Oito - Lucas

     Eu não tinha parado pra pensar onde que Kortry e Felin dormiam. Enquanto caminhávamos pelo porão, cogitei que talvez elas dormissem na área hospitalar em que estávamos sendo tratados, mas parecia um pouco desumano. Com a quantidade de 0's da nossa conta bancaria, daria para pagar um hotel ou um apartamento mais escondido pras duas...

Quando paramos em uma das paredes, e Felin abriu emanou uma luz avermelhada, abrindo uma porta secreta rodeada por luz, eu quase não fiquei surpreso... Elas me mandaram entrar, e foi o que fiz.

O quarto de Kortry e Felin era relativamente simples, e tinha todos os móveis duplicados. As camas, as cômodas, as penteadeiras igualmente vazias, os armários, os espelhos, e parecia ser separado pela cor das peles das duas, ficando bem claro qual coisa era de quem.

— De onde a gente vem, é falta de educação observar os objetos alheios tão descaradamente.— Felin arqueou as sobrancelhas negras pra mim, me encarando um pouco. Kortry passou ao meu lado, indo em direção ao seu armário para procurar alguma coisa.— Seria interessante que fizesse isso menos descaradamente.

— Desculpe.— Olhei pra baixo, encarando os pés envergonhado.

— Sente-se, com as pernas cruzadas.— Apontou seu braço inferior pro tapete felpudo e branco, e obedeci rápido. As duas se sentaram depois, Kortry com uma jarra cheia de água.— Lucas, coloque suas mãos em volta da jarra, e feche os olhos.— Fiz o que ela pediu.— Escute muito bem tudo o que eu vou te dizer. Desligue tudo da sua mente, preste atenção somente na escuridão que você consegue ver, no rio de magia nos seus ouvidos, e na minha voz. Agora, preste atenção na sensação que está na suas mãos, seja ela fria ou quente.— Segui os passos que Felin murmurava, sentindo minhas mãos rodeando o vidro gelado, a escuridão dentro da minha mente, e principalmente, a luz que iluminava minhas veias, correndo junto ao meu sangue. Ela pulsava, corria, forte e clara. Ela descia pelas minhas mãos, e se encontrava com o vidro, com a água dentro do vidro, pareciam uma só, se misturando. Eu senti cada gota, cada uma delas.— Você está sentindo a água Lucas?

Abri os olhos de uma vez só, todas as sensações de antes sumindo de uma vez. Elas deixaram um vazio, mas parecia que... Que eu tinha conseguido alguma coisa importante.

— Eu senti... Senti como se ela fosse parte de mim!

Felin abriu um sorriso branco pra mim, satisfeita. Trocou um olhar cúmplice com Kortry, que parecia tão satisfeita quanto ela, e voltou a me encarar, com um sorrisinho de canto de boca.

— Você consegue sentir. Agora vamos ver se consegue controlar.


Duas semanas se passaram.

Nessas duas semanas, Kortry e Felin me sequestravam todos os dias pra me ensinar a controlar e entender a magia que, pelo que elas ficavam dizendo, eu tinha desbloqueado. Além da rotina de treinos com Hugo que tinha voltado ao normal, eu passava muito tempo com as duas na prainha.

O que entendemos com as semanas de treino, era que eu não tinha controle sobre nenhum outro elemento se não a água liquida, mas que poderia fazer alguns feitiços que Felin tentava me ensinar, como feitiços simples de cura ou a tentativa de levitar alguns pratos (Kille me expulsou da cozinha até que eu prove que sei controlar meus feitiços, isso depois deu quebrar uma pilha de pratos de uma vez).

Mas realmente, o que eu conseguia fazer com água era assustador pra mim e até pra elas. Era um poder que nem eu não compreendia direito, nem elas, mas tentávamos o possível.

Às vezes, enquanto alguém lavava a louça (que não fosse a Kille, porque eu tinha medo dela portando panelas), eu brincava de esguichar água na cara da pessoa. Me surpreendo com quantos palavrões a Helena sabe com 15 anos de idade, e com a mira dela com uma colher.

O dia hoje estava chuvoso, o que não era normal pra estação. As nuvens cobriam a cidade completamente brancas, pareciam grandes pedaços de algodão flutuante, que eu conseguia sentir cada gotícula de água, enquanto eu, Felin e Kortry nos sentávamos na areia, elas me induzindo com a voz à flutuar grandes bolhas de água do mar e transformar em armas de água depois.

Outra coisa que era comum durante os treinos, era que Madi e Jesse ficavam sentados na varanda, olhando enquanto eu aprendia a controlar minha magia. Jesse me contou que ele queria aprender a ativar sua magia também, e por isso ficava ali. Mas Madison eu não sabia exatamente porque gostava de olhar meus treinos, apesar que deve ser muito bom ficar embaixo das cobertas em um dia de chuva, com uma xícara de café me olhando ficar todo molhado com a água do mar e tremer de frio até parecer que vou morrer de hipotermia.

— Se concentre Lucas.— Felin murmurou para mim, baixinho, dispersando meus pensamentos.

— Estamos quase terminando, pense novamente no que quer fazer e faça.— Kortry me encarou, a escuridão dos seus olhos encontrando o tom esverdeado e claro dos meus.

Respirei fundo. A areia úmida estava gelada contra a pele das minhas pernas, e não consegui segurar os dentes batendo quando a maré subiu mais um pouco, passando em volta da minha barriga. Encostei as pontas dos dedos na água. Estava congelante. Dentro da cabeça, murmurava baixinho que a água flutuasse entre meus dedos, e as gotas da magia pareceram escorrer e se encontrar com as de água, fazendo formigar as pontas dos dedos. Minha Marca brilhou bem forte, azul royal, a palavra coragem nítida como nunca. O mar se voltou pra mim, e pilastras de água subiam dos vãos entre meus dedos, um cilindro perfeito, subindo e passando minha cabeça.

Outra onda congelante me atingiu, junto com um vento gelado, e mesmo naquela temperatura, foi como um carinho de mãe.

Isso era uma coisa que percebi durante os treinos. Mesmo não conseguindo entender meu poder, não sabendo qual o real tamanho e magnitude do que eu posso fazer, eu sabia que a água, principalmente a do mar, nutria o que eu chamo de afeto elementar, por mim. Como uma mãe, ou como um criado que devia obediência ao seu mestre. Se bem que pensando assim, era um pouco prepotente me imaginar mestre de um oceano inteiro, ou quem sabe de mais do que só esse oceano.

— Terminamos por hoje Senhor Coragem.— Kortry anunciou.

— Não precisa dizer duas vezes!— Ri, pulando pra me levantar.

— Você sabe que não precisa ficar tomando água gelada na cara, consegue afastar o oceano até a baía se quiser.— A mulher de pele avermelhada me entregou uma toalha com as mãos superiores. Limpei o rosto molhado, passando a toalha pelos braços, e como não respondi, ela continuou.— Ou está se preparando para a banheira de gelo que disse que ia enfrentar?

— O barulho não me incomoda mais, eu disse que faria de tudo se fizesse ele parar. Mas ele já parou.—Expliquei, encarando ela. A pergunta me pegou de surpresa, porquê tinha esquecido completamente desse detalhe.

— Está dando desculpas para se safar Senhor Coragem? É isso mesmo que estou ouvindo?— Ela levantou uma das sobrancelhas, indignada. Felin passou atrás dela, se dirigindo até a casa calada, enquanto eu e a moça continuávamos na prainha.

— Não, não estou dando nenhuma desculpa! É que...

— Esperava mais de você Lucas... Que decepção...

— Ah, quer saber!— Revirei os olhos, atirando a toalha contra ela com força. Fiz um gesto com a mão aberta, como se espantasse uma mosca, expulsando toda e qualquer gota de água do meu corpo com raiva, e o som das gotas batendo na areia pesou, como o sal no meu corpo.— Quando você quiser! Pode vir que eu tô preparado!

Kortry abriu um sorriso que poderia ser considerado obsceno, mas era uma característica incrível dela. Colocou pela primeira vez desde que a conheço as quatro mãos na cintura satisfeita, mostrando todos os dentes perfeitamente alinhados.

— Quinze minutos. Esteja pronto.

E se virou. Sem me dar chance de dizer mais nada, apenas entrou na casa rapidamente, me deixando com a garoa fina e fria começando a cobrir meu corpo, e a Marca brilhando intensamente, azul contra a pele pálida, murmurando o de sempre para mim. Um lembrete.

Quinze minutos exatos, nem um segundo a mais ou a menos, e eu estava parado na frente de uma banheira, onde as pedras de gelo flutuavam devagar de um lado para o outro. Em volta, estavam outros cinco escolhidos, parados em volta de mim e de Kortry, que não se aguentava de tanto sorrir.

Madison e Kille, ombro a ombro, também riam, mas fingiam que não. Eu sabia que elas achavam aquilo uma maluquice, mas isso não impedia de estarem ali pra ver. Rosh balançava a cabeça devagar, em negação, enquanto Jesse do seu lado pulava de emoção. Genezis não esboçava nenhuma reação, além de cruzar os braços e parecer entediada, mesmo que, como todo mundo, ainda continuasse ali para ver. Helena não estava em casa, era a única de nós que não estava ali.

— Pronto para uma hipotermia?— Kortry zombou.

— Tenho meus truques.— Respondi, rápido demais e por isso emendei.— Não era você que deveria zelar pela nossa saúde?

— Você faz perguntas demais.

Me empurrou para mais perto da banheira, o mesmo sorriso obsceno de antes. Respirei fundo antes de entrar, suspirando alto. Então coloquei o pé dentro da banheira, deixando a magia ser conduzida até a pele em contato com água. Sorri de leve quando percebi que meu plano tinha dado certo, pelo menos em parte. Afundei a perna na banheira, sentindo a fina camada de magia afastando a água fria que poderia encostar em mim, deixando meu truquezinho imperceptível. Coloquei a outra perna, tendo o mesmo efeito, e pouco a pouco entrei dentro da banheira até os ombros, completamente consciente da magia pulsando dos meus poros, bloqueando a água. Os cubos de gelo eu não conseguia controlar para onde flutuavam, mas a água fria não encostava em mim, tornando tudo aquilo completamente suportável. Precisava de concentração para afastar a água de um jeito discreto, então enquanto Kortry colocava o cronômetro pra rodar e os olhares de todo mundo focavam em mim, eu focava em deixar a magia controlada.

Os minutos passavam rápido, voando eu diria.

A porta da sala onde Kortry montou a banheira foi aberta com raiva, e uma Helena irritada até o último fio de cabelo caminhou batendo os pés, pra falar alguma coisa com Madison. Não pareceu nem perceber nada do que estava acontecendo, de tão longe que ela estava, os olhos cor de verde-musgo, como Madison gostava de chamar, presos na parede se revezavam devagar entre Madi e a brancura do comodo.

A ruiva cutucou o braço de Madison, e disse alguma coisa no seu ouvido. Madi respondeu negando, e dizendo alguma outra coisa inaudível. Helena fechou a cara ainda mais, uma escuridão aparecendo nos olhos dela. Agarrou a única cadeira do comodo, mais irritada do que antes, e se jogou nela com violência, cruzando os braços e as pernas, enquanto encarava de novo a parede branca, um bico enorme no rosto. A coisa foi séria...

Depois me preocuparia com Helena, assim que saísse daqui. O que quer que fosse, não devia ser grave no nível de ser perigoso pra todo mundo, então estava tudo ok...

Mais alguns minutos se passaram, tão devagar quanto os anteriores. Estranhamente e contra tudo o que eu estava tentando evitar, o frio no meu corpo aumentava, mas ao mesmo tempo, o barulho, que já era bem baixinho no meu ouvido, desaparecia cada vez mais. O rio escorria pelos meus poros, e mesmo correndo cada vez mais devagar, não parecia ter um fim. Apenas escorria, cada vez mais devagar. E estava ficando cada vez mais frio.

Minha pele ficava mais azul, e mais azul, e mais azul a cada segundo. Meus dentes começaram a bater de frio, e eu me esforçava pra canalizar mais magia e afastar a água da minha pele. Mas eu não conseguia mais controlar a água a minha volta, porquê a maior parte da banheira não era mais água. Era gelo.

Pontos pretos piscaram nos meus olhos, e afundei no resto de água da banheira, completamente cansado... O frio que me atingiu foi insuportável.

Com a pele já dormente, Kortry me tirou de dentro da banheira, me enrolando em várias toalhas. Me encostei na parede, tentando entender onde eu tinha errado, qual parte do plano tinha falhado... Não fazia sentido nenhum! Reparei que o frio não tinha passado, mesmo com todas as toalhas me cobrindo, e isso me deixou mais confuso ainda.

Kortry tinha os dois olhos enormes e escuros arregalados, surpresa. Segui seu olhar, parando em Helena, ainda sentada na cadeira, a mesma posição e os mesmos olhos escuros vidrados na parede, emburrada. Mas sua pele parecia mais branca que o normal agora, quase como neve. Até as sardinhas no rosto desapareceram na pele branca.

— Lena.— Madi chamou, pegando no ombro da menina. Mas tirou rápido, olhando a mão rosa e queimada de frio.

Toda a pele de Helena estava coberta por uma camada de geada, congelada, que congelava a cadeira também, deixando gelo escorregadio na madeira e no chão que rodeava ela. E tudo isso, parecia que estava vindo da ruiva, carrancuda e perdida em pensamentos.

A expressão de Kortry mudou do nada, e ela ficou tão animada quanto quando eu desbloqueei a minha magia. Provavelmente porquê tinha acontecido a mesma coisa. Chacoalhou Helena para que ela acordasse do transe, e a adolescente olhou no fundo dos olhos escuros de Kortry, as sobrancelhas arqueadas.

— O que foi!?— Perguntou, irritada.

Kortry fez um sinal pra ela olhar para si mesma. Helena, assim que encarou o próprio corpo, pulou da cadeira, assustada com o gelo. Bateu as mãos nos braços, fazendo cair alguns flocos de neve grandes, e me encarou, enrolado nas toalhas e tremendo de frio. Confusa, a cor verde dos seus olhos clarearam, e ela apontou pra cadeira congelada.

— Eu-eu que fiz isso?!!

Concordamos com a cabeça, devagar. Helena afastava os cabelos do rosto, as mãos tremendo não sei se de frio ou de susto, arregalando os olhos com medo e confusão. Tropicou quando deu um passo na minha direção, e Kille a segurou, ajudando a se manter em pé.

— Venha querida!— Kortry sorriu, dessa vez como uma mãe sorriria, segurando a mão dela com carinho nas mãos superiores e levando Helena para a porta, com cuidado.— Não precisa ter medo disso, te ajudamos a entender.— A ruiva concordou, suspirando alto e as duas saíram da sala.

Jesse me ajudou a levantar, enquanto eu ainda tremia de frio. Reparei que Madison encarava a porta aberta, triste, o olhar tão perdido quanto o de Helena estava, os braços cruzados com punhos fechados com força. Tinha alguma coisa a mais naquele olhar... Culpa.

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