3. Ozzy

Ísis estranhava constatar que tivera intimidade com um extraterrestre nascido na Terra. Mesmo confirmando nos detalhes o pertencimento de Rígel aos Homo sapiens, foi bem excêntrico. Seu ex-companheiro jamais lhe ofereceu algo similar.

O contexto contribuiu para a satisfação. Afinal, saber que a viagem no tempo rendera provas para pegar os traficantes desencadeou tanto alívio... Não fazia ideia do quão forte eram as sensações liberadas a partir do alento. Que descoberta!

Ambos estavam abraçados no sofá, acariciando-se realizados. Ísis perdera o ex-marido há menos de um ano, mas seu coração desconhecia essa informação. A paixão aflorada foi tão intensa quanto um feitiço do amor. Rígel manipulava magia e, àquela altura, nada era impossível. Contudo, estava tão radiante frente a esse enamoramento que agradeceria até uma manipulação.

Imaginava as três Marias sorrindo para o detetive, sinalizando aprovação. Não era tola, mal conhecia aquele homem. Porém, sua intuição apontava só um caminho. Diante da vastidão do tempo e da imensidão do universo, qual era a chance de dividir um planeta e uma época com ele? Carl Sagan diria para não desprezar o milagre probabilístico.

Impossível saber o fim que o determinismo do Big Bang lhe reservara. Entretanto, sem dúvida as Parcas entrelaçaram seus fios do destino. Ísis apelou à mitologia a fim de explicar a situação, porque seu caráter era certamente mágico. O relacionamento anterior já não mais chegava sequer aos pés do que Rígel a fez sentir em uma dezena de horas.

Nona teceu o fio de seu incipiente amor durante as nove luas de sua gravidez, estopim do seu encontro com ele. Décima cuidava de sua extensão e caminho a partir da lua número dez, quando houve o fatídico sequestro. Restava torcer para que Morta não o cortasse precocemente.

– Agora que está contente, é hora daquela refeição mencionada antes, certo? – O homem estava preocupado. – Quando foi a última vez que você comeu?

Ísis não respondeu ao questionamento, pois estava realmente em jejum há tempo demais. Não se arrependia, já que recebera muito prazer em troca dessa espera extra.

– Vou cozinhar algo então. Como é a dieta por aqui? – A mulher perguntou.

– Não. Hoje você é minha rainha. Que servo seria eu se não lhe preparasse uma comida especial? – Rígel galanteou. – Te apresentarei o melhor da culinária do planeta Solo.

Ísis se surpreendeu. Afinal, sendo cozinheira profissional, sempre foi responsável pela alimentação doméstica. Gostou da nova dinâmica. Seria bom receber um prato de bandeja para variar.

Não se arrependeu. Apesar de falhar em ocultar sua careta perante os esquisitos vegetais alienígenas, o sabor agradou. Isso porque degustou facilmente o mais importante ingrediente: amor.

– Quero ser seu companheiro de verdade, Ísis. Nunca duvide disso. E companheiro é aquele com se partilha o pão. – disse Rígel. Ele expressava desespero, como se temesse rejeição. Por quê?

A mulher sorriu, mas nada disse. A interação com o detetive era repentina demais para imaginar um longo prazo. Conectaram-se misticamente, mas seu ex-marido invadia sua cabeça. Tinha superado seu luto ou empurrara suas dores para debaixo do tapete devido à gravidez? O que essa nova atração significava? Talvez fosse essa rejeição que ele temesse. Por isso, resolveu tranquilizá-lo:

– Não se preocupe, nossa cumplicidade será perfeita. Sinto na alma. – Os olhos de Ísis brilhavam de expectativa.

– Fico feliz pelo momento que tivemos. – Ele dizia com nostalgia, como se já estivessem separados. – Tentei mudar e fazer o certo, mas ainda assim há um preço. Por favor, não me amaldiçoe. – Falava desesperado. – Torço para que me perdoe um dia, pois nunca vou te esquecer. – Seu rosto exibia tristeza.

Ísis ficou confusa. Se não era ciúmes de um companheiro morto, qual era a questão? De repente, seus instintos positivos evaporaram. Estavam na presença de uma bomba prestes a explodir. Explosão essa cuja sonoridade foi um toque de campainha.

Efeito instantâneo: Rígel entrou em pânico. Olhos esbugalhados e membros paralisados. Ficou assim até a campainha soar novamente. Só então, saiu em disparada para atender à porta.

Curiosa, Ísis o seguiu. Desse modo, teve visão privilegiada do visitante e observou detalhadamente as características dos nativos do planeta Solo. Eram bípedes e eretos, possuíam dois membros superiores, não tinham rabo e sua pele era verde. O rosto lembrava um canídeo não identificável. Chacal como Anúbis? Talvez.

O diálogo a seguir foi incompreensível. Rígel conversava com o estranho na língua local. Tudo o que a mulher percebeu foi a tensão no ar, o olhar derrotado do detetive corroborou a percepção.

– Tentei te enrolar o quanto consegui. – Ele abandonou o extraterrestre e se dirigiu a Ísis. – Queria ficar o máximo de tempo possível ao seu lado. Entretanto, devo pagar pelos meus crimes. – Hesitou e continuou. – Órion é meu pai e, Mísia, minha madrasta. Chefiamos o tráfico de bebês terráqueos há 20 anos. Meu nome verdadeiro nem é Rígel, e sim Ozzy.

A mulher travou tentando absorver tais informações. Ele estava por trás do sequestro das crianças? Então o que fazia ali junto dela? Não precisava de tanto para ter êxito. Só que houve um tropeço: não conseguiram fazê-la esquecer suas filhas. Será que tudo o que passaram foi encenação para corrigir esse fracasso? Mas por que revelar o esquema?

Era uma briga mental entre a confusão e a tristeza. Nada fazia sentido. Os momentos junto com Rígel, Ozzy, pareceram tão reais... Não eram necessários para capturar bebês. Aliás, Ísis ainda não os tinha e, certamente, continuaria não tendo caso fosse privada dos portais interplanetários.

Portanto, recusava-se a acreditar em seu envolvimento com Mísia e Órion. Era ilógico. Ele estava sendo ameaçado, era isso. O visitante alienígena viera em nome dos vilões!

Nada ficaria entre Ísis e as três Marias. A adrenalina dominou seu corpo, era o chamado à ação. Aquele canalha veria o poder da maternidade. Ninguém machucaria nem suas filhas, nem Rígel. Pois sim, esse era o nome dele. Quanta palhaçada inventar que era falso. O detetive achou mesmo que ela acreditaria?

Com força e agilidade concedidas pelo mais puro desespero, a mulher partiu para cima do extraterrestre enquanto o xingava. Não que ele fosse entendê-la. O dono da casa, instantaneamente, apartou a confusão e levou-a para longe. Não antes de suplicar algo ao visitante. Com uma poker face desgraçada, o estranho observou os dois se afastarem.

– Se controle! Está doida?! – O homem foi mais ríspido do que gostaria. – Ele é autoridade, vai me prender. – Tentou se acalmar. – Fiz um acordo com a polícia para me entregar. Deve ser assim. – Pegou as mãos da interlocutora e a encarou com olhar sonhador. – Lavarei minha alma para ser digno de você.

– Não precisa inventar história, Rígel. Sei que está sendo ameaçado. Daremos um jeito, é só enganá-lo um pouco mais. A polícia sabe de tudo, logo virão aqui. Esse capanga idiota não nos afastará. – Para demonstrar sua positividade, Ísis tomou seus lábios.

Ela sentia tensão no corpo do outro e esperava que os hormônios calmantes liberados pudessem tranquilizá-lo. Lutaria pelo final feliz de ambos. Estavam tão perto... O momento de desistir já se passara. Em menos de um ano, já experimentara perder gente querida demais. Era um basta.

– Não me apelide assim, sou Ozzy. Disse que me chamava daquele jeito porque era a alcunha capaz de convencê-la. Nomes têm poder. Aceite a verdade. Ela é triste, mas foi-se o tempo em que se podia ignorá-la. – O semblante dele era sofrido, aguardava ser agredido.

Ísis finalmente interrompeu as desculpas, pois era evidente que Ozzy lhe falava sério. Lágrimas invadiram, borrando a vista. A dor no peito era pela enganação ou pela perda iminente de mais prezados? Só sabia que não havia forças para continuar. O espaço ao redor girou e enegreceu. Esperava que o desmaio a levasse para um mundo onírico onde possuir uma família feliz não fosse tão inalcançável.

Retomando a consciência, viu Ozzy ser escoltado da própria casa acompanhado por uma multidão xereta. Seus olhares se cruzaram e ele gritou:

– Ísis, sempre estive do seu lado. Quem acha que sabotou o plano do meu pai de adulterar suas memórias? Eu estava lá, mesmo antes de aparecer no portal. Vimos seu parto pelas minhas lembranças. – Ele não esperava resposta.

Ísis nada compreendia. Sentia-se ludibriada, mas não fora propriamente traída. Precisava de óculos, porque analisava turvamente os eventos. Deveria ficar brava com o falso detetive?

Só queria as três Marias, que ainda não recebera. Por isso, ao aparecerem com elas e abrirem um portal, entrou em êxtase. Sem pensar, pegou as crianças e o atravessou. Até esqueceu o próximo desafio: provar que eram suas filhas a todos que tiveram as lembranças alteradas.

. . .

Mísia e Órion estavam ocultos na multidão observando a traição. O casal foi pego de surpresa, por que essa virada de casaca? O pai não sabia e pouco esforço fez para compreender. Seu estado mental permitia apenas ira, que transbordava do corpo. Logo viraria ação.

Não aceitaria isso de Ozzy. Não só seu sangue corria nas veias daquele canalha, mas também o da maldita Ninféia. Sua ex-esposa lhe dera um golpe fatal na época em que estava desempregado. Um dia, após, em vão, distribuir currículos, encontrou sua casa esvaziada. Via apenas seu filho recém-nascido, pois não havia móveis mais. A mulher desaparecera também.

Estava claro que fugira com os bens de valor adquiridos durante a época de fartura do casal. Aliás, bonança apenas de Órion, nunca dela, que se casou com ele desempregada e se manteve assim. Não tinha nem a desculpa de que seu trabalho era cuidar dos filhos, porque acabava de abandonar o menino Ozzy.

Xilindró, lá que merecia estar aquela víbora! Yaaaah! Zangou-se com a própria idiotice. A ladra já indicara interesses obscuros, mas ele ignorou. Bem melhor investir na confiança matrimonial, não? Como agir nessa situação cada vez pior?

Em meio ao desespero, usou o pouco dinheiro que Ninféia não roubou por estar em seu bolso e apelou ao sobrenatural. Levou a criança em um feiticeiro do nome. Queria que o bebê tivesse mais sorte que o pai. Por isso, chamou-o de Ozzy, homenageando Osíris, no ritual do batismo determinístico.

A grandeza esperada demorou a chegar. Órion já estava desacreditado. De repente, choviam relatos de falhas no horóscopo das alcunhas. "São todos charlatões", diziam. Talvez ele tivesse se precipitado, contudo não choraria pelo leite derramado. Outros assuntos urgiam: contas a pagar.

Desse modo, na ausência de alternativas, tornar-se batedor de carteiras foi o que sobrou para Órion. Invejava aqueles com vida fácil que podiam oferecer do bom e do melhor aos filhos. Já nem sabia se o seu tinha orgulho do pai. Kit-assalto pronto, hora de encontrar vítimas. Eis seu dia-a-dia. Foi nesse contexto que encontrou Mísia, o caminho em direção à glória de Osíris.

Aquilo que outrora foi um oásis se mostrou uma alucinação de um sedento no deserto. Os eventos se encaminharam para uma nova traição daquela sangue-ruim da Ninféia, dessa vez intermediada pelo filho dela. Ah, Órion não seria idiota de novo. Se Ozzy queria ser preso, que se danasse, porém não entregaria seus cúmplices. Dali em diante, o moleque estaria deserdado. Não só simbolicamente do sobrenome, mas do sopro da vida também.

Enquanto isso, Mísia estava curiosa quanto às motivações da rendição. Tinha lá suas suspeitas. Era mais próxima do enteado que o parente consanguíneo, fato inusitado por ter se tornado madrasta de Ozzy só a partir da segunda década dele. Ela imaginava que não se tratava de um ato impulsivo, visto que ele não dava ponto sem nó.

Quando ela atuava com necromancia em órgãos de cadáveres roubados, fora o enteado que a fizera ver ser um ramo falho. Mesmo decorando a melhor bibliografia, a taxa de sucesso ainda ficava abaixo dos 5%. Desse modo, poucos eram os casos de ressurreição em que conseguia vender a quem precisasse de transplante. Geralmente, jazia diante de si o trabalho de roubar um cadáver e fazer sua propaganda. Como diria Cartola, rir para não chorar.

Ozzy sugeriu uma nova oportunidade de negócio, a qual se mostrou mais lucrativa. Ele leu sobre magia genômica e se interessou automaticamente. Os humanos chegaram em Solo há 6 mil anos. Poucos vieram e isso custou caro, porque tantos cruzamentos internos estimularam más combinações zigóticas. Urgia-se uma solução, como a proposta de edição do DNA da magia genômica. Entretanto, ele foi mais inovador ao sugerir importação de crianças.

Claro que a vitória foi por conta do seu olhar de águia. Não toda criança valia a pena ser comercializada. Pegavam apenas os menores de dois anos, dando preferência a filhos de pais solteiros, adolescentes ou pobres e a oriundos de gestação múltipla. Foi nessa última categoria que o mais recente projeto se enquadrou.

Considerando o nível de dedicação de Ozzy em investigar a situação da grávida, Mísia suspeitou haver interesse além do preciso. Ele já obtivera os dados necessários para determinar quando e onde capturar os neonatos e de quem alterar memórias. Mesmo assim, estava constantemente comentando sobre as observações feitas da vítima.

A madrasta deu-lhe uma bronca, pois não era ético espionar pessoas desnecessariamente. Não que a repreensão tivesse funcionado. Sua intuição dizia que o enteado apenas parara de compartilhar suas descobertas. Aquele brilho no olhar que surgia ao falar da tal Ísis dificilmente sumiria. Ele jamais admitiria aos familiares, mas fora contaminado pelo vírus da paixão.

Conhecendo o nome do par em questão, era impossível ignorar o óbvio. Ozzy nunca se importou com o apelido de nenhum dos pais, frieza era a chave do sucesso desse negócio. Aquela mãe era especial, capaz de cativar o até então indiferente ao selecionar os bebês. Mísia suspeitava a causa desse amor repentino, por mais cética que fosse na astrologia das nomenclaturas.

Sabendo que o enteado se afeiçoara, era intuitivo perceber o porquê se entregara. Dizem que o amor era cego e, não satisfeito com sua cegueira, fazia questão de espalhá-la. Rapidamente, o amante também estava na escuridão, agindo com razões obscuras até para a razão, segundo Pascal. Todavia, outros sentimentos também eram enlouquecedores. Um exemplo? O ódio de Órion com a traição do próprio filho.

– Morto não fala. – Sussurrou o pai de Ozzy, mas foi alto o suficiente para sua esposa escutar.

– Mate-o e garanto que eu mesma te denuncio à polícia. – Falou ameaçadoramente, porém atrasada demais.

Mísia nunca concebera e sabia que jamais o faria. Além de sua idade avançada, seu casamento interespecífico inviabilizava uma gravidez da maneira convencional. Portanto, Ozzy era o mais próximo de um filho que sempre teve e sempre teria. Ela o amava como se tivesse saído de seu ventre.

Ver Órion atirar uma flecha certeiramente no peito do próprio filho fez os momentos com o enteado passarem diante de seus olhos. O que mais se reteve foi o jogo de Mehen na semana passada, um momento só dos dois. Ver Ozzy cair sangrando era como ver em loop os dados mostrando o resultado fatal. Na partida, Mísia comemorou. Afinal, a queda dele significava sua vitória. Ali, ela chorou.

Ninguém saía ganhando com uma morte terrível como aquela. Seu marido traiu a própria carne, algo muito pior do que Ozzy fizera. Pois, até então, não havia indícios de que os denunciara. Assistir ao assassinato fez Mísia negar o termo madrasta. Estava muito mais perto da maternidade do que o desgraçado que traiu a própria descendência estava da paternidade. Ah, aquela mãe vingaria sua cria...

– Eu tenho informações para acrescentar ao caso! – Ela gritou impulsivamente a plenos pulmões, na esperança de os policiais escutarem.

Mísia sabia ser esperada pela cadeia. Todavia, estava em paz, já que esse era também o destino de Órion. Quanta maldade havia no coração de um pai assassino do próprio sangue? Os anos no mercado ilegal corromperam tanto a família?

Contudo, não era o fim. Já algemada, a feiticeira decidiu o próximo item da agenda: encontrar Ísis. Graças ao poder do nome, era a única capaz de resolver a situação.

. . .

Naquele dia, um jovem apareceu nas mídias do planeta Solo expondo como descobrira o próprio sequestro. Quando criança, entreouviu que sua mãe não era sua mãe. De repente, tudo ruiu. Abriu-se um buraco no coração, causando fortes apertos no peito. Formou-se um vazio a partir da ausência súbita do sangue familiar. Seu músculo cardíaco tentava trabalhar, mas era impossível.

As cavidades precisavam ser preenchidas ou padeceria, mas como? Apavorado, confrontou seus "pais" e entendeu ter duas famílias: uma que o gerou e outra que o criou. Aos poucos, os batimentos voltaram. Afinal, o sangue emprestado era tão avivador quanto o genético.

Inevitavelmente, ficou curioso por encontrar seus consanguíneos e a razão do abandono. Ainda que temesse um eventual descaso, nunca desistiu de buscar a verdade, devido ao apoio dos pais adotivos.

Descobrir o nome dos pais biológicos realinhou seu espírito. Vários conhecidos comentaram sua mudança comportamental e comparavam as informações do registro com um ano de meditação diária. Até suas alergias regrediram. Contudo, outro choque o esperava: documentos falsificados. Seria impossível encontrar quem sequer existia.

Em vez de procurar a verdade, foi atrás de outros na mesma situação. Afinal, seria inviável rastrear a organização criminosa por trás do tráfico. Entretanto, unir forças com outros na mesma condição era promissor. Juntos, compartilhariam suas dores e tentariam se ajudar. Infelizmente, não identificou ninguém.

Conceber que fora roubado de sua família biológica e entregue à outra, por mais amorosa que fosse, era estarrecedor. Ver os líderes do esquema presos ou mortos compensava? Bob Dylan diria que as respostas voavam no vento.

Total de palavras: 2910

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