Capítulo II - Os primórdios

5198 palavras

Bolgdra, província de Montuália

Ilana limpou o sangue dos ferimentos expostos da briga, logo mais os machucados estariam todos curados, bastava alguns minutos e tudo estaria como novo, e nenhuma cicatriz sequer estaria existente em sua pele.

Yaco se aproximou do alto do penedo, observando o rio fluir em direção a Vallos, não estavam muito longe dali, mas estavam muito cansados para continuar o trajeto. O sol havia nascido há um bom tempo e logo mais seria meio dia.

— Como vamos explicar para a família de Filippo? — Ilana estava com o olhar caído, suas unhas deslizavam contra a sua pele, a fazendo se desprender do canto da unha, pequenas gotas de sangue caíram sobre a roupa recém trocada. Não tinha mais esperanças, Filippo nunca mais retornaria para casa. — Não deveríamos tê-lo deixado para trás.

— Independente... Teríamos morrido os três, ele nos salvou.

Ilana agarrou uma pedra que encontrou ao seu lado ao se abaixar, com tamanha força e brutalidade, arremessou no penhasco a baixo.

— Vá se deitar. — Yaco colocou a mão sob o ombro de sua filha. — Descanse um pouco antes de partirmos, eu fico de vigia.

A jovem maneou a cabeça, e deu as costas ao penedo, seu pai iria insistir para que ela descansasse, sabia que não conseguiria dormir, mas ao menos poderia chorar sozinha em luto por Filippo.

Apenas um cavalo havia restado junto da carroça de madeira que tinham algumas roupas, ferramentas e um pouco de alimento. Yaco foi em direção ao cavalo, e pegou a bolsa que Ilana havia carregado consigo. Yaco a abriu, se deparando com a esfera dourada que Ilana fez questão de carregar.

O objeto reluziu, a princípio parecia ter sido feito com ouro, mas o material parecia ser muito mais rico, delicado, ao mesmo tempo que era resistente. Yaco aproximou ainda mais a esfera de seus olhos, observando minuciosamente os seus detalhes, haviam pequenos desenhos entalhados na peça, delicados traços arredondados davam continuidade no orbe, Yaco deduziu o quanto valia aquela peça: Dez mil fallins? Não, era muito pouco, talvez cinquenta, cem...

O orbe brilhou, aquilo assustou Yaco que a afastou abruptamente, mas era inofensiva. Ele estava encantado, o objeto tão belo... Era uma das coisas mais bonitas que ele havia visto em toda sua miserável vida.

Ele voltou a guardar o orbe na bolsa, em meio aos diamantes, esmeraldas, safiras e rubis.

Partiriam assim que estivessem descansados, não queriam levantar suspeitas de onde haviam ido, por isso precisavam esperar as cicatrizes sumirem completamente.

Mas como explicariam sobre FIlippo? O peso da culpa caiu nos ombros de Yaco, ele era o mais velho dali e, como missão, deveria ter cuidado dos dois mais jovens, deveria ser ele no lugar de Filippo, mas talvez o medo e desespero de proteger Ilana foi maior, e deixou que o rapaz se sacrificasse.

Não saberia se contava a verdade para a família do rapaz, a maquiando levemente para não ser descoberto, ou se dizia que o rapaz se perdeu no caminho, e que iria procurá-lo.

Um cadáver, era isso que perderiam tempo procurando já sabendo da verdade.

Yaco sabia dos riscos, desde que decidiu se tornar um ladrão, que o destino era a morte, sem lástima, sem perdão, sem segundas chances... E ainda carregou sua filha consigo, já havia perdido outros companheiros na jornada, estava condenando a si próprio e se condenaria duas vezes mais por sua Ilana.

Por um momento Yaco se sentiu culpado por agradecer por ter sido Filippo a se sacrificar no lugar de sua filha, e pediu perdão por isso também.

Mas faltava pouco para alcançar seu objetivo, logo poderia construir um barco e levar sua família para bem longe de Montuália.

Após descansados, Ilana e Yaco se preparavam para retornarem para Vallos, Yaco montou no cavalo, o guiando pela estrada, já Ilana, estava sentada na carroça, submersa em seus pensamentos.

Chegando na cidade, as crianças brincavam alegremente na pequena cidade, correndo de um lado para o outro, em meio a elas, estava Airam, que aguardava ansiosamente pela volta de seu pai e sua irmã.

Assim que os avistou, Airam correu próximo ao seu pai que estava montado no cavalo.

— Pai! — O menino pulava à medida que o cavalo andava, logo ambos pararam, e Yaco desceu do animal para abraçar seu filho.

— Você está bem? — perguntou o mais velho, o garotinho balançou a cabeça.

— O que foi isso? — indagou a criança, apontando para a cicatriz que despontava acima das grossas sobrancelhas do mais velho.

— Eu caí! — Rapidamente arrumou uma desculpa. — A estrada estava cheia de lama, eu escorreguei e caí com o rosto em uma rocha.

Airam fazia uma careta, imaginando a dor que seu pai sentiu ao "cair sob uma rocha".

— Mas papai está bem! E o que você preparou pra gente, estamos morrendo de fome. — Yaco desviou do assunto, fazendo algumas cócegas em seu filho, que deu risada.

— Tem bolo de terra — brincou a criança.

— Vamos ver o quanto está bom. — Yaco entrou na brincadeira. — Ilana, poderia guardar o cavalo?

As sobrancelhas de Airam se juntaram, logo notou que haviam dois cavalos a menos, além de que Filippo não estava mais lá.

— Onde está o Filippo? — Ele olhou à sua volta, temendo que o rapaz fosse pregar uma peça nele, como sempre fazia.

— Vou guardar os cavalos, depois a gente conversa — Ilana o cortou, estava aflita demais para poder dar uma resposta concreta do que havia acontecido, e nem sabia se deveria falar a verdade para ele.

Ilana observava o horizonte, seu olhar estava vazio. Quase três dias haviam se passado desde o acontecido. Não contaram a verdade para a família de Filippo, preferiram dizer que o rapaz decidiu tomar outro caminho, para averiguar outras terras em busca de revender as últimas mercadorias que possuíam, porém não retornou.

Para manter a mentira, Yaco decidiu iniciar as buscas pelo rapaz, se contasse a verdade sobre terem invadido o cemitério de Unterist e roubado as pedras preciosas, os moradores os entregariam para o imperador, que os colocariam na forca ou encontraria outro método criativo para matá-los, somente para se deliciarem do sofrimento alheio.

— Os cavalos ainda não retornaram — anunciou Ilana, ao notar que seu pai se aproximou de si.

— Devem ter sido pegos, ou não amarramos o cabresto forte o suficiente dos outros dois.

Ilana decidiu acreditar na segunda opção, se realmente tivessem sido pegos, não restaria apenas um.

— Irão procurar pelo Filippo? — perguntou a garota.

Yaco suspirou profundamente antes de continuar.

— Até nos cansarmos.

— E vai alimentar a esperança da família dele, dos amigos, dizendo que ele está vivo, que só está perdido por aí?

— Só vai ser até o inverno começar, após isso, as buscas serão impossíveis, saberão que ele... partiu.

— Pai... — a voz de Ilana soou falha.

— Se dissermos a verdade, nós morremos, e o sacrifício dele será em vão. Eu também não estou contente com tudo isso, estou arrasado por saber que o perdemos. Filippo era importante para mim, era como se fosse um filho.

Yaco não mentiria sobre isso, a relação entre os três era de parceria e amizade, Filippo sempre se mostrou como uma pessoa prestativa e leal. Quando descobriu sobre o que Yaco fazia, o rapaz manteve segredo, e compreendeu o real motivo do mais velho fazer tais coisas. Só queria ir para longe da miséria de Vallos, levar sua família junto e poder comprar uma casa em outro império e finalmente viver em paz.

Não muito diferente dos ideais de Yaco, Filippo também queria o melhor para sua família, e decidiu por si próprio se juntar a Yaco e mais outros dois companheiros, mesmo sabendo dos riscos. Ele viu com seus próprios olhos o que aconteceu com os outros homens, ciente de que aconteceria o mesmo consigo caso fosse pego.

E foi assim que se estendeu durante dois anos com os roubos aos cemitérios, ora tinham sorte de ganharem muito dinheiro com isso, ora o azar estava à espreita, e não conseguiam muito.

Nos últimos seis meses, Ilana havia se juntado aos dois, apesar de seu pai tentar impedi-la, Ilana jamais mudou de ideia. Sabia que se ajudasse seu pai, mais rápido iriam embora de Montuália e menos risco correria Filippo e Yaco. Ilana sabia que trabalhando justamente, dia após dia, não iria bastar, estavam na base da cadeia, e não sairiam de lá apenas por "serem esforçados".

Sua mãe havia falecido por ganância dos mais ricos, e Ilana tiraria tudo deles se fosse preciso, não somente para vingar sua genitora, mas a todos os moradores de Vallos.

Yaco pegou o cavalo e marchou rumo à floresta, junto de mais cinco homens, em busca de Filippo, eles estavam revezando as buscas, para que ninguém ficasse cansado e que pudessem procurá-lo por mais tempo.

Um dos rapazes não havia retornado das buscas, os moradores temiam que ele não estivesse perdido, mas sim tivesse sido pego por alguma ameaça, a qual suspeitavam.

Ilana sentiu seu peito apertar, queria correr para dizer a verdade para as pessoas, que Filippo fora pego pelos guardas do imperador. Inclusive imaginava que estavam o julgando em meio a praça, a qual a plateia ansiava a cada segundo que ele fosse condenado.

Mas naquela altura do campeonato, ele já deveria ter sido enforcado.

Uma égua de pelagem dourada surgiu em meio às árvores, trotando calmamente para a aldeia, um dos rapazes que demorou para vir das buscas estava a guiando, e junto a ele, estava Filippo.

Ao ver aquilo, Ilana correu em direção aos rapazes, ela duvidava do que via, temia que fosse apenas delírio, mas ao tocar na pele quente de Filippo, ela voltou a acreditar na sua mente.

Outros homens o ajudaram a descer do cavalo, ele estava coberto apenas com uma manta, sem nada mais, e lutava para permanecer acordado, estava com sangue coagulado em seu rosto e cabelos e ardia em febre.

— Meu filho! — Uma voz feminina acompanhada de um choro esganiçado foi de encontro ao rapaz, a mãe agarrou o corpo de Filippo, o abraçando fortemente. — Que bom que você voltou, meu menino. — Ela afastava o cabelo do rapaz do rosto, que estava completamente apático e pálido.

— Vamos levá-lo para dentro, ele está muito quente, deve ser febre — Ilana avisou, assim, Filippo foi carregado por outros homens para sua casa.

Muitos curiosos se aglomeravam pela casa, Kalia, mãe de Filippo, afastou a todos, querendo deixar o rapaz descansando em paz. Só deixando os mais próximos.

A avó de Filippo se aproximou de seu neto, avaliando a sua situação. O rapaz tinha várias escoriações por seu corpo, mas a em seu abdômen chamava mais atenção pelo corte grande e profundo.

Ilana desviou o olhar, não aguentaria vê-lo daquela forma.

— Me parece ter sido feito com alguma arma de prata — revelou a senhora.

Filippo urrou de dor ao ser tocado, o ferimento ardia como fogo, o dilacerava de dentro para fora.

Ilana segurou seus próprios braços, temendo que iria chorar, se Filippo não morreu antes, certeza que agora seria o seu fim.

— O que vamos fazer? — Kalia derramou suas lágrimas, seu marido a abraçou.

— Poderíamos tratar dessa ferida com calêndula ou guaco, mas a geada se aproxima, seria raro encontrar essas plantas, além de que só iria tratar superficialmente dessa ferida — informou a senhora.

— Deveríamos ir atrás de um feiticeiro curandeiro — o pai de Filippo disse.

— Com que dinheiro? — indagou Kalia. — Eles vão cobrar nossas almas para poder curá-lo.

Ilana sentiu seu peito arder, apenas essa seria sua única esperança, e iria atrás do que fosse possível.

Pé ante pé, Ilana se distanciou da casa o mais rápido possível, iria atrás de um feiticeiro, mesmo que isso lhe custasse muito mais do que imaginava, ao menos, ela sabia onde encontrá-lo.

Ilana apressou seus passos, pegando um casaco para ela e Airam. A garota enfiou um punhado de diamantes em uma bolsa, guardou uma adaga no cós de sua calça e partiu rumo à cidade mais próxima.

Não iria medir esforços para ir atrás do que fosse para ajudar Filippo, aliás, graças a ele ainda estava viva.

— Ele irá ficar bem? — Airam perguntou, ele segurava a mão de sua irmã enquanto os dois caminhavam em meio a multidão agitada da cidade de Bolgdra.

— A dona Mareux está cuidando bem dele, até lá vamos ter tempo para levar o que precisamos.

— E o que aconteceu com Filippo?

— Foi atacado com uma arma de prata, bem no abdômen.

Airam se lembrou da primeira vez que havia tocado em um objeto feito de prata, era uma corrente que ele havia encontrado na floresta quando brincava de pique-esconde com outras crianças. Ele ficou encantado pelo objeto reluzente, curioso, ele tentou pegá-lo e com isso queimou sua mão. Foi apenas algo superficial, mas que doeu até sua alma e o fez lembrar pelo resto da vida em não tocar em qualquer outro objeto brilhoso sem a devida atenção. Até hoje, carregava a cicatriz que a inofensiva corrente fizera em sua mão.

E Airam ainda permanecia sem entender como um dos minérios presenteados pela deusa da prosperidade fosse capaz de matá-los e feri-los.

Ilana dobrou em mais uma esquina, o beco se encontrava vazio e mal iluminado apesar de ser dia. Airam sentiu o calafrio correr por sua espinha, o que sua irmã iria fazer ali, era um mistério.

Eles adentraram em uma casa que ficava naquele beco estreito, ao passarem pela porta, o tilintar do sino soou. A madeira acabou rangendo conforme os passos que davam até chegarem próximo a uma janela com grades grossas. Não dava para ver nada do outro lado, exceto por um homem careca com expressão de cansaço em seu rosto.

— Bom te ver por aqui novamente! — O homem sorriu, os caninos de ouro reluziam.

— Olá, Neoni! Como vai? — Ilana deu um breve aceno.

— Melhor agora que você chegou — cantarolou. — O que trouxe para mim hoje?

— Apenas alguns diamantes. — A garota retirou do bolso de seu casaco as pequenas pedras, colocando sob o balcão.

O sorriso da face de Neoni cresceu ainda mais, ele segurou as pequenas joias em sua mão, as conferiu superficialmente e as guardou em uma caixinha antes de levá-las até o cofre.

Ele separou uma quantia em dinheiro e entregou para Ilana.

— Não vai conferir? — indagou a garota ao receber as moedas.

— Eu confio em você!

Ilana deu um breve sorriso, guardou o dinheiro na bolsa e saiu com Airam do beco.

— De onde você tirou aqueles diamantes? — enfim Airam perguntou, estava apenas esperando sair do local.

— Airam, se você não quiser ver papai e eu encrencados, terá que fingir que não viu e nem escutou nada hoje.

— Vocês roubaram?

— Shiu! — Ilana repreendeu o garoto, antes que alguém ouvisse o que estavam falando. — Isso é segredo nosso.

Imediatamente Airam se calou, não queria levar outra repreensão de sua irmã.

Ilana caminhava pela cidade de Bolgdra como se conhecesse cada pedaço daquele lugar. Fora nascida e criada naquele lugar até os quatorzes anos, antes de sua família ser expulsa da cidade e terem se refugiado em Vallos, talvez Airam não se lembrasse por ainda ser bem pequeno, e acreditar a vida inteira que não foi criado na cidade mais rica de Montuália.

Os dois chegaram ao seu destino, pararam em frente a uma casa, era grande comparado ao casebre em que moravam, e muito bem cuidada, a parede de tijolos vermelhos dava mais alegria, fora as rosas que floresciam apesar do frio. Ilana se pôs frente a porta e segurou a aldrava, a batendo algumas vezes contra a madeira.

Um idoso a atendeu, ele possuía cabelos longos e grisalhos assim como sua barba, e utilizava um manto de cores escuras.

— No que posso ajudar?

— Você é Olozor? — indagou a garota, e o feiticeiro assentiu. — Soube que o senhor é um curandeiro, preciso urgentemente de sua ajuda.

O senhor coçou a barba.

— Entrem. — Ele deu espaço para que Ilana e Airam adentrassem sua moradia.

A magia presente no local era forte, qualquer um que pisasse os pés na casa de um feiticeiro conseguia senti-la, era como um formigar suave sob a pele e um sabor agridoce tomava seus paladares.

— Sentem-se. — O feiticeiro aprontou para as poltronas de cor marfim a sua frente. — Desejam um café ou suco?

— Não quero parecer grossa, mas eu preciso muito da sua ajuda, tenho um amigo que está à beira da morte, precisamos de você mais do que nunca agora — suplicou a garota.

— Ok...

— Quanto você cobra pelos serviços?

— Cinquenta mil fallins.

Ilana quase se engasgou quando ele disse o valor, temia que fosse caro, mas não tanto assim.

— Ok, está na mão. — Ilana retirou algumas moedas de sua bolsa entregando ao feiticeiro sem hesitar.

— E até onde devo ir?

— É em Vallos, próximo ao riacho da cidade.

Olozor ergueu uma de suas sobrancelhas, estava ciente da situação que Ilana se encontrava, além de ter poderes de cura, também era capaz de ler mentes, o que lhe deu vantagem de conseguir muito mais do que cinquenta mil fallins.

— Ilana de Bolgdra, correto? — Ele juntou ambas as mãos, às fechando e elevando-as ao queixo, seu único olho funcionante a encarou, deixando a garota ainda mais tensa. — Acredito que tenha uma razão para que esse Filippo esteja tão machucado. E pelo que vejo, não foi um simples corte em seu abdômen.

Ilana respirou fundo, sabia que não seria algo tão simples assim, os feiticeiros eram bem espertos, e faziam de tudo para conseguirem lucrar mais em cima de chantagens e ameaças.

— Se sabe... Então quanto seria necessário pelo seu sigilo?

— Quanto daria por uma vida?

O tempo estava acabando, Ilana precisava agir rápido.

— Te pago cem mil fallins, e tudo resolvido.

— Acha que a vida do seu amigo vale tão pouco assim? Quinhentos mil ou nada feito.

As unhas de Ilana afundaram sob o estofado da poltrona, seria tudo que ela recebeu pelos diamantes vendidos.

— Tudo bem. — Ela entregou o restante do dinheiro para Olozor, que conferiu cada moedas no saco.

— Vallos, correto? — Olozor se levantou da poltrona, e se posicionou frente a um espelho presente na sala, ele repousou ambas as mãos em seu antebraço, e suavemente separou os membros, assim, abrindo um portal que dava diretamente a Vallos.

Ilana e Airam observavam em dúvida, parecia irreal, para prová-los do contrário, Olozor o atravessou, aguardando do outro lado. Ilana tentou transmitir um olhar de conforto para Airam, que ainda temeroso atravessou o portal, uma dor de cabeça aguda e uma sensação nauseante lhe invadindo.

— É normal nas primeiras vezes — Olozor avisou ao garoto.

Em seguida, Ilana o atravessou, alguns moradores observavam surpresos, entre os mais velhos, havia décadas que não viam algo do tipo, e para as crianças, era a primeira vez.

Ilana marchou para a casa de Filippo apressadamente, ela bateu na porta algumas vezes sendo atendida por Kalia, sem perder tempo, ela anunciou sobre o feiticeiro, e por fim os três logo estavam no quarto de Filippo, que ardia em febre e dava alguns grunhidos pela dor.

— Chegou ajuda, dona Mareux — Kalia disse, e a senhora se levantou rapidamente.

Olozor avaliou a situação do rapaz, rapidamente, ele ergueu suas mãos sob o abdômen de Filippo, e conforme o movimento de suas mãos, as feridas se fecharam e sua pele se tornou íntegra e uniforme.

— Graças aos deuses! — Kalia juntou suas mãos a levando até o peito, aliviada pelo seu filho estar bem novamente.

— A febre irá passar logo, logo — Olozor informou. — Recomendo que ele fique em repouso, e que se alimente bem. Ele está um pouco desnutrido e irá precisar de bastante líquido. Isso irá ajudar. — Ele retirou algumas ervas guardadas em um pequeno frasco de vidro do bolso de seu manto, entregando a Mareux.

— Muito obrigada! — Kalia quase ajoelhou aos pés de Olozor, agradecida por ele ter salvado a vida de seu filho. — Não tenho nem palavras para agradecer pelo o que fez.

— Disponha. Se precisarem dos meus serviços novamente, estarei à disposição. — Olozor fez uma breve reverência, ele observou Ilana de soslaio, sabia que logo mais ela iria dar satisfações, não somente para a família como para outros moradores, mesmo com seu completo sigilo. Em seguida, ele abriu um portal para retornar a sua casa.

A garota o fuzilou com o olhar, pela tamanha cara de pau e audácia do feiticeiro.

Ao olhar novamente para Filippo, ele estava levemente mais corado, Ilana sentiu um alívio rondar a si, estava feliz por vê-lo bem.

Com a noite se aproximando, Ilana decidiu ir visitar Filippo para ver como ele estava. Queria não estar tão ansiosa para poder dormir, mas não descansaria enquanto não tivesse certeza de que o veria bem.

Ao chegar a seu quarto, ela se aproximou da cama do rapaz, que estava alerta, como se esperasse qualquer sinal suspeito para fugir.

— Você está melhor? — Ilana segurou a mão de Filippo, dessa vez estavam mornas, e os poucos calos roçavam em seus dedos.

— Só um pouco tonto. — Filippo se ajeitou na cama, tentando se sentar.

— Fiquei preocupada com você, jurei que estivesse morto.

— Também achei que iria morrer. Nunca senti algo parecido na minha vida. Que coisa terrível!

— Ao menos agora você está bem!

— Foi atrás de um curandeiro por mim? — Filippo exibiu um sorriso de canto de lábios.

— Era o mínimo que poderia fazer, você salvou a minha vida. — Ilana acompanhou o sorriso de Filippo, que crescia cada vez mais em sua face.

— Você me salvou primeiro. — O rapaz trouxe a mão de Ilana próximo aos seus lábios, depositando um beijo em sua pele. Antes que ela expressasse sua confusão, ele continuou... — Você me salvou de toda escuridão que rondava em minha vida. Não vou me cansar de dizer que sou apaixonado por você.

Ilana abaixou a cabeça, estava corada com a declaração que Filippo fez.

— Quando estiver disposta a se casar comigo — ele continuou. — Juro em nome dos deuses te fazer a mulher mais feliz do mundo. Construirei nosso império, e não irá se preocupar com mais nada nessa vida.

Ilana se inclinou na direção de Filippo e o abraçou, ela abaixou a cabeça para esconder suas lágrimas, mas a conhecendo bem, ele sabia que Ilana estava chorando.

A jovem queria que tudo estivesse bem em sua vida para poder viver em paz, poder se casar, ter seu lar e sua família. Mas ao passar naquelas noites mal dormidas pensando que o pior havia acontecido com Filippo, seu coração se apertou, e ela não queria esperar o melhor que estava por vir para enfim aceitar viver o que tanto sonhou.

— Por que está chorando, meu amor? — Filippo achou graça, não imaginou que suas palavras emocionaram a garota dessa forma.

Ela ergueu a cabeça, fungando.

— Achei que te perderia.

— Eu estou aqui. — Ele enxugou as lágrimas de Ilana com o dorso de sua mão.

— Sim... — Sua voz falhou por um momento. — Com isso percebi que não quero perder mais tempo. Por mim eu casaria com você agora mesmo.

O coração de Filippo pareceu errar uma batida, ele se sentiu inerte nas palavras de Ilana.

— Está falando sério? — Ele quase se engasgou com as palavras. Ilana maneou a cabeça. — Claro que irei fazer um pedido decente para você, não nestas condições catastróficas. — Filippo apontou para si, arrancando uma leve risada da mulher.

— Será que Yaco irá concordar? — perguntou meio receoso.

— Está brincando? Ele vai adorar! Nem imagina o quanto ele ficou contente em saber que estava bem, meu pai não é de chorar, mas acredite, por pouco ele não chorou ao dar a notícia a ele.

— Yaco está guardando as lágrimas para o dia que te levará para o altar.

Ilana concordou com o rapaz, ela mordeu o lábio inferior encarando os olhos de Filippo, nele ela sentia conforto, era o seu ponto de paz em meio aquele caos.

— Vou deixá-lo descansar, prometo que amanhã volto aqui. — Ela ergueu a mão de Filippo, a beijando, o rapaz faz o mesmo gesto em seguida.

Ilana retornou para sua casa, sentindo seu coração aquecido. Havia muito tempo que não estava tão bem, tão em paz. Faltava muito pouco para eles se despedirem de Vallos, para construir o tão famigerado futuro.

Airam corria pela casa, atrás de um filhote de raposa que adentrou sua residência, o garotinho havia oferecido alimento para o filhote, que se acomodou na casa.

— Airam, já te falei que não podemos ter animal aqui em casa.

— Prometo que não vou deixá-lo fazer bagunça — insistiu a criança, segurando a raposa em seu colo, que dava pequenas mordidas em sua mão.

— Só esta noite — ela cedeu.

Airam comemorou, abraçando a raposa ainda mais. Logo em sua mente aparecem alguns questionamentos.

— Ilana, dói quando você se transforma em lobisomem?

— Até hoje, mas não é como a primeira vez. — Ilana ficou concentrada em arrumar os utensílios da cozinha. — Costuma doer bem menos quando estamos em perigo.

— Tô morrendo de medo quando esse dia chegar, Raksa falou que sentiu seus ossos quebrando.

Ilana olhou para seu irmão, que parecia assustado com o que havia ouvido.

— É uma experiência única para cada um, não precisa ter medo, uma hora você se acostuma, pode acreditar.

— Mas por que de tudo isso? Da dor, da maldição... Filippo parecia que iria partir a qualquer momento, fiquei com medo.

— Ele está muito bem agora, não precisa se preocupar. — Ilana abraçou a criança, que afagou em seus braços. — Logo mais não iremos passar mais por isso, em breve nossas vidas irão melhorar.

Airam dá um sutil sorriso, confiando nas palavras de sua irmã.

— Você irá continuar a histórias dos deuses pra mim? Queria saber o que aconteceu depois da morte do Amnestrenaf.

Ilana concordou, fazia um tempo desde que havia contado sobre o início de tudo. Da mesma forma que fazia sua mãe, ela também queria e deveria passar as histórias de seus antepassados para Airam. Só não tinha o mesmo dom que sua mãe tinha ao contá-las, as deixando muito mais instigantes e interessantes.

A mulher se aproximou da mesa, se sentando e em seguida Airam também se sentou, deixando que o filhote corresse pela casa, enquanto isso, ouvia atentamente ao que sua irmã iria falar.

— Amnestrenaf acreditou que aquele era o fim, que sem ele nenhuma vida era capaz de existir.

Mas ele estava completamente enganado. De seus "restos" mortais surgiu três divindades, Samayam, Stvar e Svemir, os deuses supremos.

Os três eram os seres mais fortes da existência, até mais que o criador que os originou. Eles não poderiam destruir-se um ao outro, pois seu poder e força eram equiparados.

As três divindades governaram durante milênios sob os mundos, eles recriaram os Anhumas, que os serviram durante todos aqueles anos.

O lugar se tornou pacifico, a morada dos deuses foi nomeada pelos mortais como "Misocândria". Livre de qualquer maldade, miséria e opressão. Aquele era o paraíso.

Porém, o maior dos temores de Amnestrenaf estava próximo de acontecer. Um dos deuses supremos acreditava que os Anhumas mereciam liberdade, que eles não eram apenas criaturas inconscientes que tinham a obrigação de servi-los por toda eternidade.

Samayam e Svemir não concordavam com Stvar, para eles, os Anhumas foram criados para um único propósito e assim deveria ser até o fim dos tempos.

Stvar entendeu aquilo como uma opressão, e decidiu ir contra seus irmãos. Ele decidiu sair do panteão, e consigo, levou quatro dos Anhumas que concordavam com seus ideais.

Com suas próprias mãos e de sua própria maneira, Stvar moldou nosso universo, criou as estrelas, astros e fenômenos, todos interligados e ornando entre si, sem perderem a sintonia, tudo em favor da vida.

Decidido, Stvar compartilhou seus poderes com os quatro Anhumas que decidiram o acompanhar nesta jornada.

Alklas foi o primeiro a ser transformado em um deus, governante dos céus, seus poderes se originaram da luz, e foi nomeado como deus da sabedoria. O deus criou um reino acima dos céus, moldando o céu a seu favor, ele dividiu entre o dia e a noite, deixando que o sol iluminasse nosso mundo durante o dia e que a lua e as estrelas abençoassem os céus durante a noite.

Montuália veio seguida de Alklas, ela criou as terras onde conhecemos hoje em dia. Deusa da prosperidade, capaz de mover terras e minérios. Somente um suspiro seu foi capaz de criar terras infinitas, a qual ela nomeou como mundo. Contente com que havia acabado de criar, ela resolveu presentear seus irmãos, dividindo parte desse mundo.

Deus da beleza e sedução, com o controle total sob as águas, Solycium não demorou a ser criado, separou os pedaços de terras e águas e as chamou de mares, rios e oceanos.

Ao surgir Katacrista, deusa da vida, ela criou seres que pudessem viver nos mares, outros na terra e uns para os céus. E para governar sobre eles, ela criou seres racionais, e os chamou de humanos.

Stvar se sentiu orgulhoso de tudo que foi feito por seus filhos. A paz reinava entre o universo, estava decidido em findar suas criações por ali, porém, os deuses primordiais não estavam satisfeitos com o destino que levavam, e assim, os deuses passaram a se relacionar entre si, e dessa união surgiram outros deuses menores.

Da união entre Solycium e Katacrista, nasceu Tahagul, nomeada tempos depois como deusa da vitalidade, seus poderes eram provenientes do sangue.

De Montuália e Alklas, nasceu Indifell, capaz de controlar o fogo existente na terra, o deus da justiça.

E por fim, da união entre Alklas e Katacrista, surgiu Chillsafar, a deusa da morte, capaz de moldar as trevas ao seu favor.

Após o nascimento da deusa da morte, o caos começou a rondar os mundos. Alklas e Katacrista queriam subdividir o mundo, os deuses hereditários não perderam muito tempo, e exigiram um pedaço de terra para si, e o mundo foi dividido em sete partes.

Cada deus dominava uma parte do mundo, criando regras e um sistema de governo, e aparentemente tudo estava em perfeita paz novamente.

Porém, para satisfazerem ainda mais seus desejos, os deuses passaram a se relacionar com os humanos. Stvar considerou aquilo como uma abominação, não era bem visto aos seus olhos, o criador se envolver romanticamente com sua criação.

A mistura entre deuses e humanos originaram semideuses, seu poder só ficava abaixo dos deuses primordiais. Mas eram fortes o suficiente para terem o poder igualado a dos deuses hereditários, exceto por serem mortais. Stvar estava ciente de que aquilo não era certo, e ordenou que seus filhos, sem nenhuma exceção, caçasse e entregasse os semideuses em sacrifício, dando fim a uma futura geração.

Revoltados com a decisão de seu criador, os deuses se uniram para destruir Stvar, e seu plano de acabar com toda a descendência.

E assim se iniciou a rebelião dos deuses, que perdurou durante séculos...

Ilana interrompeu sua narração ao ver que Airam lutava contra o sono para se manter acordado.

— Estou vendo que alguém aqui está bem cansadinho.

Airam bocejou, confirmando as palavras de sua irmã.

— Vamos nos deitar, tivemos um dia cheio hoje. — Ilana se aproximou de Airam, que envolveu os braços em sua cintura, assim, ambos vão para seus quartos.

Ilana ajeitou a coberta e deu um beijo no nariz de Airam, que adormeceu em poucos segundos. A jovem caminhou em direção a vela, soprando contra a chama, deixando o quarto em total escuridão, logo mais, ela também adormeceu ao som agradável da chuva.  

Revisado por: darthflowers Projeto WonderfulDesigns

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