Vinte - Madison
Meu primeiro impulso foi levar a mão aos dois colares que rodeavam meu pescoço. Senti o frio da joia que era responsável por nos levar de volta para casa, uma esfera perfeita, e também os contornos do pingente de passarinho que carregava como amuleto. Busquei proteção neles, quando o formigamento na minha pele desapareceu e me vi em uma nova sala cheia de espelhos. Sozinha.
Sozinha, com exceção apenas do meu reflexo.
Tudo em volta estava a meia luz, iluminado apenas por luzes pálidas que pareciam vir de dentro dos espelhos. O chão era apenas uma pedra um pouco áspera, indo no corredor infinito para a minha frente e nas costas também. O cheiro naquele lugar, parecia uma mistura de biomas, uma brisa leve trazia cinzas e maresia à minha volta, mas o ar era úmido e tropical, e um gotejar leve dava um ar de esgoto. Encarei os espelhos por um momento, suspirando, enquanto tirava a túnica até a cintura, onde acabava a regata preta, amarrando as mangas no quadril.
Reparei que as pontas dos meus cabelos estavam mais curtas, chamuscadas e com cheiro que cinzas até agora, completamente queimadas. Provavelmente, era daqui mesmo que o cheiro de cinzas vinha. Suspirei, amarrando o cabelo.
Assim que voltei ao espelho para olhar o resultado, o rabo de cavalo no reflexo parecia maior, mais cheio, e as pontas chamuscadas haviam desaparecido. Franzi as sobrancelhas, e nesse ato reparei que estavam feitas. Eu não havia feito a sobrancelha antes de sair para a missão... Os lábios que eu sentia estarem rachados, pareciam rosados e hidratados no reflexo, e até mesmo meu corpo estava mais curvilíneo.
Até que o reflexo cruzou os braços, sem que eu mesma tenha feito isso.
Arregalei os olhos, praticamente saltando para trás. Estava muito perto dos espelhos, e a lembrança do que o próprio Espelho tinha dito voltou a minha mente, reverberando fiquem longe dos espelhos. Engoli em seco, reprimindo um grito.
— Nunca imaginei que a Força faria essa cara de medo ao encarar seu próprio reflexo.
A voz era minha, o rosto era meu, o corpo era meu. Ela falava de um jeito parecido com o meu, apesar da voz parecer ecoar pelo corredor, vindo de todos os lados. Mas a expressão que aquela garota fazia, o brilho opaco naquele olhar, não tinha absolutamente nada a ver comigo. Minha boca secou, e a única coisa que consegui dizer foi.
— Eu sou a Força, não a Coragem.— Incrivelmente, a voz estava firme e calma. Estreitei os olhos.— E quem seria você?
— Eu sou você, Madison, não é óbvio?— Revirou os olhos, a escuridão dentro daquele olhar se revirando junto. Aquele movimento foi a confirmação de que o que dizia era mentira. Aquela moça, encarou meu rosto, idêntico ao seu, vendo que eu não acreditava em uma palavra do que ela dizia. Então continuou.— Sou teu reflexo. A total e absoluta verdade sobre você querida. E a melhor versão de ti, preciso frisar.
— A minha melhor versão tem cílios que batem nas sobrancelhas?— Fiz uma careta de insatisfação, um sorriso irônico de canto de boca. O eco da voz dela me dava calafrios.— Por que está aqui?
— Me responda você. A única coisa que sei, é que O Espelho mostra o reflexo de alguém, se algo dentro dessa pessoa precisa ser concertado. Então me diga você, por quê estou aqui?
A resposta, tão clara, que por bem ou por mal vinha de mim mesma atacou fortemente meu ego, e a verdade que formigava dentro da minha pele. Mesmo assim, respondi:
— Não sei exatamente. Mas já que está aqui, não faz mal me ajudar a encontrar o que preciso.— Me adiantei um passo para o espelho, tomando cuidado, mesmo que ainda estivesse um pouco longe.
— Madison Haybran Roberts, qual parte você não entendeu que eu sou você? O que você não tem as respostas, porquê eu teria?
Ouvir meu nome sendo dito por meu próprio reflexo era assustador. Um arrepio percorrer a base da minha coluna, fazendo um suspiro de cansaço passar pelos meus lábios. Olhei para o outro lado do corredor, os olhos cerrados com uma dor de cabeça enorme, fugindo deliberadamente da visão de mim mesma. Percebi no momento seguinte o quão perturbador era estar à frente de um espelho e não ver seu reflexo. Até mais perturbador do que ve-lo, e não aprovar a visão.
Ignorei a presença do reflexo, escolhendo qualquer lado para começar a caminhada. Poderia esquecer que ela estava presente, esquecer daquele momento por enquanto e voltar a atenção para a missão que precisava cumprir.
— Dona Lena nos ensinou a ser mais educadas, poderia olhar para mim por um momento ao menos?— Parei a caminhada, a bota emitindo um barulho alto, derrapando. Com o olhar com que encarei aquele reflexo, poderia ter fuzilado dez pessoas de uma vez só.
— Não ouse dizer o nome dela, ela NÃO é a sua mãe!
— Quantas vezes vou ter que repetir...
— Não se dê ao trabalho. Eu, não sou você.
E voltei a caminhar, agora completamente decidida a esquecer da presença dela ali. Aquele ser, que mentia descaradamente ser eu, sinceramente, não tinha a menor importância nesse momento.
A caminhada pelo corredor extenso tinha feito minhas pernas latejarem, reclamando pela falta de descanso já a muito tempo. A batalha contra Alexandrer, e contra aquele grupo poderoso e inteligente parecia apenas um eco distante agora, desaparecendo junto ao som das minhas botas no chão. Parecia que aquilo aconteceu anos atrás.
Notei que o corredor começava a se alargar, a distância que eu deixava entre meu corpo e os espelhos, por precaução, ficando cada vez maior. A luz baixa e branca, doentia, se tornou avermelhada, como a de tochas, quando o corredor se abriu em uma sala arredondada, ainda mais escura que os corredores, com cheiro de brasas queimando impregnado no ar.
O calor fez suor escorrer na minha têmpora instantaneamente. A luz avermelhada, não vinha de dentro dos espelhos, mas sim de fontes de lava borbulhante, fogo líquido, que soavam altas e constantes.
— A primeira provação. Espelho realmente sabe o que faz...— A garota do reflexo murmurou.
— O que quer dizer com provação?— Perguntei, subitamente retomando o interesse que tinha por aquele reflexo.
— É uma das poucas coisas que sei, uma das que você preferiu não pensar.— Anunciou, encarando meus olhos tão profundamente que os desviei, incomodada.— Não seria tão simples, procurar uma joia qualquer em meio a um labirinto, calma e controladamente. Alguma coisa nesse labirinto teria que dificultar.
— Uma prova. Tem algum objetivo nisso?— Indaguei, a mão pousada na guarda da minha espada.
— Não sei, provavelmente. Tudo sempre tem um objetivo certo?— Disse, baixinho.
— É...
Do outro lado da sala, se estendia novamente, mais um corredor infinito. Finalmente dei o primeiro passo dentro da sala, sentindo o bafo quente atingir meu rosto. Era rodeado por lava, e bem no centro, um poço incandescente, parecido com um pedestal, chiava, dois degraus acima do nível do resto da sala. Pé ante pé, observei a volta, as sobrancelhas unidas, prestando atenção.
Nada aconteceu.
Soltei o ar profundamente, os ombros relaxando, mas antes mesmo que conseguisse atravessar a sala correndo, como era meu plano, o chão tremeu, fazendo um som incrivelmente humano.
O som de uma risada.
O poço no centro da sala transbordou lava, o calor absurdo que fazia dentro dele escorrendo pelos degraus, corroendo e se solidificando na escada, uma camada negra de cinzas ficando depois da lava secar. O som da risada aumentou, como se algo estivesse subindo daquele poço, mais e mais perto a cada segundo. Desembainhei Incandescente, prendendo o ar quente na garganta. Dava pra sentir aquilo subindo, aquela coisa abrindo caminho, criando passagens pela lava, como... Como se não passasse de água. Eu conseguia sentir a lava procurando novos espaços, borbulhando, pedindo controle que não tinha sozinha.
A coisa que emergiu de dentro daquilo, triturou completamente toda a sanidade mental que eu tentava ter. Não sabia se o que escorria pelas minhas bochechas agora era apenas suor, ou lagrimas.
O primeiro a aparecer foram os cabelos, despenteados, escuros como os meus, surgindo em meio ao fogo sem nenhum arranhão. Então o rosto, as bochechas salientes, os olhos que brilhavam não mais com a rebeldia de sempre, mas com fogo, puro e destrutivo. Então o corpo esguio para a idade, magro e juvenil.
Aquilo era ainda mais doentio do que encarar seu próprio reflexo.
Não tive duvidas que agora estava chorando, descontroladamente. Os soluços escapavam de dentro de mim, e eu não conseguia segura-los, assim como Incandescente escapava entre meus dedos, sem forças. A espada só continuou segura em minhas mãos, graças ao resquício de Escolhida que ainda pulsava dentro de mim, gritando que era tudo um truque. Ele não podia estar ali, estava em casa, seguro, provavelmente ouvindo um rock no último volume pelo computador.
Minha marca brilhou intensamente, misturando-se ao vermelho pulsante da lava. Aquilo foi como uma ancora, jogada em um mar revolto, me trazendo de volta a realidade.
Ele comprimiu os lábios finos, iguais aos do nosso pai, dando dois passos na minha direção, degrau por degrau da escada. A pele estava fina e sem nenhuma mancha de espinhas, deixando ele mais bonito do que eu me lembrava.
Empunhei Incandescente, o que o fez abrir um sorriso de orelha a orelha. Um sorriso, que me fez ter certeza que aquele que estava bem ali, na minha frente, não era meu irmão.
— Madi...— Disse. Seu rosto era amigável, gentil. Ele parecia feliz em me ver...— Madi, senti tanta saudade de você!
Me arrepiei inteira, os pelos dos braços eriçados. Minha confiança vacilou, assim como minhas pernas ao dar um passo para trás. Não era Wesley. Wesley jamais diria que sentiu saudades, não distribuía quele sorriso gentil para qualquer um. Desde que papai se fora... Eu nunca mais tinha visto aquele sorriso.
Ele tentou me dar um abraço, mas me afastei, colocando Incandescente em posição de defesa. Resquícios de lava ainda grudavam na sua pele, nas suas roupas. Lembranças de que aquilo foi uma coisa criada agora, não tinha nada do Wesley como eu conhecia.
— Madi, por que esta fugindo de mim? Sou eu, o Wesley!— Franziu as sobrancelhas confuso, mostrando a si mesmo com as mãos. Uma gota de lava pingou perto demais de mim, consegui senti-la escorregando pelas roupas.
— Você não é o meu irmão...— Respondi, a voz chorosa
Aquele ser pareceu não entender, fazendo a expressão de confusão comum em Wesley. Mas ele estava próximo o suficiente para que eu conseguisse enxergar dentro daqueles olhos castanhos, e não havia um pingo de surpresa neles. Aquela coisa esperava que eu soubesse que não era meu irmão, apesar das semelhanças seres incríveis.
A saudade dentro do meu peito apertou, com um fisgada profunda. Sentia tanta falta de Wesley, por pior que ele possa ser, por piores que sejam as coisas que dizia... É meu irmão.
— É claro que você não lembra de mim... Você, não é a Madison que eu conheço.— Anunciou.
Me obriguei a pensar que aquilo era uma estratégia. Me obriguei a segurar mais forte a espada, a suspirar fundo, a sentir a Marca brilhando levemente agora. As únicas coisas que poderiam me manter de pé nesse momento. Aquela frase, mesmo não devendo, atingiu um ponto dentro de mim que estava frágil. Mesmo assim, consegui responder.
— Você não é o meu Wesley.
Os olhos dele concordaram, apesar do rosto parecer desolado de tristeza. Sem dizer mais uma palavra, ele me empurrou, com uma força descomunal, para cima da lava que rodeava a sala. Escapei por pouco, tropeçando nas botas e no tecido sobrando da túnica que usava. Ele deu um salto para perto, os punhos fechados contra mim, desferindo dois socos. Um deles errou, o outro, consegui com que Incandescente segurasse o golpe.
Soltei o ar, sem perceber que não estava respirando, e isso me tomou o tempo que poderia desviar da rasteira certeira que ele me deu, fazendo com que ficasse com as duas pernas no ar. Assim que a gravidade do planeta fez seu trabalho, bati a cabeça com tudo no chão de pedra, minha mente girando. A força sumiu dos meus braços, me fazendo largar a espada no chão, tilintando.
Ele pegou a guarda cravejada de rubis da Incandescente, enquanto minha mente girava e girava.
— Sabe... Acho que você não vai mais precisar dela...— Riu, olhando a lâmina minunciosamente.
Aquele ser se ajoelhou ao lado da poça de lava mais ao canto, parecendo infinitamente satisfeito com o que estava fazendo. Eu não consegui reunir força o suficiente para gritar ou negar, quando ele imergiu Incandescente na lava até a guarda, e imaginei a lâmina derretendo e virando líquido. Ainda sorrindo, ele tirou a guarda de perto do calor, e consegui virar a cabeça o suficiente para cima, encarando o rosto tão parecido com o de Wesley.
Mas ele não estava mais sorrindo.
A lamina de Incandescente soltava calor em ondas, a cor prateada completamente vermelha, como se tivesse acabado de sair da forja. Uma lembrança fez com que o alivio percorresse meu corpo, fazendo até mesmo minha mente girar menos. "O metal dessa espada é a prova de calor, espadas como essa são forjadas cortando aço, não derretendo". Incandescente era dura na queda.
Como se tivesse tido uma ideia muito melhor, ele se adiantou para onde eu me encontrava, ainda jogada com pouca força no chão. Percebi em seus olhos, que usaria minha própria espada contra mim. Mesmo que minha pele seja a prova de calor ou fogo, duvido que esteja protegida da lamina afiada.
Suor frio escorreu pela minha clavícula, e forcei os braços para levantar. Eles fraquejaram, e não consegui força o suficiente para isso. Estrela pipocaram na minha visão, e tive que fechar os olhos por causa da dor. Por Universo, que Destino me proteja e a espada tenha perdido completamente o corte depois da lava.
Esperei o golpe vir. Tinha que ser forte o suficiente para segura-lo... Mas ele não veio, e demorei mais de um momento longo para perceber o que tinha murmurado, a voz que tinha saído como o vento da minha boca. Uma palavra. Socorro.
Um feitiço.
A espada estava parada no ar quando abri os olhos, arregalando as íris escuras, e vi que ele levantou novamente Incandescente, tentando me atingir com mais força. Mas, a espada pareceu ricochetear no ar, forçando a barreira invisível de uma maneira que tremeu minha consciência, incapaz de continuar seu caminho. Um escudo de magia.
O sorriso que veio naturalmente no meu rosto foi a experiência mais satisfatória. Tinha conseguido fazer um feitiço, que provavelmente tinha salvo a minha vida. Sorri, me arrastando para trás. Apoiada nos cotovelos, consegui me por de pé o suficiente para olhar o falso Wesley. A força estava voltando aos poucos, mas a dor que irradiava na minha cabeça era assustadora e desnorteante.
— Essa espada é minha.— Disse, abrindo um sorriso de canto de boca.
Dei um soco na mão dele, fazendo a espada cair bem perto de nós. Novamente fechei a mão em punho, mas dessa vez, o soco foi direcionado para o nariz daquele ser. Não era Wesley, mas acabei por descontar algumas das vezes que quis socar a cara dele naquele momento, colocando mais força do que seria preciso.
O que escorreu pela minha mão não foi sangue, mas lava quente no lugar, saída do nariz quebrado do falso Wesley. Nem ao menos tinha sentido qualquer calor com o toque do fogo líquido na minha pele, era como água morna, apesar de parecer um pouco mais viscosa. O ser caiu no chão de costas, desnorteado, e chacoalhei a mão dolorida do soco.
— A espada, pegue ela e acabe com ele de uma vez por todas!!!— O reflexo, que observava tudo em silêncio dos espelhos pela sala até agora, gritou. Peguei Incandescente, tremendo, exitando um pouco em coloca-la na bainha. Ao ver minha exitação, a Madison do reflexo continuou.— Ele merece isso, brincou com você, brincou com teu irmão. Você é forte demais para deixa-lo aqui, essa é uma pena muito boa para esse ser!
— Ele não é nem de verdade...
— Por isso mesmo! Não tem família, não tem pessoas que o amem, não tem ninguém, é só uma distração criada para te machucar. Destrua esse ser! Vingue o que ele fez contigo!
Olhei o falso Wesley, o fogo carregado de orgulho dentro dos olhos dele incitando cada pedaço meu a fazer exatamente aquilo. Minhas mãos coçaram para cravar a espada nele, bem fundo, apenas por que podia. As ondas de calor que Incandescente soltava diziam que a espada merecia aquele prazer, eu merecia aquele prazer, mesmo que culpado, de destruir ele. Minha mente sussurrava ao pé do ouvido para isso, a voz macia e doce.
Mas aquele rosto me remetia a saudade. E saudade, me lembrava não só minha família de sangue, que havia ficado em Amethystus, mas a família que tinha o poder de proteger em um cordão no pescoço, e que também caminhava pelo labirinto, passando por provações e perguntas como eu. Isso só me dava uma conclusão:
— Não vale a pena.
Embainhei Incandescente com aquela frase, a bota chiando quando virei nas canelas e corri, a toda velocidade para o próximo corredor.
Tem alguém ai que vai me matar por eu ter mexido com o Wesley... Mas não era ele minha gente, vocês sabem que o irmão da Madi não tem sangue de lava kkkkk. Esse capítulo é importante pra história desse livro, para o por quê esse labirinto é tão perigoso... Coloquem suas opiniões e teorias nos comentários, e não se esqueçam da estrelinha linda que me ajuda demais!!!!
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