Vinte e um - Lucas

Era estranho estar sozinho. Tinha me acostumado a sempre estar cercado pelos outros Escolhidos, pelas vozes, pelo barulho quase constante da lava-louça funcionando ou das ondas da praia quebrando. O silêncio do corredor vazio incomodava.

Atrás de mim tinha só um espelho sólido, e a frente, um corredor comprido, meio escuro. Respirei fundo quando tirei o capuz que estava nos meus olhos, começando a caminhar. Eu esperava um reflexo de todos os lados, achei que veria vários de mim, mas apenas o espelho na minha esquerda refletia. Era estranho, por que o reflexo estava pelo menos um passo mais atrás do que eu realmente estava...

Andei mais rápido, podendo jurar que o reflexo tropeçou pra me acompanhar. Parei, olhando desconfiado. Dei um passo para o lado, mas o reflexo parecia cansado demais pra fazer isso também, e ficou parado, as pálpebras caídas.

Dei um grito quando percebi isso.

— Você é muito rápido pra acompanhar...— O reflexo disse meio que resmungando, olhando o chão com a cara triste.— Eu não conseguiria ser assim igual você...

Aquilo me fez tremer, arrepiado. Aquelas frases eram tão familiares.

— É de você que aquela voz estava falando quando disse pra ficar longe dos Espelhos?— Perguntei, juntando as sobrancelhas.

— Eu não sei... Mas não teria coragem de atacar, nem se quisesse.— Choramingou, abraçando o próprio corpo.

O reflexo parecia igual a mim, mas se olhasse com calma, a cor dos cabelos estava mais opaca, os olhos não tinham nenhum brilho, o verde mar parecendo mais castanho, e os músculos que cultivei indiretamente durante os anos de carpintaria e ajuda na fazenda dos meus pais, pareciam atrofiados, menores. O reflexo parecia morrendo de medo de alguma coisa invisível.

— E você seria...?

— Teu reflexo. Eu sou você, a maior parte de você...

Balancei a cabeça, meio que negando o que ele tinha dito.

— Por que esta aqui?— Continuei.

— Não sei, você que precisa me responder isso. As pessoas só veem seu reflexo se tem alguma coisa incomodando...— Suspirei fundo, e o reflexo se encolheu, como se eu estivesse prestes a atacar ele. Tentando se acalmar, ele disse, mordendo a boca por dentro.— Deve ser estranho estar cercado de espelhos e não ter um reflexo...

— Já é um pouco estranho só ver um reflexo.— Brinquei, esboçando um sorriso. Mas aquela pessoa, igual a mim, mas diferente, se encolheu.

— Desculpe... Deve ser muito ruim mesmo...

Sua voz foi sumindo e sumindo, como se estivesse com vergonha de falar. Aquela ação era tão familiar que quase me encolhi também.

— Não, não foi isso que eu quis dizer, fica tranquilo...— O reflexo encarou o chão, mais triste e parecendo desamparado. Quase quis dar um abraço naquele ser, mas o aviso de Espelho me impediu.

Ao invés disso, só virei pro corredor e voltei a andar, pedindo ao Universo que ele viesse atrás de mim.


Parecia que tinham se passado horas enquanto eu caminhava. Já tinha virado em bifurcações nos corredores, encontrado salas sem saída e voltado pra tomar outro caminho muitas vezes. Estava cansado, e meu corpo inteiro reclamava. Não queria parar, quanto mais rápido achasse a pedra, mais rápido poderia dar um jeito de avisar aos outros.

Essa era uma coisa que me incomodava um pouco. Se um de nós encontrasse a joia, qual seria o próximo passo? Como reunir todo mundo? Só Madison tinha nossa passagem pra casa, mas de nenhum jeito um de nós ia ficar pra trás...

Meus olhos piscaram de sono. Com aquilo, decidi que já era hora de parar, precisava de um descanso, apesar de não querer muito.

Sentei no chão de pedra, e o reflexo se sentou também, agradecido pela pausa. Procurei água e alguma coisa pra comer na mochila, olhando o pacote de bolacha aberto e um pouco mole, sentindo uma saudade absurda da comida de Kille... Tentei não me importar com o gosto meio arenoso, bebendo a água como se fosse a última garrafa desse mundo, meu corpo agradecendo.

Tirei o saco de dormir de dentro da mochila, me enfiando dentro dele em busca de conforto. Coloquei Anêmona por perto, à distancia de um braço, para o caso de alguma emergência e comecei a encarar o teto espelhado, vendo que agora, aquele reflexo me encarava dali, também dentro de um saco de dormir, as minhas coisas espalhadas pelo chão. Meu corpo relaxou inteiro, agradecendo pela parada.

Dormir um pouco não faria mal. Acordaria com a mente mais alerta e descansada... Só pedia que Universo impedisse qualquer coisa de me atacar. Atingir alguém dormindo era uma covardia imensa...

Deitei a cabeça, acalmando o corpo. Os músculos se distenderam em resposta, felizes pela pausa. Não demorou nada pra que eu estivesse praticamente desmaiado, aproveitando um sono profundo.


O ruim de dormir no sótão de uma casa de madeira, era que os sons chegavam de todos os lados. Parecia que a madeira não conseguia segurar as vozes do outro lado, e tudo o que acontecia nos andares de baixo chegava até o meu quarto. Muitas vezes eu odiava isso... Não queria ouvir, não queria saber, as vezes pensava que a ignorância desse tipo de acontecimento era uma benção.

Mas mudava completamente de ideia, quando o barulho da minha mãe batendo as unhas no móvel do telefone sumia, e o barulho da porta batendo tremia toda a estrutura da casa. Quando eu era mais novo, meus avós costumavam vir até meu quarto nessas noites e dormir comigo. Era reconfortante sentir o coração da vovó batendo, e a voz de vovô quando tentava me acalmar.

— Dorme Lucas... Tudo está bem, você precisa descansar.— Ele dizia, tossindo baixinho pelos anos de tabagismo.

A dois anos, vovô sofreu um derrame, e vovó não teve mais paciência para vir me acalmar com o homem que amava desde nova quase vegetando ao seu lado na cama. Mesmo quando vovô melhorou, voltou a falar, andar e comer sozinho, tudo isso com dificuldade, nenhum dos dois tinha disposição pra continuar fazendo aquilo comigo. Eu não podia reclamar, quatorze anos já era uma idade pra não precisar mais desse conforto.

A porta já tinha batido. Era de madrugada, mas eu não conseguia dormir. Tinha crescido quase vinte centímetros desde o ano passado, e a cama que antes era enorme, agora parecia pequena pro meu tamanho. Talvez pudesse construir outra sozinho...

Alguma coisa quebrou no andar de baixo. Me encolhi. Pelo grito que minha mãe deu, de dor e fúria, poderia cogitar que foi o conjunto de louça que os dois ganharam de casamento, o que minha mãe jamais tinha encostado, deixando guardado para uma ocasião especial que nunca chegou. Era uma das únicas coisas importantes o suficiente para fazer Erielle Portman Hallo gritar de fúria naquela casa.

O grito seguinte foi de dor. Não foi acompanhado de nada quebrando, além de provavelmente o nariz de mamãe.

— MARCOS, PARA COM ISSO, PARA!!!— Ela gritava.

O golpe seguinte fez com que eu pulasse da cama, as mãos tremendo, andando de um lado para o outro no carpete. Meu pai chamou mamãe de todos os nomes que vieram a sua mente, cada um acompanhado de um grito, resmungo ou gemido alto e dolorido. Cada um parecendo atingir um ponto especifico dentro de mim, em desespero. Meu pai gritou, dois baques altos fazendo barulho. Um da cadeira que provavelmente minha mãe quebrou nele, outro do soco que ele atingiu nela.

Corri, minha mão na maçaneta da porta.

Eu estava prestes a abrir, mas parei. Você já tem quatorze anos Lucas, você cresceu, não é mais aquela criança... Você... Você pode defender ela... Mas ele ainda é maior, ainda tem mais músculos, ainda poderia te matar se quisesse, você não passa de um carneirinho perto dele, sua mãe ainda é maior que você Lucas... Ela ainda tem mais coragem que você.

Sentei no chão, as costas na porta de madeira, o choro saindo descontrolado. Chorar não lavava o medo que eu sentia, não conseguia levar embora tudo o que me dava medo... Não conseguia me dar coragem o suficiente pra descer e defender minha própria mãe...

Covarde... Eu era tão covarde...


O suor escorria de todos os meus poros, quando acordei com um salto, o calor se misturando as lagrimas que escorriam, rápidas e pingavam no meu colo. Eu nunca tive pesadelos com aquilo... Nunca tive o peso daquilo nas minhas costas...

Funguei profundamente, abraçando as pernas em posição fetal, tentando me proteger pelo menos um pouco das lembranças. Deixei que as lagrimas viessem, trazendo com elas o medo e a vergonha de não ter defendido minha mãe naquele dia, de não ter tirado pelo menos aquela dor das costas dela...

De ter sido tão covarde.

Subitamente, o reflexo com cara de choro, triste e com medo, apagado completamente do que eu tentava ser hoje em dia, não parecia mais tão diferente assim...


Ultimo capítulo que já está escrito minha gente, um dos mais rápidos de escrever, mas um dos mais tristes. Vocês sabem que todas as pessoas que são escolhidas para alguma missão importante tem um passado um tanto triste, na minha opinião, o passado é o que constrói o herói. E olha... Nossos Escolhidos tem passados bem tristes... Vocês entenderam o que aconteceu no sonho do nosso Lucas? Coloquem suas opiniões e teorias nos comentários e não se esqueçam da estrelinha linda que me ajuda demais!!!

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