Capítulo I - Os primórdios

5448 palavras

Que os deuses não possuíam um passado digno de orgulho, isso era um fato.

Muitas das histórias das quais eu já havia escutado quando pequena eram simplesmente floreadas, exaltando os deuses como seres misericordiosos e bondosos.

Entretanto, não estou aqui para omitir seus feitos, nem os bons e muito menos os ruins, apenas quero contar a história mais pura e cruel sobre os deuses.

No princípio, não havia nada, apenas uma imensidão de trevas espessas e densas, onde nenhum foco de luz era capaz de penetrá-la.

Tudo era tão vazio, sem vida...

Esse vazio perdurou durante milhares de anos, até que um fio de esperança, algo naquele imenso vazio irrompeu. Duas esferas com uma chama tão forte e poderosa surgiram, e suas chamas eram mais que o suficiente para dissipar todas as trevas presentes naquele imenso vazio. Uma delas conhecida como paz, ordem e justiça; a outra, como o caos, balbúrdia e parcialidade.

A cada século essas esferas dobravam de tamanho, crescendo de uma forma inimaginável. Ninguém sabia ao certo a distância de uma para a outra, mas o encontro entre elas causou uma colisão, estrondosa e destrutiva.

Ali se tornou o marco inicial para a nossa existência.

Dos destroços que restaram das esferas, surgiu um ser celestial, responsável por toda criação de nosso mundo.

Ao ter plena consciência de sua existência, o celestial sorriu, e lágrimas escorreram de seus olhos. Essas lágrimas eram algo tão puro, tão divino que criou os Anhumas, seres muito poderosos, criados no intuito de servir ao celestial.

Sentindo-se agraciados pela sua existência, os Anhumas prepararam uma grande celebração, onde dançaram e cantaram alegremente para o celestial. Contentes, as criaturas queriam dar um nome ao seu criador, e assim eles o batizaram como Amnestranaf.

Possuidor de toda sabedoria e onipotência do universo, Amnestranaf era capaz de ver as inúmeras possibilidades de mundos que poderia criar através de um único suspiro seu. Aquilo o fascinava, entretanto, a crueldade e a ganância de suas criações lhe causavam desaprovação. Não importava os diferentes começos, tudo terminava em guerra e morte.

Amnestrenaf era um ser poderoso, criado a partir da colisão entre duas esferas, conhecidas posteriormente como mundos, somente ele poderia criar, somente ele poderia destruir, e assim ele fez, destruiu a si próprio, para que nada mais além existisse após ele, originando o evento nomeado como "o suicídio de um deus"...

— Como assim?! Como um ser muito poderoso foi capaz de tirar a própria vida? — A criança se encontrava com os olhos arregalados, tentando assimilar a história que acabara de ouvir.

Ilana se manteve calada, um pequeno sorriso se formou em sua face ao se lembrar de que fazia as mesmas perguntas que Airam quando era mais nova.

— Tem certas coisas que eu também não entendo. — A jovem passou a mão nos cabelos negros da criança, ajeitando os fios para ficarem arrumados.

— E você me conta assim, sem ter nenhuma explicação? Está muito mal contada essa história — Airam se levantou do tronco de árvore, ainda mais inquieto que antes.

— Poderia perguntar para o professor, quem sabe ele tenha uma explicação melhor — Ilana pegou um graveto a sua frente jogando na fogueira que crepitava a sua frente. — Hora de entrarmos, está ficando tarde ─ Ilana se levantou também, estava cansada demais para encontrar alguma explicação que suprisse a curiosidade da criança.

— Que porcaria!

O garoto bufou, e virando-se de costas ele retornou para a casa, se forçaria a adormecer naquela noite, quem sabe no dia seguinte sua irmã continuaria a história.

Ilana não saberia explicar com tamanha certeza sobre os mistérios do mundo em que vivia. As histórias eram contadas por sua mãe, e apesar de fazer as mesmas perguntas de Airam, nem sempre eram respondidas com tamanha certeza.

Ilana cruzou os braços, observando as estrelas despontarem do grande manto negro que estendia no céu. Sua mente se esvaiu, relembrando de quando sua mãe lhe contava que quando alguém partia dessa terra, ela se transformava em uma estrela.

A garota deixou de acreditar naquela história já fazia muito tempo, mas no fundo preferia estar imersa às ilusões da vida, quando acreditava que sua mãe estava naquele céu, a observando e a protegendo de longe.

Ilana apagou a fogueira e retornou para o casebre, ela caminhou até o conjunto de armários da pequena cozinha, abrindo as portas no intuito de procurar por algum alimento para preparar para o dia seguinte, mas não tinha nada além do que um saco de feijões e sal.

— Temos que preencher esses armários de comida, antes que o inverno se aproxime — a mais nova comentou, voltando a fechar as portas dos armários, uma delas acaba se soltando, quase caindo em seus pés.

— Isso se amanhã tivermos sorte — um homem de barbas grisalhas levantou uma adaga na altura de seus olhos, limpando o objeto em um tecido, deslizando algumas vezes o polegar na lâmina do objeto pontiagudo, verificando se estava amolada o suficiente.

— Irei dormir. O senhor deveria ir também. Amanhã temos muitas coisas para fazer — avisou a garota.

— Assim que eu terminar de amolar as últimas adagas estarei indo para cama, filha.

Ilana deu de ombros, e retornou para o quarto onde seu irmão já se encontrava dormindo, ela se aproximou de sua cama, retirou as botas de seus pés, se deitou sob a cama e deixou que seus músculos relaxarem no fino colchão, que não passavam de meros trapos em cima de uma madeira plana sustentada por tijolos.

O dia não havia sido fácil. Com o inverno se aproximando, os animais entravam em época de hibernação ou migravam para um local com o clima mais ameno, e com isso, a caça diminuía consideravelmente.

Ilana e seu pai haviam caçado comida o suficiente para o inverno, conseguiram conservar outros por algumas semanas, entretanto, o casebre onde moravam foi invadido por um grupo de saqueadores dias atrás, que levaram desde objetos preciosos até roupas e alimentos.

O prejuízo só não foi maior, devido aos objetos que foram roubados não pertencerem à família de Ilana, que também se tratavam de ladrões.

Mas eles pretendiam recuperar tudo no dia seguinte.

O feixe de luz adentrou sutilmente pelas frestas das madeiras do casebre, isso fez com que Ilana despertasse pronta para seus afazeres.

Por sorte, as galinhas não foram roubadas nos dias anteriores, pelo menos teriam ovos para comerem durante o desjejum, alimentados e prontos para mais um dia.

Ilana esquentou a panela no fogão a lenha, preparando ovos mexidos. O cheiro acabou despertando Airam, que já sentiu sua barriga roncar, o garoto parou no batente da porta, observando sua irmã concentrada no que fazia.

— Vai continuar me contando a história de ontem? — Airam se sentou na cadeira, balançando os pés que mal alcançava o chão.

— Prometo que assim que você for pra cama irei continuar. Se começar agora, será capaz que você se atrase e o senhor Patmar não ficará nada contente com isso.

— Ele nem irá notar se estarei lá ou não ─ os olhos do garoto se encheram de satisfação ao ter o prato com ovos mexidos posto em sua frente, ele agarrou a colher e comeu o alimento com voracidade.

— Acredite, a memória dele é excelente.

O professor Patmar nada mais era que um mestre, que ministrava aulas para as crianças da aldeia. Ele tentava reunir o máximo delas e lhe ensinar sobre tudo aquilo que tinha conhecimento. Após ser acusado de traição perante o imperador, Patmar se afugentou do palácio e se escondeu na aldeia próxima a cidade de Bolgdra. Os aldeões o acolheram mesmo estando ciente do que aconteceu com o homem, agradecido, Patmar decidiu passar o máximo de conhecimento para quem tivesse interesse em aprender, e isso se perdurou ao longo de uma década.

Após Airam já estar na praça onde eram dadas as aulas. Ilana se locomoveu até o lago mais próximo de seu casebre, a fim de lavar as roupas sujas que estavam se acumulando.

Ela deu um sorriso forçado ao avistar sua vizinha, que lhe cumprimentou alegremente durante a manhã.

— Bom dia, senhorita Ilana! — A senhora se aproximou dela carregando um balde entre seu braço e seus quadris. ─ Como vai nesta manhã?

— Estou ótima, graças aos deuses, e a senhora?

— Bem. E o seu pai? Faz tempo que não o vejo.

— Ele parte todos os dias mais cedo para arar as lavouras, e só volta quando o sol se põe.

Como chega muito cansado, ele logo vai se deitar, esse é o motivo da senhora não encontrá-lo. Provavelmente durante o inverno a senhora o veja com mais frequência.

A senhora deu um estalo com a língua, preparada para palpitar sobre a vida da família. Ela ergueu o queixo, se preparando para retirar os freios da língua.

— Você deveria estar se preocupando em arrumar um marido, assim seu pai não teria mais que se atentar em alimentar três bocas.

Ilana umedeceu os lábios e observou a sua vizinha de canto de olho. Não era a primeira vez que ela insinuava algo do tipo para a jovem, e também não seria a última.

— Se a senhora não se preocupasse tanto com a vida dos seus vizinhos e sim com a sua, seu marido não estaria se deitando com outras mulheres ─ Ilana observou o rosto da mulher, que antes parda, aos poucos tomou a tonalidade de um vermelho intenso.

— Moleca insolente! Como tem coragem de abrir a boca dessa forma para falar da minha família?! — Enraivecida, a mulher arremessou o balde em direção a Ilana. Que o observava bater contra o solo, apenas respingando um pouco de água em seus sapatos.

— Deveria tomar cuidado com o que fala se não quer escutar algo desagradável ao seu respeito.

Ilana deu as costas, se dirigindo até o lago, onde algumas mulheres que estavam próximas dali observavam a discussão, curiosas sobre o que Ilana havia dito, se aquilo era realmente um boato ou se era verdade. Mas pela irritação da mulher, provavelmente aquela história era verídica.

A jovem retirou os sapatos, e ergueu sua saia para se sentar na beira do rio, ela usou do auxílio das pedras para esfregar as roupas. A água estava bem gelada, e o clima frio não colaborava para que a simples tarefa fosse realizada.

— Será que estou ficando louco ou estou realmente vendo uma sereia diante dos meus olhos? — Ilana ouviu alguém dizer aquilo bem perto de seu ouvido, seu corpo arrepiou, bem mais que o efeito da água gélida poderia lhe causar.

Um par de olhos cor avelã lhe encarou, e logo um sorriso tomou os lábios de Ilana.

— Nunca mais me assuste desse jeito. — Ela acertou a camisa que estava lavando em Filippo, que deu alguns passos para trás. — Não acredito que você entrou na água só para me assustar.

— Para, nem está tão gelada assim — o rapaz abriu os braços, girando por completo na água. — Está excelente!

— Maluco! — Ilana tentou segurar o riso.

— Se está com tanto frio assim, permita-me que eu te aqueça — o rapaz se aproximou de Ilana, a envolvendo em seus braços.

— Para com isso, Filippo. — Ilana se desvencilhou de seu abraço. — Se pegarem a gente aqui vão começar os julgamentos e as fofocas.

— Não iriam julgar nem fofocar se você aceitasse se casar comigo.

— Acredito que sua família irá me detestar, ainda mais sua tia, depois de eu ter dito na cara dela que o seu marido era um adúltero.

Filippo deu risada, era nisso que ele mais gostava em Ilana, na sua audácia de dizer o que queria sem medo das consequências.

— E quem disse que isso é mentira? — ele retirou o cabelo da face de Ilana, que teimosamente se desprendeu de trás de sua orelha devido à ventania. — Irei alimentar os cavalos e deixá-los-ei bem descansados para hoje a noite.

Filippo beijou a ponta do nariz de Ilana e se afastou da jovem, que o observava sumindo gradativamente entre as árvores secas.

O dia passou lento, mas assim que o sol estava prestes a desaparecer no céu. Ilana, seu pai e Filippo se aprontavam para o próximo saque que fariam naquela noite.

Por segurança, decidiram deixar Airam com a vizinha, com a velha desculpa de que teriam assuntos no extremo leste para resolverem.

Não poderiam deixar o menino sozinho mais uma vez, à mercê dos ladrões que invadiram a casa dias atrás. Por muita sorte, ao ouvir sons estranhos pela casa, Airam saltou da janela e correu para a casa mais próxima no intuito de se esconder, mas dessa vez não poderiam contar com a sorte.

Ilana terminou de colocar o boldrié na cintura e já pegou as armas ajeitando-os no acessório. Mais uma vez ela checou para ver se tudo está seguro.

— Estão todos prontos? — Filippo perguntou, enquanto isso, ajeitou a luva em sua mão.

— Vamos, não podemos perder tempo — Yaco começou a marchar rumo aos cavalos.

— Papai! — Airam atravessou a cerca da casa de sua vizinha, abraçando o homem pelas costas.

— Vamos voltar logo, logo — o homem curvou suas costas. Ele deu um sorriso ao perceber que não era mais necessário se agachar para ficar na altura de seu filho. Seu menino estava crescendo mais rápido que o normal, logo estaria atingindo a puberdade e como consequência, suas habilidades como lobisomem surgiriam antes de sua primeira transformação.

— Cuida bem da casa, garotão — Filippo bagunçou os cabelos mal aparados do garoto, que deu risada com a brincadeira.

— Não vou deixar nenhum ladrão roubar nossas coisas dessa vez! — Airam fechou os punhos. — Vou apunhalá-los com uma espada e usar seus crânios como tigelas para alimentar-me de suas entranhas.

Yaco se levantou assustado com o que havia acabado de ouvir de Airam. O seu choque era tão grande que o mais velho ficou sem palavras. Até Ilana intervir.

— Airam! Nunca mais diga algo do tipo, isso é repugnante.

O garoto abaixou a cabeça, e concordou com sua irmã, logo mais ele voltou correndo para a casa de sua vizinha.

— Com quem ele anda aprendendo isso? — perguntou o mais velho, ainda extasiado diante do que escutou.

— Consequências de ter sido criado em Vallos! — Ilana afirmou no momento em que montou um dos cavalos.

O trio partiu rumo ao extremo leste de Montuália, os cavalos trotaram velozmente para longe de Vallos, o vento iam de encontro a face de Ilana, que sentiu as extremidades de seu rosto gelarem mais e mais, ela puxou o cachecol, cobrindo boa parte de seu rosto para se proteger do frio.

Após atravessarem a cidade de Bolgdra, os cavalos diminuíram a velocidade e precisavam agir discretamente para adentrarem a cidade de Unterist.

A cidade era uma das mais ricas de Montuália, ficando apenas atrás de Bolgdra. Abrigava boa parte do clero e da nobreza, um prato cheio para encher o olhar dos saqueadores.

Por ter um grande índice de assaltos na região, o local era muito bem protegido pela guarda real, que tinham a autorização de matarem a sangue frio qualquer roubo que testemunhassem. Não diferenciando quem rouba comida ou grandes quantias de dinheiro.

Mas o foco do trio era outro. Os cemitérios, como o número de guardas era um pouco inferior aos da cidade, a facilidade para saírem sem serem pegos era maior.

Para não darem de encontro com a guarda que cercava os portões, eles decidiram ir por um caminho mais longo, entretanto, estaria livre dos vigilantes. Talvez dessa vez não dessem sorte como da última, quando enganaram os guardas com a falsa gravidez de Ilana e na sua urgência de entrar na cidade atrás de uma parteira.

A estrada estava enlameada devido às chuvas, e por vezes, a carroça emperrava atrasando o trajeto, as longas horas de viagem já estavam cansando, e a irritação ora ou outra vinha à tona.

— Juro que da próxima vez que isso emperrar no caminho, eu mesmo carrego essa carroça nas costas — Filippo gritou, retirando as luvas que estavam cheias de lama, atirando-as no chão.

— É o meu entretenimento vê-lo irritado! — Ilana deu risada da situação.

— Para de rir e vem ajudar a gente aqui — pediu o rapaz.

— Já estamos chegando, o cemitério está logo à frente — Ilana informou enquanto olhou no mapa, o iluminando com um lampião.

— Pronto — o peito de Filippo subiu e desceu de forma exagerada, caçando por ar para preencher seus pulmões.— Não vamos voltar por esse caminho.

— Isso se voltarmos — anunciou Yaco, o olhar de Filippo carregava tensão. — Somente os deuses estão cientes sobre nosso destino. Montuália esteja protegendo suas criações, hoje e sempre — Yaco cruzou o dedo indicador com o médio, beijando a ponta dos dedos e os elevando em direção ao céu.

O imenso silêncio se fazia presente entre as camadas das rochas que preenchiam a caverna. Qualquer movimento ou suspiro era o suficiente para ecoar por todo ambiente.

Em uma das entradas alternativas da caverna, havia uma superfície plana, com os nomes das pessoas que haviam sido enterradas naquele local, Ilana passou os dedos na grande tábua de pedra, sentindo o relevo das palavras atravessarem as finas luvas que vestia.

Ao notar que Yaco e Filippo estavam muito mais a frente, a garota apressou os passos para acompanhá-los.

— Estávamos atrás do bronze e encontramos o ouro — o olhar de Filippo se preencheu de prazer ao se aproximar de um dos túmulos, que havia um vaso de ouro, com flores recém colocadas, estavam tão frescas que o cheiro das camélias se dissipou pelo ambiente.

— Vou procurar por algo mais ao fundo — Ilana avisou antes de se afastar.

Ela olhou à sua volta, observando os sepulcros e tentando analisar qual deles obtinham mais preciosidades. A grande nobreza de Montuália tinha um extremo cuidado e delicadeza com seus familiares no leito de morte, eles preenchiam os caixões com os bens mais preciosos do falecido, e dependendo da tamanha riqueza das famílias, o mesmo acontecia fora de sua cova, que reluzia o ouro mais puro extraído da terra.

Ilana duvidava que os familiares tivessem tanto cuidado na vida quanto tinham em morte. Enquanto os mortos recebiam prata e ouro, os vivos passavam fome e disputavam por migalhas, não só em sua cidade, mas em outros lugares ainda mais pobres.

Ilana relembrou das noites que dormiu de estômago vazio, revirando de um lado para o outro, pois a barriga roncava e até mesmo doía clamando por alimento.

Ela nunca esqueceria que sua mãe faleceu por inanição, quando se recusava a se alimentar com o pouco que tinha, para que Ilana e Airam tivessem o que comer.

Tânia foi apenas uma de muitas pessoas que morreram por fome durante a grande geada. Algumas mães, em desespero, ofereceram a própria carne para seus filhos se alimentarem, outras, os mataram para que não fosse preciso ver suas crias perecerem com a fome. E assim, tentaram sobreviver durante aquela era mais assoladora de Montuália.

— Grande deusa da prosperidade! — Ilana resmungou, tentando extrair as esmeraldas incrustadas na lápide com uma talhadeira e uma marreta. — Só algumas de suas criações podem desfrutar da prosperidade, não é mesmo?

Mais uma vez Ilana bateu a marreta contra a talhadeira, soltando assim a esmeralda.

Ela guardou a joia em uma bolsa de couro velho, e assim ela permaneceu até arrancar a última pedra.

Ilana chacoalhou a bolsa e as esmeraldas esbarram entre si, fazendo o som ecoar pela caverna. Não muito satisfeita, Ilana caminhou mais adentro do buraco-soturno, à procura de mais bens preciosos que pudesse pegar. Não queria algo que pesasse tanto para não dar trabalho para carregar, mas que fosse caro o suficiente para conseguir uma boa quantia de dinheiro na venda.

Seus pés pararam bruscamente ao avistar uma depressão de água, semelhante a uma cachoeira. Abaixo de seus pés, uma grande piscina natural de águas cristalinas inundava o fundo da caverna e refletia a luz da lua em sua superfície.

Ilana se encantou com a vista, porém em poucos segundos voltou ao foco e começou a andar pelo caminho estreito de rochas, que dividiam espaço entre a parede da caverna e a queda d'água.

Seu corpo se aliviou da tensão assim que ela atingiu um solo seguro. Se Ilana achava que a cachoeira da caverna era belíssima, a imagem à sua frente até perdia um significado concreto do que seria.

Estatuetas de mármore se erguiam do solo, ao todo sete. Ilana não reconheceu quem eram aquelas pessoas. Mas sabia perfeitamente bem de qual império cada uma pertencia devido às características inconfundíveis das criaturas.

A garota passou um bom tempo admirando, as estátuas eram tão bem detalhadas que facilmente poderia confundir com uma pessoa de verdade.

Ela se perguntou como alguém teria uma destreza tão grande para esculpir roupas em mármore, como o fino véu que cai sob o rosto da figura feminina. Que tinha os olhos preenchidos com ouro líquido que escorriam em suas bochechas e respingaram em seus pés descalços.

Ilana tocou em uma das estátuas, essa era semelhante a um lobisomem, que tinha o dobro do tamanho da transformação tradicional de seu povo. Certo que pertenciam a povos antigos, quando o tamanho das criaturas era temido por todos.

A estátua ao lado do lobisomem tinha o corpo levemente inclinado para a esquerda, parecendo estar indicando algo, seguindo seu instinto, Ilana vai na mesma direção, adentrando mais ao fundo na caverna e se aproximando dos jazigos.

A garota olhou mais uma vez para trás, conferindo se alguém não estava atrás de si. E mais túmulos estavam à sua frente, dessa vez as quantidades exatas das estátuas encontradas lá fora. Ilana deduziu a possibilidade dos túmulos pertencerem às estátuas que estivessem do lado de fora.

A garota tocou em um dos túmulos, que se elevava no nível da terra, feito de mármore branco, assim como as estátuas, acima, as lápides com os nomes dos ali enterrados, e um espaço para colocar as velas e lhes dedicar orações.

Ela tocou na superfície de um dos túmulos, sentindo o relevo da abertura dos túmulos, ela tentou erguer algumas vezes, sem sucesso, sua forma humana era fraca demais para empurrar uma pedra tão pesada.

Ilana se sentou no solo e começou a tirar suas botas, em seguida, suas roupas, não queria ter que sair nua daquela caverna após sua transformação, que rasgava suas roupas as deixando ser meros trapos.

Quando já nua, Ilana respirou fundo, antes de se concentrar, saberia que uma terrível dor estava por vir, e por isso precisava relaxar.

Os músculos de seu corpo dobraram de tamanho, as veias se tornaram mais saltadas do que antes, os seus ossos estalaram, quebrando um a um dobrando de tamanho e se adequando a anatomia de um meio humano, meio lobo, pelos rodearam cada centímetro de seu corpo e sua face logo tomou a forma de um lupino, forte e feroz.

Os tampos dos túmulos se tornaram como pena diante do grande lobisomem que revirava os cadáveres um a um, pegando o que fosse útil. Ilana se felicitou por ter seguido seus instintos, pois ali tinha justamente o que ela procurava, pedras preciosas e leves.

— Você ouviu isso? — Uma voz masculina e grave ecoou pelo ambiente, assustando Ilana, que prontamente voltou a sua forma humana e correu até suas roupas e bolsa e se escondeu atrás dos túmulos.

— Está enlouquecendo? Já disse para parar de beber durante o horário de serviço — uma segunda voz, com o tom levemente debochado se manifestou.

— Já te disse que detesto fazer ronda neste local, não é a primeira vez que escuto sons estranhos.

— Quer que chame reforços, ou o medinho já passou? — uma gargalhada veio da segunda voz — Não acredito que você está com medo de sete defuntos que faleceram há séculos atrás.

— Continue rindo, só não me peça ajuda quando a coisa ficar feia.

Escutando a conversa, Ilana revirou os olhos, eram apenas dois guardas bobalhões. Mas que de algum jeito iriam dar trabalho para ela sair dali.

Silenciosamente ela tentou vestir suas roupas, enquanto tentava procurar alguma saída em meio aquela escuridão.

Mas algo acaba lhe chamando a atenção, o último túmulo que ela não havia revirado emanava uma luz roxa de dentro do tórax do cadáver. Algo que ela nunca havia visto em sua vida, ela saiu de trás dos túmulos, e na mansidão, tentou transformar apenas seus dedos nas garras de um lobisomem.

Suas garras vão cortando a camada de tecidos enfaixados, até fazer uma incisão na pele do cadáver, ainda integra devido ao processo de mumificação, suas mãos se aprofundam mais e mais naquela pele rígida até irem de encontro com o objeto brilhante.

Era uma esfera que cabia na palma da mão de um humano, era brilhante como ouro e de pequenas rachaduras que emanava uma luz roxa intensa.

A garota estava encantada, e algo dentro de si dizia para ela não largar aquele objeto. Ilana enfiou a orbe na bolsa e limpou sua mão na parte traseira de sua calça.

Ao olhar para cima, a sua sorte de sair da caverna estava ali, diante do brilho que a luz da lua refletia através do buraco na caverna.

Entretanto, o buraco era muito alto e talvez íngreme para Ilana passar.

Ela checou a saída mais uma vez, era tudo, ou nada.

A mulher subiu em uma das lápides, porém, a estrutura era estreita demais para os seus pés, e isso a fez cair, e o ruidoso som acompanhado de uma dor aguda se agitou em seu interior.

Pelo estampido, os guardas que espreitavam a saída ficaram atentos, e se colocaram em posição de ataque ao alerta que soou.

Ilana engoliu em seco ao ver os olhares dos dois guardas recaírem sobre si. Como sairia dali?

Mais veloz que o vento em uma tempestade, Ilana se transformou novamente na criatura bestial, agora não se importando com a dor, somente em sair viva daquele local.

Os guardas partiram para cima de Ilana, a cercando, mas ela desviou com avidez, pegando com as garras, a bolsa em suas patas, correndo diretamente para a saída.

O guarda mais alto, não mediu esforços, e transformou-se no viril lobisomem, carregando consigo a espada que estava presa em seu boldrié, velozmente, ele correu atrás de Ilana.

Em seguida, o outro guarda comunicou aos demais com um uivo alto e gutural, a fim de anunciar que tinha um perigo iminente.

Ilana se desesperou, seu pequeno deslize, agora colocava a vida de Filippo e seu pai em perigo, tinha urgência em encontrá-los. Mas antes precisava dar um jeito de despistar um dos guardas que estava a centímetros de alcançá-la.

Pensou na possibilidade de atravessar novamente próximo a cachoeira, o espaço era pequeno para um grande lobo poder passar, e isso colocaria em risco a sua própria vida, mas precisava tentar.

Ilana percorreu pelos caminhos rochosos, tentando se lembrar por onde tinha passado, e qual deles daria direto para a cascata de água. Mas os caminhos se tornaram mais longos e cansativos, aquele lugar era um labirinto, e seu pouco conhecimento sobre o local só dificultava.

Por ter seu pensamento focado em apenas fugir, Ilana não se deu conta que estava chamando a atenção de mais guardas, percorrendo pelos mesmos caminhos a qual eles estavam vigiando.

O caminho para a cachoeira estava ainda mais longe e em pouquíssimo tempo o cemitério seria rodeado por mais e mais guardas.

Uma voz lancinante ecoou nos pensamentos de Ilana, parecendo indicar por onde deveria ela ir. Mas ao mesmo momento que ela parecia ajudá-la, também a estava atrapalhando por não conseguir colocar seus pensamentos em ordem.

Ao quase desistir de escutá-la, Ilana percebeu que estava mais próxima a queda d'água, e agradeceu mentalmente por finalmente estar cada vez mais perto da saída.

Cautelosa e ao mesmo tempo veloz, Ilana atravessou o caminho estreito, e ao chegar ao fim, quase caiu na piscina natural abaixo por causa de uma das rochas que acabou se desprendendo. Mas ela chegou segura ao outro lado.

Os guardas abruptamente pararam ao avistar o caminho à frente, os olhos de cor âmbar de um deles fuzilaram Ilana, e suas presas estavam à mostra, como sinal de ameaça. Eles deram meia volta, em busca de outro caminho que dava para o local que Ilana se encontrava.

Os pulmões da garota lobo ardiam, mas não poderia parar por ali, precisava logo avistar a dupla, antes que os guardas cercassem por completo a caverna.

Por sorte, Filippo e Yaco estavam juntos, e no mesmo lugar que antes, Ilana apenas maneou a cabeça para a entrada, não havia tempo para explicação, e nem como Ilana se comunicar verbalmente.

Os dois entenderam o sinal que ela fez, colocaram as bolsas e os materiais juntos e desceram pelo espaço que haviam preparado há dias.

Ilana tentou os guiar em meio aquela noite escura, devido a visão noturna, o caminho se tornou mais claro.

— Aquele uivo era aviso dos guardas? — Filippo perguntou, aguardando uma resposta de Ilana.

— Deveríamos estar atentos a isso — Yaco continuou. — Poderíamos acabar sendo presos lá — o mais velho tentou afastar o gramado em seu caminho utilizando uma talhadeira.

— Foi por muito pouco — retornou Filippo.

Uma força brutal se chocou contra o corpo de Yaco, que caiu abruptamente no chão, face a face, estava um dos guardas transformados em lobisomem.

Os dentes do lobisomem vão de encontro ao rosto de Yaco que se protegeu com o braço.

O mais velho teve suas mãos presas contra as garras do grande lobo, que rosnava em seu rosto, fazendo com que respingos de saliva caíssem em sua face.

Ilana e Filippo tentam ajudar Yaco, porém são cercados por mais três lobisomens da guarda real.

Yaco travava a luta peito a peito com o lobisomem, sua força não era a das melhores, e tentar se transformar naquele momento não seria uma vantagem. Com a força de seu corpo, Yaco tentou afastar o lobo, mas sem sucesso, era sua vida em jogo...

Não, era a sua vida, mais a de seus filhos.

Yaco reuniu forças de onde nem sabia que tinha, encontrando uma brecha , ele soltou uma de suas mãos, e com toda força contida em ódio ele enterrou a talhadeira na mandíbula do lobisomem, uma, duas, três vezes... até o cadáver cair ao seu lado, um som gorgolejante proveio de suas feridas acompanhado de sangue.

O mais velho se transformou em lobisomem, de pelagem preta com alguns resquícios de pelos grisalhos distribuídos por seu corpo decorrente da idade.

Ele avançou em direção aos lobisomens que se aglomeravam ao redor de Ilana e Filippo, com suas garras, ele dilacerou o abdômen de um dos lupinos sem perder tempo.

Ilana finalizou a árdua luta, direcionando suas presas afiadas no pescoço do lobisomem, atingindo a veia jugular, desfalecendo-o no exato momento. Ela sentiu o sabor do sangue quente e férreo se esvaindo de sua boca.

Ainda em ritmo frenético, Ilana avançou em mais dos guardas, desferindo socos a fim de desacordá-lo, porém, o lobo era ainda mais forte que ela.

Agarrando Ilana, o grande lupino ergueu seu corpo e a arremessou contra uma pedra, Ilana perdeu o ar, seu desespero cresceu e a única coisa que ela viu foram grandes olhos amarelos em meio a escuridão.

O guarda ameaçou em dar outro golpe na garota, que se virou às pressas para se proteger e de retornar o ar para os seus pulmões o mais rápido possível.

As vistas de Ilana escureceu, mas não poderia fraquejar, aquele não seria seu fim, não agora.

O guarda foi puxado abruptamente para trás, tendo sua passagem de ar impedida por Filippo que travou seu braço no pescoço do lobisomem, o tal desferiu cotoveladas em Filippo, que retraiu para trás, mas sem deixar de soltá-lo nem por um segundo.

Ilana levantou, e mesmo sem fôlego, ergueu uma pedra, atingindo o focinho do guarda, que caiu no chão no mesmo momento.

Mais uma vez a garota ergueu a pedra, a chocando contra a nuca do guarda, que se abriu, expelindo sangue e massa cefálica de sua cabeça.

Os três correram, dessa vez atentos a qualquer ameaça. Já haviam deixado muitas coisas para trás, mas Ilana não largou um minuto sequer a bolsa, era como se sua vida dependesse daquilo.

Mais e mais guardas surgiram ameaçando a fuga do trio, já estavam fatigados da luta, e enfrentar mais uma dezena de soldados custaria muito mais de suas energias.

Filippo retornou a sua forma humana, tentando correr na mesma velocidade que antes, mas falhou.

— Vão na frente — ele gritou.

Yaco e Ilana pararam no caminho.

— Vou despistá-los, não se preocupem comigo —Filippo se despediu e ressurgiu em sua forma de lobisomem.

Ilana tentou ir atrás dele, mas foi impedida por Yaco, que pôs o seu corpo forte e robusto na frente de sua filha. Ilana gritou internamente, sabia que Filippo não retornaria, seria morto e dilacerado pelos guardas, ele não teria chances, era só um em meio a muitos.

Relutante, ela resolveu deixá-lo ir.

Revisão por: isnandss Projeto WonderfulDesigns

Divisória por: MoonyLaufeyson

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