Dez - Lucas

A Cidade de Touque estava clara e quente, como sempre, mas dessa vez ventava, fazendo meu cabelo se embaraçar e as ondas baterem ainda mais forte no quebra mar. A faca fez um barulhinho baixo enquanto raspava no pedaço de madeira. Estava quase acabando, faltavam só alguns detalhes...

O tempo estava bom pra surfar hoje, e foi exatamente o que Jesse tinha me chamado pra fazer. Mas aquilo me dava uma nostalgia. O tempo quente, o vento, lembrava minha casa, a cidade praiana de areia escura que sempre tinha centenas de pássaros comendo algas, e o cheiro de maresia completava o cenário. Jesse estava surfando, nas ondas enormes do lado das pedras, dava pra ouvir os gritos dele inclusive. Mas eu estava aproveitando para esculpir alguma coisa, que no momento parecia muito com um gato, apesar dos bigodes estarem completamente tortos.

Sempre fazia isso quando estava em casa. Mesmo que fosse difícil ter um tempo sozinho, na primeira oportunidade o carpinteiro aqui já estava na beira da praia, com a faca e um pedaço de madeira. Era como se fosse um instinto.

— Vamos cara, você veio aqui pra surfar ou vai ficar só olhando?— Jesse riu, fincando a prancha na areia do meu lado e me encarando.

— Uma vez carpinteiro sempre carpinteiro, não tem como.— Mostrei a faca, rindo também.

— Vai surfar, eu fico aqui e protejo a sua amada faca de estimação, não tem problema.

— Valeu.— Ri, dando um soquinho nele.

Peguei minha prancha, quase morta de tão velha, mas que ainda funcionava e estava muito bem polida. Eu mesmo tinha feito ela, aos 9 anos de idade, com a madeira mais clara que consegui encontrar e carregar da floresta. Lembro que foi a primeira vez que vi meu pai ficar confuso no que dizer, se ficava orgulhoso de ter conseguido carregar uma tora maior do que eu, ou se espumava de raiva por considerar um motivo extremamente inútil.

As ondas estavam altas hoje, mas bem difíceis de formar uma boa o suficiente pra mim... Me recusava a tentar usar meus poderes pra formar uma boa onda, não ia ser feita naturalmente, não ia ser uma vitória de verdade. Por isso, passaram dez, quinze minutos, e eu continuava só sentado na prancha, as pernas até a metade dentro da água fria, observando outros que surfavam ali também.

Desde que conseguia controlar a água, todo o barulho do rio que corria nos meus ouvidos desapareceu, igualzinho mágica (até porque realmente é mágica), e eu acaba passando muito tempo no banho, ou com os pés enfiados na água da prainha, só sentindo aquela água na minha pele, escorrendo, cada molécula e cada uma das gotas. Sempre fazia minha mente ir bem longe, igual agora, com aquela água nas minhas pernas, o cheiro de sal e o olhar perdido dentro do mar.

— Olha, eu realmente achei que você fosse surfar, mas parece que não né?— Olhei pro lado, achando que Jesse tinha entrado na água, e já tinha preparado a piada pra rir da voz fininha que ele tava fazendo. Mas não era o Jesse.

Ao invés da careca dele, o que eu recebi foi um par de olhos verdes puxados, não como os da Helena, mas muito mais claros, que foi como um soco na cara, fazendo a prancha balançar nos restos de onda que chegavam até mim. Era uma garota, sentada em uma prancha muito parecida com a minha, a sobrancelha erguida, e os cabelos lisos presos em um rabo de cavalo.

— Oi...?

— Desculpa, é que você está aqui olhando a gente surfar nessa prancha a uns vinte minutos já. Você sabe surfar? Se não eu ensino, sou professora por aqui...— Pisquei, finalmente entendendo o que ela estava dizendo.

— Não, eu sei surfar sim, é que tou esperando uma onda boa o suficiente.

— Tem certeza cara?— Ela me olhou de cima a baixo, um sorriso de canto de boca e a mesma sobrancelha erguida. Era um desafio, e por isso arqueei a minha também.— Você não tem muita cara de quem sabe fazer alguma coisa em cima de uma prancha.

Eu sabia que meu queixo tinha caído, mas engoli em seco, me recompondo o mais rápido que consegui, perguntando, a voz mais rouca do que era:

— E você seria...

— Gabrielle, mas me chama de Gael.— Disse, rápido e com uma convicção que me desconcertou de novo. Ela esperou, e um segundo depois percebi que queria saber meu nome.

— Lucas.

— Prazer, Lucas.— Fez um sinal com a cabeça, abrindo um sorriso de dentes tortos que não podia ser chamado de feio.— Quer uma onda boa? Aquela que tá vindo seria o suficiente pra você, senhor?— Olhei a onda que ela apontava, reparando nas fitas e pulseiras no pulso. Era enorme, dava pra sentir a força dela daqui, tanto que dei um sorriso.

— Seria.— Respondi.

— Me mostra o que sabe fazer então.— Deitou e começou a remar pra onda, dando um grito pra mim, rindo.— Toma cuidado que nessa praia costuma ter corais.

Senti que estava vermelho. E eu nunca fico vermelho. Olhei pra Jesse, procurando ele no quebra mar, e o que encontrei foi um cara se matando de rir. Acho que ele percebeu o que tinha acontecido... Trinquei os dentes, deitei na prancha e comecei a remar atrás daquela menina que tinha brotado literalmente da água...

Resolvi que ia tirar o desafio da Gael da minha mente. Aquela onda era perfeita, alta, fazia tubo e tudo... Era o que eu estava esperando o dia todo, não ia perder aquela chance.

— Vamos fazer o seguinte.— Ela gritou, alguns metros na minha frente.— Quem chegar no fim do tubo sem cair paga um lanche para o outro, topa?

— Topo.— Olhei o tubo, uns quinze metros só dele, abrindo um sorriso para a água. Eu sempre fui especialista em tubos.

Comecei a remar com os braços, virando enquanto a onda chegava mais perto e mais perto. Senti a água nos meus pés, um sinal pra levantar, e o vento que atingiu meu cabelo fez o sorriso aumentar ainda mais. A sensação era incrível, quase nostálgica, e me lembrava ainda mais minha cidadezinha...

Surfei a onda inteira, olhando Gael fazer algumas manobras com a prancha, me encarando quase o tempo inteiro com aquela desgraça de sobrancelha arqueada e desafiadora. Quando ela se adiantou pra o tubo, aparentemente rindo da minha existência, senti meu sangue ferver... Eu sou o Lucas, e eu nunca tive medo de desafios!

Dando um impulso com o corpo, minha prancha deslizou pela onda, todas as gotas se afastando e eu conseguindo sentir cada uma delas. Aquele era o meu jeito de voar. A prancha foi com tudo para cima, isso incluindo comigo, voando por cima das águas enquanto fazia meu corpo girar inteirinho com a prancha, as gotículas de água girando em volta. Bati com tudo na água novamente, entrando no tubo dez segundos depois. Encarei Gael. O sorriso dela tinha desaparecido, transformado em um rosto sério, a luz sumindo do seu rosto conforme entrávamos no tubo.

A luz de Phoenix atravessou a onda, fazendo o efeito na água cobrir nós dois. Flexionei os joelhos, passando do lado dela, mais rápido do que a menina conseguia acompanhar. A água estava tão perto, que não resisti de passar a mão nas ondas. Foi a melhor sensação que já tive... Senti as gotas subindo pela minha pele, cada molécula abraçando minha magia, abraçando como uma mãe faria. Eu controlava aquela água, ela era minha se eu quisesse. Mas eu também era dela, era algo tão reciproco que fica até difícil explicar.

Olhei pra traz, agachando devagar e pegando velocidade, mas Gael não estava mais lá, e dava pra ver sua prancha sendo levada pela força das ondas pro fundo do mar. Me desesperei, os olhos arregalados, e soltei a cordinha que prendia meu tornozelo com a prancha, me jogando dentro d'água um segundo depois.

O impacto da água no meu rosto foi forte, rodeou todo o meu corpo, enquanto dava braçadas longas em direção ao fundo, vendo a sombra de Gael se aproximar dos corais. Ela estava indo muito fundo, muito rápido, de uma maneira que fazia meu ar ir embora...

Mas eu não precisava segurar aquele ar... Meu corpo dizia isso, afirmava com todas as células. Dei uma fungada grande, corajosa, mas que confirmou todas as minhas suspeitas. Eu respirava debaixo d'água, e isso deixava tudo bem mais fácil.

Peguei a mão de Gael, puxando ela pra cima e fazendo os cabelos esvoaçarem em volta. O corpo dela tava tão leve que me deu medo de já ter se afogado. Passei os braços de Gael nas minhas costas, nadando o mais rápido possível pra superfície.

Nossas duas pranchas boiavam uma ao lado da outra, e aproveitei pra colocar Gael em cima da minha prancha, e levar ela até a praia. A areia tava bem quente, mas não me importei, e coloquei ela em um lugar onde as ondas não conseguiam alcançar.

— Gael... Gael... Gabrielle!!!— Chamei, mas ela não respondia de jeito nenhum, e estava ficando cada vez mais mole. Soltei um palavrão, fazendo massagem cardíaca nela, mas continuava sem funcionar, e o desespero começava a me atingir.— Responde Gael, por favor!!!— Só faltava uma coisa pra tentar. Segurei o nariz dela, impedindo de entra ar, e comecei uma respiração boca a boca. Tinha que funcionar...

Mais rápido do que esperava, Gael teve um espasmo, começando a cuspir água e tossir muito. Ela me empurrou involuntariamente, cuspindo na areia, os olhos arregalados me encarando. Gael passou uns dois minutos inteiros cuspindo água, até finalmente segurar meus ombros e respirar fundo.

— Se acalma, ta tudo bem agora.— Disse, e ela só concordou com a cabeça.

— Obrigada...

— Não precisa agradecer.

— Lucas, ta tudo bem com ela, o que aconteceu?— Jesse finalmente apareceu, cinco novas pulseiras enfeitando seu braço. Me ajudou a levantar Gael, mas ela se desvencilhou de nós dois e se afastou, pegando sua prancha, resmungando um agradecimento e indo em direção ao quebra mar.— Ela ta bem?

— Está...— Acompanhei Gael com o olhar.— Foi só um susto...

A garota olhou por cima do ombro pra nós dois, que ainda estávamos parados na areia, desconfiada. Nossos olhares se encontraram, e ela correu, desaparecendo no calçadão da praia.

Naquele momento, eu soube que Gael tinha visto o que eu fiz com a minha magia.


MUAHAHAHAHAAA!! A frase do fim de capítulo impactou vocês? Não? Ai que sad... Mas se impactou, sim, quem leu a saga apocalipse sabe o quanto eu sou malvada com meus personagens, mas relaxem, que muita coisa ainda vai acontecer. Aproveitem pra deixar sua teoria nos comentários, e uma estrelinha, já que ela me ajuda pra caramba!

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