía uma única moeda ou manaquis para comprá-lo.
Em pensamento, a garota lutava com a sua promessa de que nunca mais roubaria em sua vida depois que atingisse seu objetivo de fugir com sua família. Mas talvez, Katalin tinha um pouco de razão.
Ela era uma ladrazinha de merda.
Furtar os cemitérios de Nubiamak não era uma opção, já que nos túmulos não tinha muitos objetos de valor. Então acabou se rendendo a roubar dos vivos.
E assim Ilana permaneceu por alguns dias, levando o costume de sua antiga vida para conseguir sair de Tahagul, furtando pequenos objetos e os vendendo para o comprador que conheceu. Ilana desconfiava que ele sabia que os produtos que ela vendia não a pertencia, mas era algo que estava beneficiando os dois, então por consequência, se tornou cúmplice dela.
Quando finalmente juntou dinheiro suficiente para comprar uma passagem para Montuália, Ilana deu fim aos roubos, dessa vez prometendo de corpo e alma que não roubaria nunca mais.
O dia da viagem prometia ser um dia ensolarado, os tripulantes preparavam o navio para a viagem, os passageiros, estavam empolgados em conhecer novas terras, outros, com a saudade imensa de casa assim como Ilana.
A garota lobo estava próximo ao local da embarcação, apenas aguardando o aval do capitão do navio para todos subirem a bordo, enquanto isso, ela resolveu dar uma volta na praia.
Ilana pisou na areia fria e fofa, que fez cócegas em seus pés, jamais havia visto uma praia tão de perto, apenas em quadros espalhados por sua casa e dos relatos de sua mãe. Imaginou como Airam reagiria ao poder moldar a areia como quisesse com apenas um pouco de água, e não resistindo a curiosidade, colocou um pouco da água do mar na boca para ter certeza de que era realmente salgada.
Ilana deu risada sozinha cuspindo toda a água que tentou beber. Se sentia como um bebê em euforia descobrindo o mundo ao seu redor.
Sem se importar muito com as pessoas ao seu redor, Ilana começou a rodopiar. Fazia muito tempo que ela não se sentia tão bem, e se permitiu cantarolar também. Em poucos dias encontraria sua família e tudo estaria novamente bem.
— Sua alegria está me contagiando também, garota lobo! — O comprador disse ao se aproximar de onde Ilana estava, ela para imediatamente de rodar, surpresa com a presença do senhor.
— Como sabia que eu estaria aqui? — questionou, um pouco envergonhada de ter alguém conhecido a vendo fazer bobagens.
— Você mencionou que pegaria o próximo navio com o destino para Montuália.
— Ah, é verdade! — Ilana coçou a cabeça lembrando do fato. — Veio se despedir?
— Sim, apesar da sua falta de consideração em partir sem me dizer nada — o homem fez uma expressão teatral de descontentamento.
Ilana aproximou-se dele, lhe dando um inesperado abraço, em questão de tão pouco tempo, o comprador havia lhe oferecido ajuda, talvez no fundo ele soubesse das razões para Ilana ter agido de forma errônea, e mesmo assim não fez nada para prejudicá-la, alguém que a soube ler sem precisar invadir sua mente ou chantageá-la, Ilana tinha apenas gratidão pelo comprador.
— Obrigada por oferecer aqueles pãezinhos no café da manhã, eu estava morta de fome.
— E obrigado por comer aqueles pãezinhos por mim, eles eram horríveis!
Ilana deu uma gargalhada. Não eram tão ruins quanto ele falava.
— Boa sorte na sua viagem, espero que chegue em segurança em casa. — O comprador segurou a mão de Ilana, depositando um beijo no dorso, a jovem repetiu o mesmo gesto, evidenciando que respeitava o comprador da mesma forma que ele a respeitava.
— Espero que algum dia você consiga visitar Montuália. Garanto que irá gostar.
— Sem sombras de dúvidas. Agora acho que está na hora de partir — apontou para o navio, onde os passageiros já estavam se organizando para embarcar.
— Ops, é mesmo!
Toda atrapalhada, Ilana correu em destino ao navio, ao longe, acena para o comprador. Mas queria saciar sua curiosidade.
— Ei! — Ilana berrou, chamando a atenção do homem. — Como o senhor se chama? — ela perguntou mesmo sabendo que estava rompendo o trato dos dois em não saberem o nome um do outro.
O comprador murmurou algo incompreensível para Ilana, que perdeu a chance de descobrir seu verdadeiro nome, restando apenas na sua memória o sorriso alegre que ele carregava e da breve amizade que construíram.
Ilana comia lentamente, saboreando uma das refeições oferecidas a bordo. Era um alimento meio borrachudo mas apetitoso, o molho dava uma suculência indescritível e acompanhado de um bom vinho tinto tornava uma das melhores refeições que Ilana comeu naquela semana.
Se permitindo relaxar um pouco, a jovem tomou mais algumas taças de vinho, sentindo o corpo aliviar toda a tensão que havia vivenciado por todo aquele tempo. Queria desfrutar daquela sensação mais e mais vezes.
Porém, o relaxamento não durou. Logo após a refeição, uma náusea intensa subiu por sua garganta. O enjoo a pegou de surpresa, e o balanço constante do navio não ajudava. Saindo apressada de sua cabine em busca de ar fresco, Ilana foi até o convés, onde a brisa fria a ajudou a retomar o controle.
Pretendia retornar à cabine, quando viu de relance um vulto, pálido, tão etéreo que parecia flutuar, desaparecendo nas sombras. O coração de Ilana disparou, mas ela, ao invés de se esconder, decidiu seguir a figura misteriosa.
Cada passo que dava parecia a conduzir mais fundo em uma sensação de desorientação. O navio, antes acolhedor, agora tinha algo de errado. O ar parecia mais pesado, os sons mais distantes. A figura continuava a aparecer e desaparecer, brincando com sua mente, a levando por corredores escuros e estreitos.
Quando Ilana finalmente desistiu da perseguição, a figura surgiu de frente para ela. Era uma mulher. Não, uma sereia, com beleza cruel e aterradora. Sua pele cintilava como mármore sob a luz fraca, e seus olhos, brilhantes e sem vida, a encaravam fixamente. Antes que Ilana pudesse reagir, a sereia desapareceu como uma fumaça.
— Eu não deveria ter bebido tanto — Ilana esfregou as mãos nos olhos, afirmando o efeito do álcool em seu organismo.
O navio começou a balançar cada vez mais violentamente, as ondas, que antes lentas, cresciam golpeando com força contra o casco do navio.
O céu ensolarado, escureceu em questão de segundos, como se a noite tivesse caído abruptamente, e as nuvens se aglomeraram acima do navio, anunciando uma tempestade que estava por vir. O vento uivava, fazendo as velas estalarem se contorcendo como bandeiras em guerra.
Ilana pressentiu que havia algo errado ali, o corpo inerte por conta do álcool, mas a mente lutando para estar em alerta para o que poderia vir.
A tripulação ao redor dela estava agitada, correndo de um lado para o outro para estabilizar o navio, mas Ilana estava cada vez mais distante da realidade, como se estivesse presa em um transe.
Então, uma voz serena, quase murmurando pareceu vir de todas as direções ao mesmo tempo. Ilana tentou ignorá-la, mas a voz se intensificava, preenchendo sua mente com palavras incompreensíveis. Seu corpo começou a tremer, não de frio, mas de uma energia que subia pela sua espinha como um serpentear de uma cobra.
Algo estava querendo expelir de seu corpo, como se sentisse a necessidade de extravasar todo seu poder. Ilana caiu de joelho no chão, sentindo uma dor atravessar sua cabeça como uma flecha. Tudo ao seu redor começou a parecer distante, como se estivesse enxergando tudo através de uma neblina. Ao tentar movimentar seu corpo contra essa força que a consumia, Ilana percebeu que perdeu o controle sobre o próprio corpo, tornando-se um fantoche da força que a dominava.
A entidade havia se apoderado dela.
A tripulação observou com horror a mudança de semblante de Ilana, ela estava com um sorriso predatório em seu rosto e os olhos brilhavam em um roxo intenso e sobrenatural.
Com uma sede exacerbada por almas, a entidade controlou Ilana até a proa do navio, o vento e a chuva rugiam, mas não parecia surtir efeito na garota. A entidade de dentro dela ergueu os braços, intensificando as águas ao seu redor, o mar a respondeu, elevando as ondas a uma altura assustadora, um tsunami estava prestes a vir, ameaçando cada vida presente naquele navio.
Ilana perdeu o controle total sobre suas ações, mas estava sã sobre tudo que acontecia ao seu redor, conseguia sentir o desejo da entidade em sacrificar vidas, do medo dos tripulantes que lutavam para salvar não somente suas vidas mas também a dos passageiros.
Queria lutar contra a entidade, todavia, ela era muito mais forte.
Crysha, a entidade, explodiu um grito primal acompanhado de uma risada maligna, ela se apoderava do medo, e prolongaria o sofrimento daquelas pessoas se fosse necessário.
O mar açoitava o navio sem piedade alguma, as paredes titânicas de águas cresciam cada vez mais, alcançando o nível das nuvens no céu.
Os tripulantes gritavam de pavor, tentando desesperadamente segurar-se em qualquer coisa, mas a força das águas era implacável.
O navio começou a subir, sendo arrastado pelas ondas, que se erguiam mais e mais, a entidade quebrou as ondas, fazendo-a desabar com força cataclísmica sobre a embarcação, que se partiu ao meio, levando os corpos ao mar.
A água fria e furiosa engoliu o navio inteiro, afogando os gritos de agonia da tripulação e passageiros, os corpos descendo para o fundo do mar, enquanto as almas se desprendiam de seus corpos, alimentando a entidade com a sua essência, fortalecendo-a.
Tudo ao redor dela desmoronava, mas Ilana não era poupada da visão, forçada a assistir enquanto as vidas se perdiam.
Aos poucos, Ilana foi tomando controle do próprio corpo, como se tivesse se desprendido da entidade, ela sentiu a garganta e os pulmões arderem com a água fria e salgada invadindo-os.
A garota tentou focar na tarefa de encontrar qualquer coisa que pudesse usar para se salvar.
Dos destroços do navio que flutuavam sob o mar, Ilana avistou um pedaço de madeira grande o suficiente para comportar seu corpo e a manter submersa.
Seus músculos estavam exaustos, mas reuniu forças para nadar até ele, puxando-se para cima enquanto a água gelada escorria por sua pele.
O mar entra em calmaria, como se tivesse saciado sua sede por destruição, o sol surgia tímido no horizonte e tudo parecia voltar ao normal parecendo um simples sonho.
Exceto pelos corpos que emergiram do mar, flutuando ao redor de Ilana, indicando a fatalidade que havia acontecido.
O frio penetrava seus ossos, mas não era isso que a aterrorizava. A presença da entidade ainda vibrava dentro dela, um peso opressor que se recusava a abandoná-la. Cada movimento seu era um lembrete de que ela não estava sozinha em seu próprio corpo, que a qualquer momento poderia perder o controle novamente.
Tamar, província de Tahagul
— Eu fodi com tudo!
Ilana acariciava distraidamente a pelagem amarronzada do jumento Coragem, sentada no gramado em frente a casa de Andras, não possuía culhão para conversar novamente com os feiticeiros. Tinha a plena certeza que assim que contasse tudo que aconteceu ouviria um "eu bem que te avisei", e não era algo que gostaria de ouvir em um momento como aquele.
Seu corpo ainda tremia e o coração apertava à medida que relembrava cada detalhe do acidente do dia anterior. Aquele de fato foi o dia que ela mais sentiu medo em toda sua vida, mas não foi o medo de morrer, mas sim de si mesmo, do tamanho estragado que poderia fazer, no caso, a entidade.
Ilana estava descrente quando contaram sobre Crysha para ela, e precisou provar da sua sede por almas para acreditar na história. Se arrependeu instantaneamente em ser tão teimosa e ter fugido, os feiticeiros sabiam muito bem o que estavam fazendo, mas ela desacreditou.
Sabia que não poderia retornar tão cedo para casa, sua família corria perigo estando perto dela, e precisou adiar esse desejo, até tudo voltar a normalidade. Por isso decidiu retomar a Tamar, dessa vez mais maleável com a decisão dos feiticeiros sobre seu destino.
Sentada ali, as palavras de desculpa formavam-se em sua mente. Como pedir perdão a Andras e Téça? E se eles a rejeitassem? O peso da possível recusa era quase insuportável.
No horizonte, uma figura loira se aproximava. Katalin. Mesmo à distância, a feiticeira já sentiu a presença da entidade presa dentro de Ilana. Virando-se para ela, Katalin deixou escapar uma provocação venenosa:
— E volta o cão arrependido.
— É um desprazer te ver novamente, Katalin — Ilana disparou de volta, em um tom ácido.
— Se voltou, alguma coisa séria deve ter acontecido. Acertei?
— Onde está Andras, preciso conversar com ele. — Ilana cortou o assunto, não queria dar a vitória para Katalin e dizer que ela tinha razão.
Mas Katalin já sabia do que aconteceu, conseguia ouvir os gritos de desespero das almas dos tripulantes ecoando por sua cabeça, e isso não contava como uma vantagem para ela.
— Sinceramente? Acho que você retornou em uma péssima hora, Andras não está em condições de resolver mais um problema. Por isso, já vou logo avisando, se tiver que atrapalhar, dá meia volta e resolva seus problemas sozinha.
— O que aconteceu com ele? — Ilana mal disfarçou a inquietação.
— Quer dar uma espiada?
Ilana seguiu Katalin até o casebre, atravessando a porta que jurava que nunca mais entraria, tudo parecia perfeitamente no lugar, exceto por Andras, que carregava um semblante deploravelmente triste, sua aparência não era a das melhores, o jovem que andava com as roupas perfeitamente alinhadas e os cabelos arrumados, estava despenteado e não parecia ter tomado banho recentemente.
— Olha quem voltou! — Katalin anunciou a chegada da garota, Andras levantou o olhar, mas não parecia se importar.
Ilana engoliu em seco, sentindo o peso da culpa recair em seus ombros.
— Andras... — Ela se aproximou, receosa, sentando-se no sofá ao lado de Andras. — Me perdoe por ter fugido. Agora, eu entendo tudo o que me alertaram.
— Não importa mais — Andras estava sério, e sequer olhava para o rosto de Ilana. — Faça o que lhe der vontade.
— Se não quiser que eu fique por aqui, irei embora, tá bom? Mas por favor, apenas me dê o seu perdão.
O feiticeiro olhou de soslaio, de fato ele não se importava mais com qualquer decisão que Ilana fosse tomar, nem com a sua fuga, havia uma dor maior o consumindo.
— Tá perdoada.
A frieza nas palavras deixou Ilana atônita, Andras não era assim, algo errado havia acontecido.
— O que está acontecendo com você? — Ilana se permitiu acariciar o rosto do feiticeiro, sentido a barba por fazer pinicar seus dedos.
Andras deu um profundo suspiro para segurar as lágrimas que teimam em cair de seus olhos, relembrar a sua dor era um fardo até mesmo para ser dito em voz alta.
— Minha mãe... Ela desapareceu desde a noite que você fugiu.
A garota parou imediatamente de fazer carinho em Andras, chocada com a sua revelação.
— A Téça foi sequestrada? — Sua voz subiu alguns tons acima do normal. Era algo impossível, Téça era poderosa demais para alguém capturá-la ou até mesmo matá-la. — Não pode ser verdade.
— O menino está quase em estado de decomposição, e você ainda duvida? — Katalin se intrometeu na conversa, indignada com a descrença de Ilana.
— Katalin, dá um tempo, por gentileza? — Andras solicitou, passando a mão pelos cabelos, sentindo-se mentalmente exausto.
— E quem foi que fez isso? Precisamos ir atrás dela — Ilana se agitou.
— Certamente foram os homens mascarados que Enver contou — Andras afirmou. — Já rodamos Tamar inteira em busca dela e nada. Estou perdendo as esperanças.
Ilana sentiu seu estômago afundar. A notícia sobre o desaparecimento de Téça parecia irreal, impossível de processar. Como uma mulher tão poderosa, que parecia invencível, poderia simplesmente desaparecer? Sua mente girava em busca de uma solução, mas as palavras de Andras, o desespero em sua voz, esmagavam qualquer ideia que surgisse. O silêncio se estendeu por longos segundos, até que ela encontrou forças para falar.
— Andras... nós vamos encontrá-la. Não importa o que aconteça — disse, com a voz mais firme do que sentia por dentro.
Ele riu amargamente, um som seco que fez o peito de Ilana apertar ainda mais.
— Você não entende. Procuramos em todos os cantos de Tamar. Vasculhamos cada beco, cada floresta, cada pedaço de terra. Ela se foi, Ilana. Eles levaram minha mãe, e não temos mais pistas. Nada.
Ilana se aproximou mais, sentindo a necessidade de oferecer algum consolo, por menor que fosse.
— Eu sei que parece impossível agora, mas... você sabe que Téça é forte. Se alguém pode resistir a eles, é ela. Não vamos desistir até encontrá-la.
Katalin, que até então observava em silêncio, cruzou os braços, impaciente.
— Que mente genial!— A feiticeira disse com sarcasmo. — Todos nós queremos a mesma coisa, mas quem dera fosse tão simples. E agora sem ela, você e essa entidade são um problema muito maior. Téça estava contendo o poder dela. — Seus olhos se estreitaram. — Crysha é uma ameaça, Ilana. Quanto tempo até você perder o controle e colocar muito mais vidas em risco?
A memória da destruição do navio ainda estava fresca, o que fez seu corpo estremecer. Não podia negar o poder obscuro pulsar dentro de si.
— Eu sei que Crysha é perigosa... — Ilana começou, a voz vacilando. — Mas foi um acidente. Eu não quis... não quis que aquilo acontecesse. Eu vou controlar isso. Vou controlar ela.
— Controlar? — Katalin zombou. — Você mal sabe controlar as próprias emoções, quem dirá uma entidade. Só sabe agir como uma menina mimada em busca de atenção.
— Olha só como fala comigo — Ilana fechou os punhos, dando um soco contra o estofado. Apenas provando a fala de Katalin.
Andras, que até então parecia alheio, tentou amenizar as emoções das garotas.
— Katalin... basta — disse ele, a voz baixa, mas carregada de autoridade. — Ilana não escolheu isso.
Katalin bufou, frustrada, mas se deu por vencida, descruzando os braços.
— Tudo bem. Mas vocês precisam resolver isso rápido. Não temos tempo a perder.
Ilana assentiu, mas sua mente estava longe. Dentro dela, Crysha permanecia silenciosa, mas sua presença era como uma sombra constante, sempre à espreita, esperando o momento certo para tomar controle novamente. "E se não conseguisse controlá-la? E se, da próxima vez, não houvesse volta?"
— Andras... — ela começou, hesitante. — Se algo acontecer... se eu perder o controle de novo, você precisa prometer que fará o que for necessário. — Seus olhos se fixaram nos dele, pedindo mais do que palavras. — Não deixe que eu machuque mais ninguém.
Andras desviou o olhar, claramente desconfortável com o pedido.
— Ilana... não fale assim.
— Eu estou falando sério! — Ela insistiu, sua voz ganhando urgência. — Você sabe o que Crysha é capaz de fazer. Se eu me tornar um risco, você tem que acabar com isso. Acabar comigo.
O silêncio caiu pesado entre os três. Katalin olhou de soslaio, mas Andras permaneceu quieto, lutando contra o peso daquela promessa impossível. Ele sabia o que ela estava pedindo. Sabia o que significava.
— Não posso fazer isso.
— É simples, faça como no dia que a entidade me possuiu, mas dessa vez acerte o raio na minha cabeça.
— Tudo bem — disse ele, por fim, a voz fraca. — Eu prometo.
Mas Ilana sabia que, no fundo, ele não acreditava que teria a força para cumprir. A dor em seus olhos diziam tudo. Ela sabia que, quando chegasse a hora, ele hesitaria — e isso poderia custar caro.
— E você, Katalin, se ele vacilar, garanta que eu nunca mais retorne à vida. Prefiro morrer ao ter que carregar o peso de milhares de mortes pelos dias que me restam.
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