Quatro - Lucas

Nos deram alta daquela ala hospitalar quando a noite estava quase chegando. Felin simplesmente tacou o dane-se para Helena, quando ela pediu para trocar de roupa como Madi fez, mas acho que Helena deixou de insistir quando Felin a ignorou pela quinta vez.

A luz desaparecia mais e mais nas janelas da casa. Finalmente Kortry abriu a porta, encarando um a um antes de deixar a gente sair, a exigência no olhar.

O cheiro de maresia veio junto com uma brisa quente da estação. O Ferix* desse ano, estava estupidamente quente. Um prato cheio para eu usar minha prancha, que já não usava a muito tempo...

Meu quarto parecia estar intocado, do mesmo jeito que eu deixei quando saímos naquela manhã. Nossa... Aquilo parecia ter sido a vidas atrás, mas não tinham passado nem ao menos 72 horas.

Tudo estava realmente igual...

As paredes de madeira escura eram revestidas para ter aparência de tábuas, o carpete marrom claro, a cama de casal rustica e de madeira, colocada no canto do quarto, a roupa de cama e as almofadas de um tom de azul forte com detalhes brancos, ficava bem embaixo de onde o teto triangular da casa ia se fechando, dando uma aparência de sótão para o quarto. A única janela era bem grande, o batente da mesma cor das paredes, onde em frente uma escrivaninha de ferro e madeira estava, com uma luminária azul de decoração, junto com muitos livros e aleatoriedades que eu jogava por ali. Ao lado, um notebook azul meio acinzentado brilhante, que não era meu antes de chegar aqui. A cadeira da escrivaninha era azul da cor da roupa de cama, e devia dizer que era muito confortável. As luminárias rusticas no teto feita de bambu, imitavam galhos de arvores retorcidos, com pequenas esferas azuis com as lâmpadas dentro. O armário enorme, do mesmo tom de madeira do quarto, tinha seis portas, uma delas com um grande espelho de moldura azul, e duas delas eu ainda nem usei, por falta de roupas para colocar ali. No cantinho do quarto, estava uma torre que se parecia muito com uma torre de arranhador para gatos, mas adaptado para um furão, que era onde Jeniffer passava a maior parte do tempo, dormindo ou brincando entre as aberturas e comendo nos potinhos da base.

Igual eu tinha deixado. Igual meu quarto em casa...

Coloquei mais comida no potinho de Jeniffer, tirando a ração de dentro do armário e vendo o focinho rosado da minha furão albina sair de dentro de uma abertura, me olhar por um segundo, esperando carinho. Passei dois dedos por todo o pelo branco da cabeça da furão, sentindo que ela sorria pra mim. Aquela coisinha frágil e inofensiva...

Jeniffer tinha aparecido perto da fazenda da minha família, na mata, enquanto ainda era um filhotinho que cabia na palma das minhas mãos. Naquela floresta era comum terem furões e outros animais pequenos, mas eram animais com pelagem castanha e alaranjada, para se misturar entre as folhas secas e arvores. Jeniffer era como um farol no meio da mata, não duraria um ano sendo tão branca. Então, acolhi ela em casa, meio escondida para que meus pais não vissem, já que se recusavam a ter mais algum animal doméstico. Eu consegui esconde-la todos esses anos... Deveria ser quase como um milagre.

Tirei a camiseta por causa do calor, jogando ela nas costas da cadeira do computador, me jogando na cama e bagunçando os lençóis. Encarei um pouco do teto de madeira, antes de procurar meu celular embaixo das almofadas, conectado no carregador e na tomada atrás da cama.

14 chamadas perdidas Pai

Meu pai... Ah, as coisas ficariam bem piores agora...

Marcos Hallo. Meu pai. Ele era o homem mais turrão que eu já tinha conhecido, filho mais novo que acabou por cuidar dos pais depois que o irmão mais velho saiu de casa. Nasceu em uma fazenda, na mesma fazenda em que ele mora com minha mãe e meus avós até hoje, e aprendeu desde criancinha a cuidar de todos os animais (coisa que ele fez questão que eu também aprendesse). Tem um pensamento atrasado de que homens e mulheres tem um lugar na sociedade, bem demarcado, e colocou isso bem claro no casamento. Eriele Portman, minha mãe, nunca pareceu muito incomodada com isso, mas tenho dó dela, por tudo que minha mãe trabalha em casa. Sempre que pergunto porque mamãe se submete a isso, ela responde que ama meu pai e desconversa. Isso me dói um pouco.

Suspirei fundo antes de apertar o botão para retornar a ligação.

_ Lucas, onde você esteve?_ A voz grave e acusadora do meu pai veio do outro lado da linha, tão alta que afastei o celular do ouvido. Se aquilo não era gritar, eu não sabia mais o que era.

_ Oi pra você também pai..._ Murmurei de volta, me segurando para não rir do tom debochado que falei com ele, em comparação com a voz grave que me perguntou.

_ Vai me responder ou não?

_ Meu celular quebrou, fiquei esse tempo para arrumar. Como vocês não tem internet, não pude falar com vocês._ Menti, descaradamente, aproveitando para alfinetar meu pai e seu atraso com relação ao resto do planeta. Eu quase conseguia ver ele trincando os dentes do outro lado da linha.

_ Por acaso você ficou mais insolente do que já era com esse intercâmbio garoto? Não sou seus amigos!_ As vezes eu esqueço que meu pai era um candidato perfeito ao general do exército, desperdiçado como fazendeiro de uma cidadezinha... Que eu nunca esqueça de não revirar os olhos na frente dele, como fazia agora.

_ Perdão pai._ Murmurei para ele, diminuindo o tom de voz. Eu odiava ter que fazer isso, mas Marcos Hallo não era um homem de meias palavras._ Mamãe está por aí?

Ele nem se deu ao trabalho de responder. Ouvi sua respiração se distanciar do bocal e ele gritar o nome da minha mãe para o vento. Colocou o telefone na mesinha em que deixavam com um baque e saiu, para dar lugar segundos depois à minha mãe.

_ Lucas? Meu amor, está tudo bem?_ A voz fina e preocupada dela apareceu na linha, e não contive o sorriso, já imaginando que ela tamborilava na mesa, fazendo as longas unhas baterem na madeira. Meu sorriso aumentou quando ouvi o leve tec tec tec de unhas ao fundo, confirmando minhas teorias.

_ Estou muito bem mãe, aqui é incrível!

_ Você tem comido direito? Lavado suas roupas? Se cuidado bem?_ Ela fez uma pausa, esperando, mas antes que eu puxasse o ar para falar, continuou._ Você está morando com outros jovens, não quero que pensem que meu filho não sabe cuidar de si mesmo!

_ Está tudo bem mãe, temos muitas regras de convivência aqui. Garanto para a senhora que não pensam isso._ Eu não podia realmente garantir pra ela. Mas isso, minha mãe não precisava saber, ela sempre se preocupava muito comigo.

Encarei Jeniffer, que tinha colocado os olhinhos brilhantes para fora da torre, observando minha conversa quase com curiosidade. Ela entrou de novo, guinchando levemente, o que fez eu prestar mais atenção nela.

_ Manda mais cartas pra gente, faz tempo que não vejo sua letra.

_ Vou mandar sim mãe, não se preocupa._ A torre se remexeu, quase caindo pro lado, e Jeniffer pulou pra fora, arranhando a construção com as patas curtas e brancas. Aquilo não era normal. Jeniffer olhou pra mim, como se me chamasse para olhar._ Mãe, então, estão me chamando lá em baixo, preciso ir ok? Ligo para vocês amanhã.

_ Tudo bem meu amor! Se cuide bem, e não deixe as meias sujas no corredor, por favor._ Agradeci ao universo por ela não suspeitar de nada, e ri, pela preocupação maternal que ela sempre tinha comigo.

_ Tudo bem mãe, tchau!

Desliguei o telefone tão rápido que minha unha raspou na tela, deixando um risco ali. Corri, jogando o celular na cama, e agachando perto de Jenniffer, que me olhava levemente espantada pra dentro de uma das entradas da torre.

_ Que foi garota? O que você viu?_ Murmurei, colocando a mão dentro da entrada mais baixa da torre. Alguma coisinha pontiaguda encostou na minha mão, fazendo um furinho sangrento no dedo. Tateei com cuidado, vendo que a coisa tinha um cabo seguro para pegar, e puxei lá de dentro, uma faquinha para moldar madeira, a faca mais afiada que eu tinha._ Como que isso foi parar ai?_ Olhei para a furão, que me observava. Peguei a furão branquinha, procurando se ela tinha se furado. Provavelmente, Jennifer desceu na torre e caiu em cima da faca, o que poderia furar a pele bem fininha que ela tinha nas costas. Uma manchinha vermelha no pelo dela me deixou ainda mais preocupado.

Peguei o bichinho, colocando a faca dentro da gaveta para que não tivesse chance de machucar mais ninguém.

Jenny realmente tinha se machucado. Um arranhão enorme se estava na parte entre as costas e a barriga, onde um pouco de sangue se acumulava. Uma crosta de sangue já estava ali. Ela já tinha se machucado com aquela faca mais vezes, enquanto eu não estava por perto. Trinquei os dentes, colocando ela em cima da cama e procurando uma roupa no armário.

Precisava levar ela no veterinário. Se aquilo já aconteceu antes, podia ter alguma coisa rompida dentro dela. A preocupação de dono podia ser exagero, mas eu não iria arriscar. Nunca tinha deixado uma das facas de esculpir em um lugar onde ela pudesse pegar, sempre ficavam escondidas, e aquela era a primeira vez em anos que minha furão se machucava.

Coloquei uma camiseta, uma camisa xadrez por cima e calcei os tênis, pegando Jeniffer no colo. Abri a porta, mas antes que fosse embora, peguei a faca. O veterinário poderia pedir ela.

_ Oi Lucas._ Madi cumprimentou, passando no corredor. Dois segundos depois ela voltou, olhando pra mim com Jenny no colo e a cara de assustado._ O que aconteceu?_ Perguntou, franzindo as sobrancelhas.

_ Jennifer se machucou, preciso levar ela no veterinário._ Respondi, passando pela porta e fechando atrás. Ela arregalou os olhos, olhando para o pelo branco manchado de vermelho em um pedacinho.

_ Não pode levar ela assim!_ Ela disse, correndo para o banheiro mais próximo e voltando com uma toalha tão branca quanto o furão. Dei Jenny pra ela, que a enrolou na toalha. Jeniffer a encarou, o olhar agradecido e quase fraterno._ Posso ir com vocês?_ Pediu, virando os olhos faiscantes pra mim. O sorriso foi inevitável, e concordei, virando nas canelas em direção à escada.

Ela desceu comigo, devagar, sua respiração alta demais, quase sufocante. Hugo veio correndo, completamente atrapalhado pelo corredor do andar de baixo, um óculos que eu sabia que ele não precisava cobrindo a ponta do nariz, e nos olhou, arregalando os olhos.

_ Não podem sair! Ainda estão em processo de repouso e preciso dos sete juntos, AGORA!_ Ele disse, autoritário.

_ O que não podemos deixar é a Jeniffer assim! Ela está machucada, precisa de um veterinário_ Respondi, tentando fazer minha voz ficar tão autoritária quando a dele.

_ Já passou pela cabeça de vocês que temos DUAS curandeiras nesta casa, que podem cuidar da sua furão sem que precise colocar o pé na garagem?

Ficamos em silêncio, sem poder discordar. Não... Não havia pensado nisso... Tinha esquecido completamente de qualquer dor que antes invadia meus músculos, qualquer som que me deixasse surdo, ou qualquer coisa que tivesse ligação com magia quando vi Jenny machucada. Madison, provavelmente teve a mesma reação.

Como um passe de mágica, tudo aquilo voltou. O burburinho nos ouvidos, a magia escorrendo, todas as dores voltando a dar pontadas nos braços e pernas. Eu preferia nem ter lembrado que um dia já fui em uma missão.

Madi suspirou alto, encostando o braço no meu e aconchegando mais Jeniffer nos braços. Ela olhou triste para Hugo, e murmurou:

_ As vezes, eu queria só fingir que somos pessoas normais e que usamos meios normais. Como levar um animal ao veterinário, ou andar na rua.

_ Vocês podem ter todo o tempo que quiserem para andar na rua e fazer todas as coisas normais. Mas depois, porque agora, temos coisas mais importantes pra tratar._ Hugo pegou minha furão do colo de Madi, virando de volta para o corredor com pressa. Na mesma hora a morena ao meu lado massageou as têmporas, provavelmente aliviando a dor que o barulho fazia.

_ Os dias estão ficando cada vez mais longos nessa casa.

Apenas concordei com ela, e seguimos atrás de Hugo.


Ferix* estação equivalente ao verão terraqueo.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top