Capítulo VIII - Gênese
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4694 palavras
Tamar, província de Tahagul
Ilana mal conseguia se equilibrar; parecia uma criança dando seus primeiros passos. Ela sequer imaginou que fosse necessário passar por isso. O acidente e o tempo em que ficou acamada lhe trouxeram sequelas, porém reversíveis; bastava apenas um pouco de ânimo e determinação. Era uma tarefa cansativa, mas aquele era o preço a ser pago por ter sobrevivido.
Andras era o seu apoio nessa jornada. No início, ele a segurava e guiava seus passos. Depois, ele a deixou caminhar sozinha, mas lhe deu uma bengala de madeira, já que a garota não possuía o total equilíbrio. Era assim que Ilana dedicava seus dias naquela vivenda.
— Chega por hoje — Ilana disse, sentando-se na poltrona e suspirando de alívio.
— Você desiste muito rápido. — A voz de Andras soou com um falso ar de descontentamento.
— É mais fácil quando não se tem a sensação de ter pontas de facas na sola dos pés...
— Quer que eu chame a Téça? Ela pode usar magia para aliviar a sua dor.
— Não precisa! — Ilana recusou com firmeza. — Eu não gosto do efeito que a magia causa em mim.
A magia fascinava Ilana, era algo raro em sua vida. Aquela fonte de poder inesgotável e inabalável costumava excitá-la, mas estar diante dela fez com que mudasse sua opinião. Ela sentia que Téça a estava privando de usar suas habilidades, e aliviar sua dor por meio de magia era uma forma de trapaça. Aquilo não era natural para ela. Não que a dor fosse, mas ao menos a sensação a aproximava da realidade.
Apesar de tudo, ela reconhecia que estava sendo bem tratada naquela casa. Era quase como se fosse uma hóspede, e não uma prisioneira. Em poucas semanas, ela ganhou peso, deixando de ser uma garota franzina, e sua pele havia ganhado mais cor. Os passeios matutinos entre ela e Andras só lhe trouxeram benefícios.
A convivência com o feiticeiro também mudou. Não era como fossem melhores amigos, mas se toleravam para uma boa convivência. Andras era tagarela, respondia todas as dúvidas que Ilana tinha sobre Tamar e toda a cultura que envolvia aquele lugar, mas nunca falava de si mesmo. Ilana era reservada e mal se aprofundava sobre assuntos de seu passado. Eles compartilhavam algumas histórias, mas não revelavam seus segredos.
Com o passar dos dias, Téça se tornou cada vez mais ausente. Ela só aparecia ao entardecer e logo se trancava em seu quarto. Ilana não sabia o que ela fazia o dia todo para mal ter tempo de ficar em casa. Achava curioso que Andras cuidasse dos afazeres domésticos, enquanto Téça saia por aí. Mas ela tinha que admitir que Andras cozinhava muito bem.
Inclusive, aproveitou o tempo ocioso para aprender a cozinhar. Ele lhe ensinou receitas deliciosas e típicas da região, com ingredientes que ela nunca tinha visto antes. Ela se surpreendia com a fartura daquele lugar, tão diferente da sua casa. Ilana sentia saudade de seu lar e ansiava para poder voltar. Quem sabe, quando retornasse, ela pudesse preparar um banquete para comemorar o seu retorno.
Ilana e Andras sentiram a fome apertar e resolveram ir até a cozinha preparar o jantar. Mais cedo, eles haviam comprado um faisão, uma carne rara e saborosa. Caso Ilana quisesse algo semelhante, teria que dedicar o seu dia à caça, e nem assim conseguiria caçar uma ave que chegasse aos pés daquela.
Andras ficou responsável por temperar e assar o faisão, enquanto Ilana cuidava de cortar os legumes para acompanhar. Eles trabalhavam em harmonia e se sentiam cada vez mais próximos.
Enquanto cortava os legumes, em meio ao único som da lâmina da faca batendo contra a tábua de madeira, uma breve curiosidade veio à tona na mente de Ilana. Ela achava estranho o fato do rapaz sempre usar um anel de prata, com uma gema de tom vermelho opaco; devia ser algo bem significativo para o feiticeiro. Sabia que Andras não gostava de falar de seu passado, mas sua curiosidade era maior.
— Que anel bonito! — a garota elogiou, sem tirar os olhos do objeto. — Que tipo de pedra é essa? Uma jaspe, rubi, espinélio vermelho?
— Você entende perfeitamente de joias. Não é? — Andras perguntou, sem desviar o olhar do forno.
— Já te disse que meu pai é um joalheiro. Ele me passou alguns de seus ensinamentos. — Ilana mantinha a voz firme, a fim de encobrir a mentira.
— Ou está querendo roubá-lo — alfinetou o rapaz.
— Já aprendi que roubar é feio. — Ilana agiu indiferente à alfinetada que o feiticeiro lhe deu. Até umas semanas atrás, aquilo era sinônimo de ofensa, mas, com o passar do tempo, ela foi sabendo como lidar.
Andras riu.
— Você acertou de primeira. É uma jaspe.
— Tem algum significado especial? Foi presente de alguém?
— É um presente de família — Andras respondeu, sem muito entusiasmo. — Era do meu avô, que deu para o meu pai, que me deu quando eu era criança.
— Ah!
Ilana não queria que o assunto acabasse por ali, mas não tinha ideia do que perguntaria. Quando era um assunto relacionado ao seu passado, Andras se negava a contar; seu semblante mudava na hora, e ele ficava cada vez menos comunicativo. Ela pensou em mais uma forma de fazer Andras se abrir mais e teve uma ideia.
— Que tal um segredo pelo outro? O que você acha? — ela propôs. Andras permaneceu em silêncio. — Sei que está louco para saber mais sobre mim, essa é a sua chance.
— Não parece tão ruim. Mas como eu sei que você não está mentindo?
— O feiticeiro que tem poderes mentais aqui é você, saberia se eu estivesse mentindo. Já eu, não tenho garantia nenhuma.
— Não sei se mencionei a você, mas não consigo ler sua mente. Parece ter uma legião de vozes conversando ao mesmo tempo dentro da sua cabeça — Andras revelou.
— Eu sempre digo que é difícil ter uma mente barulhenta — Ilana brincou. — Voltando ao assunto. Aceita ou não?
— Pode ser. Quer começar?
Não achava que seria tão fácil. Necessitava ser o mais precisa possível, e as perguntas pareceram desaparecer justamente naquele minuto.
— O que aconteceu para você ter essa cicatriz no olho? — Ilana perguntou, sem pensar. Havia desperdiçado uma chance valiosa.
Entretanto, ela se arrependeu da pergunta assim que viu a expressão de Andras mudar. Ele ficou pálido e tenso, e seus olhos se encheram de dor.
— Quando eu ainda era uma criança, um homem muito cruel queria que minha mãe trabalhasse para ele. Téça não aceitou, e, para ameaçá-la, esse homem me sequestrou e me usou para chantageá-la. — A voz de Andras embargou, e ele respirou fundo, como se estivesse recuperando forças para contar a história. — Ele tirou uma adaga de seu bolso e, sem piedade, rasgou a pele do meu rosto.
Andras mal olhava para o rosto de Ilana enquanto contava a história, apenas girava o anel em seu dedo, como se quisesse se livrar dele.
Ilana ficou sem palavras e sentiu um aperto no peito. Ela não imaginava que a cicatriz fosse resultado de algo tão terrível. Se bem que, cicatrizes eram apenas vestígios de lembranças ruins.
— Me desculpe, eu não sabia ... — Ela tentou se desculpar, mas Andras a interrompeu.
— Agora é minha vez! — ele disse. Queria mudar o foco do assunto e fazer sua pergunta. — Qual é a sua memória mais feliz?
Ilana ficou surpresa com a pergunta; ela esperava qualquer outra coisa, menos aquela.
— É sério? — Ainda desacreditada, ela insistiu que o rapaz fizesse outra pergunta. — Sabe que pode fazer qualquer pergunta.
— Sim, e essa é a minha — Andras disse, com um sorriso gentil.
Ilana tentou resgatar em sua memória algo que a deixou verdadeiramente feliz. Ela tinha passado por diversas dificuldades em sua vida e só direcionava seus pensamentos a isso, quase não deixando os bons tomarem lugar.
Ser pedida em casamento foi um deles. Por um breve segundo, essa seria sua resposta, porém havia algo maior.
— A época em que minha mãe estava viva — com a voz suave Ilana, começou. — Especificamente, em uma de nossas comemorações nas noites de lua cheia. Ela adorava esse dia, pois era o momento em que poderia dedicar sua devoção à nossa deusa. Minha mãe se alegrava tanto com essa celebração que acabava nos contagiando também. Nesse dia foi diferente de todas as outras comemorações. Meu irmão havia nascido há poucos dias, e seria a primeira vez dele. Tudo parecia tão novo para mim, a chegada do meu irmão, meu pai ter recebido um novo cargo... Eram belos motivos para agradecer à Montuália. Lembro perfeitamente bem como ela estava vestida, os cabelos tão bem perfumados...
Involuntariamente o sorriso de Ilana cresceu, e a lembrança do passado a aqueceu.
— Deveria sorrir mais vezes, te deixa mais bonita — Andras elogiou, com sinceridade.
Ilana sentiu seu rosto queimar e voltou à expressão séria de sempre.
— Me passa o sal, por favor? — Ilana pediu, tentando disfarçar o nervosismo.
— Acabei te deixando sem graça? — Andras perguntou, com um sorriso divertido em seu rosto.
— De maneira alguma — a garota lobo negou.
Andras riu e lhe passou o sal. Ele estava gostando daquela conversa e queria continuar. Tinha mais perguntas para fazer e mais segredos para contar. Sentia que estava se aproximando de Ilana e que ela estava se abrindo para ele.
Ilana e Andras terminaram de preparar a refeição em silêncio. Ela não iria se atrever a puxar assunto depois do que Andras lhe revelou. Não conseguia imaginar o que ele tinha sofrido, sendo sequestrado e ferido por um homem cruel. Ela se sentia mal por ter feito aquela pergunta.
Eles arrumaram a mesa de jantar, que dividia o espaço com a sala de estar, e se serviram do faisão assado e dos legumes cozidos. Era uma refeição deliciosa, mas nenhum tinha apetite. Eles só ouviam o som das talheres batendo nos pratos. Andras estava cabisbaixo e com uma expressão triste. Ilana o observava atentamente, buscando uma forma de se desculpar.
Ela achava Andras um homem surpreendente. Se fosse julgá-lo apenas pela aparência, Ilana diria que era um homem bruto, sério e mal humorado. Mas, por dentro, era o oposto: um homem gentil, acolhedor e compreensivo. Se não fosse a circunstância a qual se conheceram, talvez eles pudessem ser amigos.
— Me desculpe. — Ela quebrou o silêncio. Andras levantou o olhar, parecendo cansado.
— Não foi sua culpa, não tem porque se desculpar. — O foco do feiticeiro voltou à refeição.
— Queria agradecer... tanto a você quanto a Téça, por estarem cuidando tão bem de mim — ela disse, com sinceridade.
As sobrancelhas de Andras se uniram em um misto de confusão e alegria. A garota à sua frente era um tanto, digamos, dura como um diamante, e ouvir um "obrigado" sair de seus lábios se tornou algo gratificante. Significava que não estava fazendo nada em vão. Só era preciso paciência, como sempre disse Téça.
— Disponha. — Um sorriso aos poucos surgiu no rosto do feiticeiro.
A conversa entre os dois foi interrompida quando a porta abriu com um estrondo. Téça a atravessou com pressa, seguida por uma mulher loira de cabelos longos e cacheados. Elas pareciam assustadas e nervosas e falavam sem parar.
— ... se as coisas continuarem assim, logo mais estaremos desprotegidos. — A voz anasalada da mulher tomou conta do ambiente. Até mesmo Andras e Ilana, que pegaram a conversa pela metade, ficaram preocupados.
— Me deixa pensar, Katalin. — Téça passou a mão pelos cabelos, puxando-os para trás.
— Não há tempo para pensar, Téça. É hora de agir. Concorda comigo, Andras? — A mulher loira, que Ilana deduziu ser Katalin, olhou para ele com seus olhos azuis penetrantes. Ela tinha um ar de autoridade e impaciência.
— Do que estão falando? — Andras indagou, confuso.
— A redoma de Tamar está se desfazendo — Katalin respondeu, sem rodeios.
Ilana não sabia o quão sério aquilo poderia ser, mas apenas pela expressão de preocupação que surgiu no rosto de Andras, ela pôde sentir um pouco da gravidade daquela situação.
A redoma de Tamar era uma barreira mágica que protegia aquela região de ameaças externas e, principalmente, de qualquer tentativa de invasão do imperador de Tahagul, que cobiçava aquelas terras mais do que qualquer outra. Era uma obra-prima da feitiçaria, que durava décadas.
— Só um momento. Isso é sério? — Andras pareceu ter dificuldade para digerir a informação.
— Sim, e adivinha onde? Está na fronteira de Nubiamak — afirmou a loira. — Isso para mim tem cheiro de algum plano daquele imperadorzinho fajuto. Não é possível que ele não tenha aprendido a lição que demos nele da última vez.
— Katalin, sem acusações desta vez! — Téça repreendeu. — Nós não sabemos o que está causando isso.
— Os outros feiticeiros estão cientes disso? — Andras questionou.
— Só os da velha guarda — Téça o respondeu. — Não queremos causar pânico entre os nossos. Precisamos ter certeza do que está acontecendo antes de tomar qualquer medida. A fenda nem está tão grande assim, só Katalin e eu notamos durante a ronda.
— Se precisarem da minha ajuda para fecharem, saibam que estou aqui — Andras se ofereceu, solicito.
— É isso, iremos apenas fechar, e tudo irá voltar ao normal — Téça repetiu a frase de Andras, como se fosse a mais genial a se fazer. A feiticeira estava visivelmente abalada, apesar das suas palavras dizerem o contrário.
— Só fechar? Sem investigar? — Katalin protestou. — Deveríamos saber quem está tentando invadir Tamar, depois fechamos a redoma. Se deixarem meu lado criativo agir, mostrarei para aqueles insetos quem é que está no topo da cadeia alimentar.
Um riso escapou dos lábios de Ilana, que não conseguiu se conter. A situação era deveras engraçada. A mulher à sua frente não aparentava ser nenhum pouco ameaçadora; sua aparência delicada e franzina a distanciava disso, e dizer aquela frase só a fez parecer ridícula.
— Quem é ela? — Katalin perguntou, apontando rudemente para a garota. Ela finalmente notou a presença de Ilana e não gostou do que viu.
— Sou Ilana de Bolgdra, muito prazer! — De uma forma debochada, a garota lobo tomou a frente e se apresentou.
Katalin ficou estática por um momento; seu sangue parecia ter congelado, apenas seus olhos se moviam, analisando Ilana por inteiro. A garota se sentiu incomodada com o olhar de desprezo que Katalin lhe lançou. Mal ela sabia que, em poucos segundos, apenas a observando de longe, a feiticeira havia descoberto o motivo dela estar ali.
— Há quanto tempo está escondendo ela aqui? — inquiriu Katalin, furiosa. — E até quando iria esconder isso de mim? — A loira não fazia questão de esconder sua insatisfação de ter descoberto, por conta própria, sobre a libertação da entidade, que agora se abrigava no corpo de Ilana e a encarava, como se aguardasse a caça abaixar a guarda para poder atacar. — Primeiro a redoma, e agora isso?
— Vamos para o meu escritório, lá te explico tudo — Téça disse, cansada. Não parecia ser a primeira vez que aquilo acontecia.
— Eu sei o que você está pensando. — Katalin apontou dois dedos para os olhos e os direcionou à Ilana, em um gesto de ameaça. Logo depois, ela e Téça saíram da sala de jantar.
— Ela é um amor de pessoa, deveria andar com uma coleira — Ilana ironizou, acompanhando a saída das duas feiticeiras até sumirem do seu campo de visão.
— Não fale assim da minha tia. — Andras a defendeu. — Você poderia ser um pouco menos hostil.
— Hostil? Ela que está tendo ataque de histeria sem motivo algum!
— Provavelmente ela deve ter captado algum pensamento seu.
— Pensei que meus pensamentos eram tão caóticos que ninguém poderia lê-los. — Ilana lembrou do comentário feito por Andras mais cedo.
— Mas não para ela. — Andras coçou o queixo, enquanto sua mente vagava pelo que sua tia poderia ter descoberto para se alterar tanto. De modo provável, ela havia confirmado a dúvida que estava os consumindo: a entidade estava entre eles.
— É de praxe vocês feiticeiros saírem invadindo pensamentos alheios? — Ilana chamou a atenção de Andras de volta a si.
— Vai me dizer que nunca teve vontade de descobrir algum segredo de forma rápida e eficaz? — o rapaz questionou, com um sorriso no rosto. Sabia que Ilana não resistiria. Aliás, quem resistiria? Essa era a vantagem de ser um feiticeiro mentalista.
Ao repensar em sua frase, Andras se levantou abruptamente da cadeira, deixando Ilana só, sem ao menos dizer para onde iria. Queria ouvir do que se tratava o assunto que Téça e Katalin falavam.
Ele encostou o ouvido contra a madeira em frente ao escritório de Téça, apurando sua audição para não perder nenhum detalhe.
— ... por isso anda tão cansada. Está constantemente usando magia sem uma pausa sequer. — A voz de Katalin soou em um tom de repreensão. — O que vai fazer quando estiver exausta? Como irá se defender se ela decidir atacar?
Uma das desvantagens de um feiticeiro era que a magia lhe causava exaustão física e, às vezes, psicológica. Por mais que o feiticeiro estudasse ou aprimorasse seus poderes, uma hora ou outra o cansaço vinha à tona. Era inevitável mesmo em meio a poderosíssimos usuários de magia.
— Você anda agindo de forma imprudente, Téça — Katalin continuou. — E está querendo fazer tudo sozinha.
Téça deu alguns passos até a cadeira e a arrastou para poder se sentar. Ela apoiou os cotovelos na mesa, e seu rosto repousou sob suas mãos.
Um profundo e demorado suspiro saiu de seus pulmões. Téça não era a mesma de antigamente, a responsabilidade de ser a líder dos feiticeiros de Tamar estava se tornando um fardo para ela. Apesar de contar com ajuda de sua irmã e dos conselheiros da velha guarda, a responsabilidade, no fim, era jogada em suas costas, sendo ela boa ou ruim.
Quando foi escolhida para assumir o cargo, Téça aceitou de bom grado e jurou, até o fim de sua vida, servir e proteger o povo de Tamar. Aquilo lhe dava uma satisfação profissional; entretanto, havia se revertido em um grande peso. Não imaginava que a população de feiticeiros iria crescer em grande escala e que muitos iriam discordar de seus ideais, voltando-se aos poucos contra ela.
A libertação da entidade foi o ápice para Téça. Estar com Ilana poderia ser perigoso para si, para Andras e até mesmo para seu povo. E não saber com o que estavam lidando só piorava a situação. O medo de estar diante de uma entidade capaz de parar um deus se tornava excruciante.
E, para terminar de exaurir Téça, a redoma estava com uma sutil abertura, que não possuía uma origem concreta. No momento havia apenas duas hipóteses: ou ela estava se desfazendo com o passar das décadas através de uma força natural ou as suspeitas de Katalin sobre o Imperador de Tahagul estar tentando invadir Tamar eram reais...ainda não era possível saber.
Não queria que aquele momento da história se repetisse novamente. Os feiticeiros haviam criado a redoma no intuito de se protegerem das ameaças externas, já que eram procurados, caçados e executados por aqueles que se consideravam superiores a eles.
— Eu mal sei por onde começar — declarou Téça, com a voz trêmula.
— Estou aqui para te ajudar, irmã. — Agora, num tom de voz calmo, Katalin se aproximou de Téça. — Você só está um pouco perdida, mas sei que a velha Téça está aí escondida e saberá como agir diante dessa situação. — Ao apoiar sua cabeça na de Téça, os cachos loiros se misturaram aos cabelos escuros de sua irmã. A mão de Katalin migrou até o rosto da feiticeira, acariciando sua face.
— Sei que vamos conseguir, sempre demos um jeito. — A mão esquerda de Téça foi ao encontro do braço de Katalin, e juntas elas se aconchegaram uma na outra.
Quando a conversa cessou, Andras correu de volta para a sala, tentando disfarçar, recolhendo a louça da mesa. Era algo infantil de sua parte? Sim, mas a curiosidade havia sido maior.
— Ouvindo a conversa alheia, Andras? — Ilana o provocou.
— Shiu! — O feiticeiro olhou algumas vezes para a porta, conferindo se não tinha ninguém. — Fique de boca fechada sobre esse assunto, e te dou uma recompensa depois.
— Se acha que vou te obedecer igual um lobo domesticado, está muito enganado. — Ilana mostrou a língua para Andras, que revirou os olhos com o comentário da garota.
O som dos calçados das feiticeiras aumentou conforme elas se aproximavam da sala. Andras fingiu estar focado em sua tarefa, e Ilana o acompanhou.
— Para onde estão indo? — Andras perguntou.
— Iremos resolver o assunto sobre a redoma — Téça respondeu, sem muitos detalhes.
— Posso ir junto? — o feiticeiro pediu.
— Não! — Téça prontamente negou. Não queria envolver seu filho em seus problemas. — Quero que fique aqui cuidando de Ilana.
— Ela não vai fugir — Andras contestou. — Ela mal anda!
— Justamente por isso, precisa ajudá-la., Deixa que resolvemos essa questão. Beijo, se cuidem. — Téça se despediu e, junto de Katalin, as duas atravessaram a porta.
Andras bufou ao se sentir contrariado. Não entendia o que sua mãe tanto tentava lhe esconder. Ela quase não se aprofundava sobre os assuntos relacionados à sua liderança. Andras não era mais uma criança, já tinha noção da gravidade dos problemas e sabia como resolvê-los. Só queria ajudá-la, mas Téça nunca dava o braço a torcer, guardando tudo para si.
O feiticeiro se locomoveu até a porta, retirando um sobretudo do gancho.
— Não está pensando em sair e me largar aqui sozinha, né? — Ilana reclamou, ao ver Andras segurando a maçaneta.
— Se acha que vou ficar aqui sendo sua babá, pode esquecer.
— Sinceramente? Eu não me importo. — Deu de ombros. — Só seja esperto e não seja pego pela mamãe. Caso contrário, ela vai te pôr de castigo. — Ilana deu uma piscada de olhos, deixando Andras levemente irritado.
Andras saiu às pressas para poder acompanhar as feiticeiras. Para não ser reconhecido, usou da magia envolta no capa, que alterava sua aparência. Assim, poderia segui-las sem elas ao menos desconfiarem.
Téça e Katalin finalmente haviam chegado até a fenda. A redoma não impedia a passagem dos feiticeiros por conta do DNA que carregavam. Qualquer outra criatura, exceto animais, que tentasse atravessar não conseguiria; a redoma automaticamente bloqueava a passagem. Apenas alguns feiticeiros possuíam o conhecimento para conceder a entrada de outras criaturas. A redoma não era vista a olho nu, era como se não existisse, mas qualquer alteração a deixava aparente; no caso, ela ficava luminescente onde fora atingida.
Elas estavam acompanhadas de um dos conselheiros da velha guarda. Era um senhor muito sábio, apesar de não ser muito poderoso em questão de magia. Enver era o seu nome. Carregava uma aparência cansada, com olheiras abaixo de seus olhos e barba ainda por fazer.
Téça atravessou a redoma, observando o cenário ao seu redor. Aquele ponto não ficava muito distante do palácio de Tahagul; apenas alguns minutos de caminhada eram necessários para chegar até lá. Lugar o qual lhe trazia péssimas lembranças.
— Agora me diga, é coincidência esta abertura estar logo aqui? — Katalin indagou ao velho conselheiro, apontando em direção ao palácio.
— Não acho que foi o imperador Colomano quem fez isso — o senhor afirmou, observando minuciosamente a fenda.
— Para mim, chega de achismo. Quero provas consistentes — Téça se pronunciou. — Duvido que Colomano faria algo do tipo.
— Como não? Ele também tem feiticeiros do lado dele. Quem garante que não usou um deles para isso? — Katalin rebateu.
— Uma pessoa megalomaníaca como ele não faria algo tão "sutil" apenas para incomodar-nos — Téça respondeu. — A não ser que ele queira desviar o nosso foco de outro plano dele.
Katalin abriu um leve sorriso ao saber que estava com a razão. Sabia que sua desconfiança não era em vão. Sua intuição estava gritando sobre algum mal que poderia acontecer muito em breve.
— Enver, precisamos reunir os conselheiros da velha guarda. — Téça começou a instruí-lo. — Colocaremos feiticeiros em pontos estratégicos de Tamar, e não quero esses pontos vazios de forma alguma. Irão revezar durante as vinte e quatro horas. Enquanto isso, reuniremos uma equipe para investigar o lado externo da redoma e o que está levando a isso. Se necessário, iremos expandir as investigações.
— Sim, senhora. — O senhor acatou prontamente.
— Acha que conseguiremos fechar a fenda? — Téça interpelou aos dois que a acompanhavam.
Katalin e o senhor se entreolharam, sabendo que aquilo poderia causar consequências, mas estavam lá para servir.
— Acho melhor você deixar isso conosco — Katalin afirmou. — Você não está em condições de usar seus poderes. Anda muito exausta.
— Nada disso! — Téça se opôs. — Estou aqui para isso.
— Eu posso ajudar — Andras disse, assustando os feiticeiros, que mal haviam notado sua presença. Ele estava sentado em uma pedra, ouvindo a conversa inteira.
— Andras, eu te pedi para que ficasse em casa, e não se metendo onde não é chamado.
— Como não vou me meter, vendo a senhora cada dia mais distante, cansada e alheia consigo mesma? — Andras enumerou. — Às vezes, é necessário pedir ajuda e não deixar o orgulho tomar conta.
Andras se levantou da pedra em que estava sentado e se aproximou de sua mãe.
— Tire um tempo para descansar, só hoje. Katalin, Enver e eu vamos cuidar do restante. Você precisa se cuidar, mãe. — Andras colocou a mão sobre o ombro de Téça, como uma súplica.
Téça estava relutante. Aquele não era o momento para ela ir para casa e fingir que estava tudo bem. Mas ela precisava colocar seus pensamentos em ordem para ter um norte de qual passo daria. A contragosto, Téça decidiu ceder às insistências de seu filho e de sua irmã. Só não gostava de demonstrar estar vulnerável na frente do velho conselheiro.
— Está bem! Só não quero que Andras ajude a fechar a fenda — Téça ordenou.
— Mas...
— Mas nada, você já me desobedeceu, nos seguiu, ouviu assunto que não era de seu interesse. Não quero que faça algo prejudicial a você.
— E vai deixar apenas os dois se prejudicarem? — Andras se aborreceu. — Sinto muito em contrariar-lhe, mas já chega de tentar me proteger o tempo inteiro.
Téça tentou segurar a raiva interior que sentiu ao ser confrontada pelo seu filho. Isso lhe tirava toda autoridade. Mas não podia impedi-lo. Andras não era mais uma criança, e precisava colocar isso em sua cabeça. Mesmo que em todas as vezes se lembrasse do trauma que sofreu ao ter seu filho arrancado de seus braços e quase tê-lo perdido.
Andras, Katalin e Enver seguiram até a abertura da redoma. Unindo seus poderes, eles se esforçaram para fechá-la.
Não era algo simples de ser consertado. Naquela redoma, havia o sacrifício de outros feiticeiros que possuíam, em seu âmago, o desejo de proteger sua descendência. Como havia ultrapassado um dos três pilares da magia — este consistia em não interferir na ordem natural da criação de um deus; não poderiam criar vida, como animais, plantas e pessoas, e nem alterar a estrutura do ambiente de forma permanente —, centenas de almas foram dizimadas por esse ato.
Ao finalizarem o trabalho em conjunto, Katalin cambaleou algumas vezes antes de ser aparada pelo seu sobrinho. Um grito agudo saiu de sua garganta, junto a uma dor lacerante.
— Calma, calma. — Andras deitou Katalin na grama, enquanto procurava a região onde ela devia ter sido afetada. — Onde está doendo?
Katalin apontou para suas costas, e Andras rasgou uma parte de seu vestido, encontrando uma marca negra em sua costela.
Téça correu ao encontro de Katalin, a fim de amenizar a dor que ela sentia. Os poderes de cura de Téça diminuíram gradativamente o desconforto. A respiração de Katalin amenizou, e sua feição de dor desapareceu.
— Isso dói pra caralho! — Katalin berrou. A sua sorte era que sua irmã estava ali por perto.
— Está tudo bem? — Andras perguntou.
— É, acho que está! — Katalin se levantou, retirando a grama dos cabelos. — E com vocês? Não aconteceu nada?
Andras e Enver negaram com a cabeça. Eles não sentiram nenhum efeito contra eles.
— Vamos para casa — Téça disse. — Hoje foi um dia cheio.
— Estou puta. Só eu que tenho que pagar o pato dessa maldição? — Katalin continuou a falar. — Coitados dos feiticeiros que construíram isso tudo. Devo minha vida a eles!
A loira foi andando na frente, resmungando algumas verdades. Téça se aliviou um pouco; se Katalin não reclamasse, aí sim que não estaria nada bem.
Logo em seguida, Enver e Téça a seguiram, deixando Andras para trás.
Andras olhou por cima do ombro, ao horizonte, e observou a lua que despontava logo atrás do majestoso palácio de Tahagul. Mal estava ciente do destino que lhe aguardava por de trás daquelas enormes paredes de pedra.
Capítulo revisado por Trevsz pelo Projeto WonderfulDesigns
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