Capítulo X - Progênie
3061 palavras
Fynera, província de Indifell
O sol mal havia surgido no horizonte e o clima de tensão já pairava no ar. O campo de treinamento estava repleto de jovens ansiosos, as pernas balançantes, as mãos suadas e as unhas roídas dos novos possíveis soldados deixava isso ainda mais explícito.
Era chegada a época em que novos rapazes e moças eram escolhidos para compor o exército de grandes guerreiros. Um motivo de orgulho, tanto pelo lado pessoal e profissional, quanto o familiar. Era mais que um sonho, era a garantia de uma estabilidade financeira, além de poder dizer com orgulho que faziam parte do batalhão de renomados capitães, tenentes e generais.
Entre os jovens, o Capitão Ravish, cujos os passos firmes e olhar atento não deixava transparecer as memórias que lhe inundavam. Lembrava-se perfeitamente bem de como se sentiu em seu primeiro dia, estava nervoso e incerto do que o aguardava. Apesar de ser filho do ex marechal Zomungard, o que não era um artifício que lhe dava vantagem, estava ali disputando seu espaço de igual para igual, não se isentando da responsabilidade de estar entre os melhores para ingressar no exército em que seu pai fez história no passado.
Ele se permitiu um sorriso, quase imperceptível, o sentimento de saudade era o que vinha à tona, pelos dias de simplicidade, quando suas maiores preocupações eram passar nos testes e impressionar seus superiores, agora, um pouco mais maduro, ciente de toda sua jornada que o transformou no líder que era hoje, forjado pelo fogo do dever e pelo aço da disciplina.
— Atenção. Formem filas! — Sua voz ecoou com autoridade, trazendo todos a sua volta para o presente. Os recrutas rapidamente retomaram sua postura e um silêncio palpável se abateu sobre o grupo. O Capitão Ravish voltou a caminhar entre os recrutas, seus olhos avaliando cada um dos futuros soldados. — Este será o dia mais importante de suas vidas — ele começou, sua voz firme e inspiradora. — O dia em que vocês decidirão o tipo de soldado que querem ser. Lembre-se, não é apenas a força e habilidade que faz um soldado; é a coragem, o sacrifício e, acima de tudo, ter um compromisso inabalável com os valores que defendem.
Ravish deu uma pausa, buscando as melhores palavras para incentivar os recrutas.
— Vocês estão aqui para se tornarem mais do que soldados — ele disse, olhando nos olhos de cada um. — Vocês estão aqui para se tornar guardiões da paz, defensores da justiça e emblemas da honra, e eu estarei aqui, a cada passo do caminho, para garantir que cada um de vocês alcance esse ideal. E lembrem-se, a única coisa que separa um soldado de um capitão é o presente e o futuro. Vocês são o nosso futuro, futuro esse que irá hastear a bandeira de Indifell em nome da honra e da glória.
O discurso inspirador de Ravish amenizou o clima de tensão, os jovens se sentiram esperançosos, preparados para dar seus primeiros passos em direção ao destino que os aguardava.
O campo de treinamento era um vasto terreno aberto, a grama estava pisoteada por muitos lugares, marcada pelas botas de inúmeros recrutas que haviam passado por ali antes. Aqui e ali, alvos de prática estavam espalhados, alguns com evidentes marcas de fuligem, testemunhas silenciosas do rigoroso treinamento de resistência.
No centro do campo, havia uma série de obstáculos para testar a agilidade e a força dos soldados. Barras de escalada se erguiam imponentes, desafiando os recrutas a superarem não apenas a altura física, mas também o medo interno que poderia prendê-los ao chão.
O campo de treinamento era muito mais que um local de preparação física, era um santuário de desenvolvimento e crescimento, ali estava a cultura instaurada de Indifell. Genovah e Denoque pisaram naquele solo e fizeram história se tornando semi-deuses, posteriormente, Zomungard vestiu a farda, lisa, sem conquista nenhuma a qual se orgulhar e agora tinha uma coroa sobre sua cabeça. Ravish se propunha a seguir o mesmo destino.
O capitão permanecia com a postura perfeitamente alinhada, ombros firmes, cabeça erguida e olhar atento. O uniforme militar, sem um vinco sequer, num elegante tecido de linho num tom de azul cobalto, os distintivos e insígnias dourados reluziam no lado esquerdo do peito, e as botas impecavelmente lustradas; bem diferente dos recrutas que se encontravam enlameados e suados após acatarem as instruções do sargento, que direcionava as ordens enquanto Ravish os avaliava.
Após horas de empenho dos jovens, demonstrando suas habilidades, eles foram dispensados para uma avaliação mais assídua, o Capitão Ravish fora escalado para decidir qual daqueles inúmeros jovens iria compor ao exército.
— Com licença, capitão. — Um dos soldados do batalhão de Sigrid se aproximou do rapaz, que deu aprovação para que ele desse continuidade. — O Coronel Sigrid está aguardando Vossa Excelência em sua sala.
Ravish não entendeu o motivo de seu irmão estar lhe chamando para conversar, porém, não questionou.
— Estou a caminho. — Ravish reuniu as fichas e as colocou embaixo de seu braço.
Ele saiu do campo de treinamento e seguiu dobrando os corredores do quartel até o encontro da sala de Sigrid, o demônio deu três batidas sequenciais na porta e adentrou após a autorização do coronel.
— Sente-se. — Sigrid apresentou a cadeira à sua frente para seu irmão. O coronel mal aparentava estar em serviço, estava vestido com roupas casuais e seus longos cabelos estavam soltos, bem penteados, mas fora do que era exigido dentro do quartel, amarrados ou curtos.
— Do que se trata o assunto? — Ravish cortou qualquer tipo de enrolação que poderia estender o rumo da conversa. Ele puxou a cadeira, se sentou e apoiou os papéis em seu colo
— Avançamos nas buscas pela pessoa do retrato de Mastert Lili. — Sigrid mal conseguia disfarçar a felicidade, estava aliviado por estar ainda mais próximo da entidade e de seu objetivo.
— Isso é ótimo. Onde essa pessoa se encontra?
— Uma excelente notícia, meu caro irmão. Descobrimos que é uma feiticeira, ela está em Tahagul, não sabemos ao certo a cidade em que ela está localizada, mas estamos a um passo de descobrir onde é. — Sigrid deu um profundo suspiro de alívio e o sorriso se alargou ainda mais em seu rosto. — Além dessa notícia, tenho mais uma para te dar.
— Prossiga.
— O imperador e eu chegamos a um consenso sobre nosso próximo passo. — Sigrid amansou sua voz, preparando o terreno para a notícia que daria a Ravish. — Como seu superior, estarei te afastando de seus serviços militares temporariamente...
— Mas pra quê? — Ravish tentou disfarçar o aborrecimento em sua voz, mas falhou. O coronel ergueu o dedo indicador, solicitando uma pausa.
— Precisamos ser cautelosos com nossas decisões, não sabemos com o que ou quem estamos lidando, por esse motivo, você será infiltrado em Tahagul para nos trazer mais informações, enquanto isso, montaremos uma estratégia para tirar a entidade do controle dessa feiticeira.
— Sou um capitão, isso é uma tarefa para um detetive. Aliás, estou focado na avaliação dos novos soldados para o exército.
— Não se preocupe, irei direcionar essa tarefa para o subtenente. — Sigrid se inclinou para frente, retirando as fichas das mãos de Ravish.
O capitão ficou atônito, olhando para o retrato atrás de Sigrid, tentando assimilar a "missão maluca" que Sigrid havia elaborado. Iria se abrigar em solo inimigo, tentar se aproximar de uma desconhecida e convencê-la a passar a posse da entidade para ele. Essa missão era como um insulto para ele, anos e anos de treinamento e devoção para servir de um mero espião.
— Vocês nem ao menos me perguntaram se eu estava disposto a aceitar essa missão — Ravish contestou. — Tenho muito o que fazer pelo nosso exército, planos de melhoria e estou lutando para subir a minha patente, isso só me atrasaria. Arrumem outro para isso. Por que não você?
Sigrid levantou de sua cadeira, dando a volta na mesa, pousou as mãos nos ombros do rapaz, massageando, junto disso, palavras convincentes e de prometimento foram proferidas de seus lábios.
— Não acha que recuperando a posse da entidade não te traria uma possível ascensão? Não estou em condições para deixar meu cargo, por enquanto. Pense como se fosse uma pausa dos serviços militares, que será bem remunerada depois. Não podemos direcionar uma outra pessoa qualquer, esse assunto é sigiloso, restrito à família imperial e eles estão contando com você, principalmente eu.
— E como esperam que eu me infiltre lá? Tenho a pele acinzentada e chifres, seria descoberto na hora.
Sigrid inclinou a cabeça para o lado, com a voz mansa, porém afiada como a ponta de um alfinete, ele deu sua cartada final.
— Use uma daquelas suas habilidades que você tanto tentou esconder da gente. Confio que irá ter um bom plano até lá.
Ravish encarou seu irmão, pensando em quais segredos mais Sigrid sabia e ele achava que os escondia muito bem, e se outras pessoas sabiam que ele poderia mimetizar a sua aparência como a de um humano.
— Pense bem sobre o assunto. — O coronel se retirou de sua sala, deixando Ravish ensimesmado.
A noite envolveu o palácio com seu manto estrelado, a lua cheia banhava as torres mais altas com uma luz prateada. Dentro das muralhas de pedra, os corredores estavam tranquilos, a maioria dos habitantes já se recolheu aos seus aposentos, exceto por uma princesa, a qual o sono teimava em não aparecer.
Mastert Lili deslizou como uma sombra entre as tapeçarias que contavam as histórias de seu povo, passando por armaduras de antigos heróis que pareciam vigiar os corredores. Precisava sentir o ar fresco, a brisa da noite em sua pele. Acompanhada de uma lamparina, Mastert despistou os guardas noturnos que faziam ronda pelo local. Ciente de que os portões principais estariam cheios deles, a jovem decidiu ir pela "passagem secreta" que descobriu quando mais nova e a usava todas as vezes que era necessário.
Os corredores eram mais estreitos e as sombras mais profundas, conhecia perfeitamente bem aquele caminho, logo a levaria a um atalho para um compartimento na parede, escondido por um tapete velho e empoeirado pendurado. O vento gelado já era um sinal de que a saída estava próxima, em um pulo, Mastert Lili estava fora do palácio.
Arrependida de não ter carregado um casaco, mas sem a pretensão de voltar, ela cruzou os braços na tentativa falha de se proteger do vento que rugia forte contra seu corpo. O seu longo vestido se arrastava na areia, carregando um pouco da poeira consigo.
Mastert Lili continuou a vagar, o vento estava diminuindo aos poucos e as luzes estavam ficando um pouco mais fortes, proveniente das ondas cintilantes do mar que envolvia parte do palácio. Seu quarto ficava de frente para essa maravilha do Império de Indifell, sua ansiedade aumentava para ver de perto, por mais que pudesse andar livremente durante o dia, ver o céu no mar era mais interessante quando o sol se punha.
Mastert retirou os calçados, deixando a água gelada banhar seus pés, ela gargalhou, como se fosse a primeira vez que via os brilhos azuis contornarem seu corpo, apenas não mergulhava, pois sentiria ainda mais frio.
— Por que não me surpreende você desobedecer o toque de recolher? — A voz de Zomungard preencheu o ambiente, mesmo em um local aberto. Mastert Lili se assustou e virou-se abruptamente, quase caindo no mar. Ela se equilibrou, deixando apenas a barra de seu vestido e de suas mangas molharem.
Com um leve tom de deboche em sua voz, ela o confrontou.
— Vossa Majestade não está obedecendo a própria regra, a qual criou.
Se os seus irmãos a vissem falando desse jeito com o próprio pai, saberiam que ela levaria um castigo, se sua mãe soubesse disso, lhe daria um sermão e a seguiria por longas semanas até se comportar bem novamente. Pelo contrário, Zomungard não só apenas riu, como gargalhou escandalosamente.
— Saia da água, garota, ninguém quer vê-la doente!
— Está parecendo a vovó. — Mesmo contrariada, Mastert Lili caminhou para fora do mar. — Esse palácio é gigantesco. Como ainda consegue me encontrar?
— Eu sou seu pai, te conheço perfeitamente bem. — Zomungard passou o braço em volta do corpo pequeno e magro de sua filha, tentando a proteger do frio. — Você poderia simplesmente se teletransportar do seu quarto para cá, mas prefere passar por aquele beco mofado e empoeirado e fugir.
Na realidade, uma das coisas que Mastert Lili ansiava, além de visitar aquela praia, era a adrenalina que sentia por estar fazendo algo que não deveria. A vida dentro daqueles muros era pacata demais, sem nenhuma emoção e ser uma altaneira não era algo gratificante para ela, desobedecer algumas regrinhas tirava um pouco da monotonia de seus dias.
— Pensei que não soubesse daquele esconderijo.
— A segunda coisa que mais conheço, depois da minha família, é o meu palácio. Não duvide que tenha um único lugar que eu não já tenha visto.
— Mas o senhor é tão grande, papai, como consegue passar naquele corredor?
— Um dia também já fui magrelo igual a você — Zomungard relembrou, fazendo com que Mastert ficasse emburrada, fingindo estar ofendida com a brincadeira do pai.
— Sai. — A garota tentou empurrar Zomungard, sem sucesso, quem saiu do lugar foi ela. O imperador novamente riu e se sentou na areia, se permitindo uma única noite desobedecer a própria regra que criou.
— Sente-se, vamos apreciar um pouco do presente que a Mãe Natureza nos deu.
Mastert Lili se sentou ao lado de seu pai, balançando seu corpo de um lado para o outro, estava feliz por ele estar compreendendo um pouco do seu desejo.
Zomungard passou as mãos pelos longos cabelos de sua filha, era uma das coisas mais belas que ele achava em Mastert Lili, traço que havia herdado de uma de suas esposas. O imperador pegou uma das mechas, tentando fazer uma trança.
— É mais bonito ver aqui de perto do que apenas da janela — Zomungard comentou, quebrando o silêncio.
— É disso que eu estou falando.
Mastert Lili sabia que seu pai iria embolar todo seu cabelo na tentativa de fazer uma trança. Ele até conseguia fazer no começo, mas pelo comprimento longo de seu cabelo, ele se perdia e o embaraçava, porém a garota não ligava, o deixava acreditar que estava fazendo um bom trabalho.
Gostava de passar aquele tempo com o próprio pai, que por mais atencioso que fosse, não conseguia se dedicar cem por cento para todos os filhos todos os dias, além de dividir seu tempo com os deveres do império, ainda tinha suas esposas.
Era comum elas disputarem entre si em busca de quem ganharia mais atenção e, mesmo que tentasse disfarçar, Zomungard possuía suas preferidas. Isso se transformava em um palco para rivalidade, até o ponto de uma querer matar a outra, o que aconteceu com a mãe de Sigrid, que foi envenenada por uma das concubinas, essa, recebeu a punição de ser queimada ainda viva pelo crime que cometeu, servindo de lição para as outras. Haviam suspeitas de que aconteceu o mesmo com a imperatriz antecessora de Sulam, mas eram apenas boatos, já que décadas depois de sua morte não encontraram vestígios e nem suspeitos. Por esse motivo, a imperatriz Sulam era fortemente protegida, possuindo guardas ao seu dispor até no momento de seu descanso.
Não era diferente com seus filhos, apenas não tiveram notícias de que um irmão matou o outro, mas a rivalidade era a mesma. Para agradar o imperador, alguns deles se alistavam para o exército sem ao menos ter vontade ou vocação para aquilo, apenas para agradar o pai, ou para gerar um tipo de identificação com Zomungard, para aproximá-los ainda mais do trono.
Se fosse como outros impérios, que decidiam o próximo imperador sendo o filho primogênito, seria mais simples. Ravish seria o sucessor, mas Zomungard escolheria a dedo, o que os deixou aflitos, até o momento de um descuido, onde rumores surgiram de que os cotados para usar a coroa seriam Ravish ou Sigrid.
Mastert Lili não se importava em chamar a atenção de seu pai, de todos os irmão, ela só ficava na dela fazendo o que gostava, sem se importar se agradaria Zomungard ou não. Mesmo com as duras cobranças de sua mãe, a moldando para se tornar a princesa perfeita, a submetendo a aulas extremamente cansativas que afins aos hobbies ou interesses do imperador. Mastert dizia sem receio para seu pai que seus gostos pessoais eram um desafio de luta contra o tédio, Zomungard não se importava, ela ao menos estava sendo sincera, gostava disso.
— Hora de dormir, minha princesa — o imperador anunciou, acabando com o breve momento entre pai e filha.
— Só vou porque pediu educadamente. — Mastert Lili se levantou, em seguida ajudando seu pai a se erguer.
— Não pense que vai se livrar do castigo, mocinha.
Mastert Lili ficou brava, mas sabia que estava errada e aceitaria a punição.
Os dois seguiram em silêncio para o palácio, Zomungard foi para o seus aposentos e pediu para que Mastert se teletransportasse de volta para o seu quarto, seria melhor para ninguém flagrá-la e exigir que a garota fosse punida.
Ela obedeceu ao seu pai, entretanto o Deus Indifell parecia um pouco entediado em sua própria prisão e, dos esforços que ainda lhe restavam, redirecionou o teletransporte de Mastert Lili para um corredor pouco visitado e escuro, a qual as chamas das tochas tremeluziam, lançando sombras dançantes contra a parede.
Mastert Lili percebeu que eram corpos e sons estranhos saindo de um dos cômodos.
Ao se aproximar de uma porta parcialmente aberta, ela ouviu vozes baixas. A jovem hesitou, seu instinto lhe dizendo que deveria voltar, mas a curiosidade a impulsionava para frente. Ela se aproximou silenciosamente, seu coração batendo em um ritmo acelerado. Com um olhar furtivo, ela observou a cena que se desenrolava diante de seus olhos: a imperatriz, uma visão de poder e graça, em um encontro secreto com um dos guardas reais.
Entregues aos desejos da carne e da necessidade desenfreada de aliviar todo o tesão, a imperatriz e o guarda se descuidaram em não verificar se a porta estava devidamente fechada. Estando expostos ao ato de penetração e dos gemidos de prazer.
Mastert Lili se afastou, a imagem ficando gravada em sua mente. Ela sabia que o que acabou de testemunhar era um segredo que carregava o peso de um império. Agora, ela deveria decidir o que fazer com essa informação, guardar para si ou revelar a verdade, potencialmente desencadeando um escândalo que poderia mudar o curso da história do palácio.
Capítulo revisado por @euluagabriela pelo Projeto
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