O verdadeiro rito de passagem
Os festejos finalmente acabaram...
Depois de ter confraternizado com os representantes dos clãs e feito a aparição de praxe, Guilhem conseguiu finalmente escapar.
Passava da meia-noite quando ele avançou sorrateiramente, - atravessando a cozinha do palácio, contornando a despensa – para descer as escadas estreitas que conduzem aos calabouços. Não via a hora de ir ter com Pascal, para lhe contar a novidade, para compartilhar a sua vitória no torneio dos valorosos.
Foi envolvido pelas sombras virulentas e o frio úmido que corroia lentamente aquelas pedras cheias de limo... Tremeu, instintivamente. Só então se deu conta de que havia se esquecido de trazer a tocha para iluminar o caminho.
-Maldição!
Voltou correndo, arrancou a tora chamuscada da parede, ao lado da escada, e acendeu no forno da cozinha. Fez questão de ignorar o olhar assombrado das cozinheiras. Assim que a tocha se acendeu, ele a empunhou, e finalmente sorriu para as mulheres.
Já dava meia volta, quando ouviu de uma delas:
-Aonde vós pretendeis ir com a tocha, príncipe Guilhem?
-Vou visitar Pascal – lançou por sobre o ombro, sem esconder o tom desafiante.
A mulher fez uma careta de espanto.
-Que Pascal, estais vós a falar?
Mas o garoto não prestou atenção à pergunta. Atravessou apressadamente a porta, e desceu as escadas mais uma vez, seguindo com cuidado pelo corredor escuro, para que a chama não se extinguisse com as constantes correntes de ar que atravessavam o subsolo.
Como não encontrou Pascal na cela, Guilhem seguiu para as celas adjacentes. Eram todas abertas, algo que deixava o menino intrigado. Como o prisioneiro ainda não resolvera tentar fugir?
Não o encontrou em lugar algum.
-Pascal? – chamou, mais alto.
Prosseguiu até uma área que ele nunca tinha se aventurado antes – talvez, porque não tivesse visto o caminho, conjecturou ele, intrigado. Continuou chamando seu mentor, mas não recebeu resposta. Ele então encontrou esqueletos vestidos, pendurados nas paredes por grossas correntes. Até aí, tudo bem, pois já estava acostumado aos "amigos bizarros". Havia mais deles do outro lado, onde ele costumava ir com mais frequência.
Ele caminhou até o final do corredor principal, depois entrou nas celas que nunca entrou antes.
-Pascal?
Subitamente, localizou um objeto no chão. Guilhem aproximou a tocha e viu que se tratava de um par de óculos, desses de pendurar no nariz. É de Pascal!, ele reconheceu. Seus óculos de leitura. O príncipe sabia que ele não iria à parte alguma sem eles, e se apavorou. Será que alguém o transferiu? Será que ele foi enviado para execução? Terá sido libertado?
Guilhem refez todo o percurso até a cozinha, atabalhoadamente.
-Lorraine, Albertine, - chamou as cozinheiras pelos nomes - vós sabeis o que foi feito do prisioneiro Pascal Clemènt?
As duas mulheres se entreolharam, balançando a cabeça.
-Faz tempo que aqueles calabouços foram desativados, milorde – Lorraine tomou a liberdade de dizer.
-Como assim? – ele ergueu a voz, desesperado. – Havia um prisioneiro! Pascal Clemènte! Eu o visitava quase todos os dias!
-É melhor falardes com o antigo carcereiro, Maurice Ronet – sugeriu Albertine, tentando ser prestativa. - Ele está velho, caduco, quase surdo, mas lembra de todos que já passaram pelos calabouços do palácio... Nas últimas cinco décadas, até quando o local foi desativado.
-Impressionante a memória daquele homem, não é mesmo, Albertine? – A outra, que se ocupava em sovar a massa de pão, concordou com um aceno brusco.
-Desativado? – o rapaz repetiu, incrédulo. – Mas como foi desativado com prisioneiros vivendo lá dentro?
-Garoto... Milorde... – Ela se corrigiu em tempo; era difícil se lembrar do título quando aquele jovem vivia correndo para cima e para baixo, todo imundo. - Não há mais prisioneiros aqui. Eles agora ficam em Toulouse.
Guilhem ficou olhando de uma para a outra, e de repente disparou para fora da cozinha; tomou a direção das cocheiras, intentando localizar Avraed. Talvez, seu amigo pudesse ajudá-lo a encontrar o antigo carcereiro.
Qual não foi a sua frustração ao encontrar apenas os jovens cavalariços por lá. Por sorte, os rapazes conheciam Ronet, que agora cuidava dos jardins do palácio. O príncipe poderia enfim elucidar o mistério que o atormentava.
Mas teria que esperar pelo amanhecer.
***
O palácio era grande - os jardins, imensos, mas Guilhem não desistiria de sua busca. Não foi muito difícil localizar o antigo carcereiro, pois o seu resmungo constante serviu como localizador.
O príncipe foi encontrá-lo em meio às árvores do pomar.
-Senhor Ronet? – chamou o príncipe.
-Sim, sou eu, meu jovem. – O velho se virou, reconhecendo de vista o rapaz. - Mas estou ocupado agora, não posso conversar convosco.
Acostumado à falta de respeito pelo seu título e, de qualquer maneira, preferindo que assim fosse, Guilhem o cercou.
-É um assunto rápido, Senhor Ronet. Só preciso saber que fim levou o prisioneiro Pascal Clémente. Tu sabes para onde o levaram?
Ronet deu uma risada seca.
-Tu estás atrasado dez anos, meu rapaz. Clemènt foi executado há dez anos.
***
Guilhem estava tão chocado que não viu Joana caminhando em sua direção. Foi inevitável. Os dois trombaram no meio do corredor. Ele teve que ser rápido para não cair com todo o seu peso em cima dela.
Os dois corpos acabaram numa posição bastante íntima – esparramados no chão de mármore.
-Onde estais com a cabeça? – Ela perguntou, enfezada.
-Deixa-me pensar... – Ele torceu os lábios com ironia, sem fazer o menor esforço para sair de cima da garota; prudentemente, porém, sustentou o peso sobre os antebraços, para não machucá-la. Estava alegre por ter encontrado o objeto do seu desejo. – Estou me defendendo de uma garota que não enxerga por onde anda?
-Ah é?
De repente, ele sentiu uma pontada aguda. Não pode acreditar que ela havia chutado a sua canela! Guilhem rolou para o lado... Como ela conseguiu? A garota era tão escorregadia quanto uma enguia! Quando ele se recobrou, ela já estava de pé, encarando-o com o nariz empinando e as mãos na cintura. Pareceu-lhe uma amazona, com aquela expressão satisfeita no rosto.
-Oh, mil perdões, meu lorde. Eu não enxergo aonde acerto, tanto quanto não enxergo por onde ando. Tivestes sorte por não ter-vos acertado numa área mais delicada de vossa anatomia...
Dito isso, deu-lhe as costas e continuou andando calmamente. Ele a xingou em pensamento, enquanto massageava a canela.
-A propósito... – ela se virou bruscamente; ato contínuo, Guilhem se encolheu. – Mandastes bem, hoje. Parabéns!
Ele sentiu uma satisfação indescritível, até que ela completou, deixando-o com um "gosto amargo na boca":
-Quero dizer, para um garoto tonto, até que vós fostes muito bem no torneio dos valorosos...
Ele se ergueu devagar.
-Presumo que tu farias melhor...
-Pode apostar vossa masculinidade nisso.
Ele franziu a testa, totalmente desconcertado. A garota era diferente de todas as que ele conhecia. Mesmo assim, o príncipe não perdeu a presença de espírito.
-Então, gostarias de refazer as provas da competição... Em minha companhia?
Os olhos dela brilharam. Aí, ele percebeu que era isso o que ela queria desde o início.
-Podemos?
Guilhem sorriu lentamente.
-Claro. Eu sou tonto, mas sou camarada.
Joana empinou mais o nariz, enquanto o media dos pés à cabeça.
-Isso, veremos.
Eles marcaram um encontro na região do lago, depois do almoço.
***
Naquela mesma tarde, a garota o surpreendeu. Não só o deixou para trás, como conseguiu pegar o medalhão que ele usou no lugar do penacho sagrado.
Sem fôlego, ele se deixou cair sobre a grama. Ela se aproximou devagar, tentando disfarçar que também estava sem fôlego. Afinal, esperava ganhar com mais facilidade e ele não deixou que a vitória fosse fácil... Intrigada, ela se sentou ao lado dele.
-Sois Guilhem, o príncipe bastardo. – Ela disse o óbvio, sabendo disso. Quando ele virou a cabeça para ela, com um olhar pensativo, ela explicou: - Ouvi dizer por aí. De onde vinde vós?
Guilhem a encarou, espantado, levando-a a explicar outra vez (e Joana detestava explicar):
– Eu não prestei atenção a tudo o que falaram sobre vós, durante o torneio. Estava mais preocupada que vós conseguíreis chegar ao final da prova, e me fechei para todo o resto.
A explicação soou razoável aos ouvidos do rapaz, e de bônus, revelou que ela não lhe era de todo indiferente.
-Sou de Craon. – O príncipe respondeu, simplesmente. Não achou necessário acrescentar que se tratava apenas de um posto de passagem, aonde sua mãe deu a luz antes de chegar ao castelo de Aachen. Suspeitava que suas origens e sua condição de bastardo importavam tanto para Joana quanto o título de príncipe herdeiro. Suspeitava, ainda mais, que ela o trataria da mesma maneira insolente se fosse um mero cavalariço. Não podia negar o quanto isso o agradava.
-Joana du Saint-Martin – ela se apresentou, formalmente.
Ele se refreou para não revelar que já sabia quem ela era. Não deveria dar bandeira do quanto estava interessado. Não, claro que não!
-De Craon. – Ela repetiu, como quem saboreia o nome. – Sois o motivo das caras de dor de barriga que Hilda faz, toda vez que entreis no salão. – Ela deu uma risada curta. – Precisava ver a cara dela quando vós ganhastes a competição. Cuidado com a megera. – Joana o encarou com um olhar sagaz. - Ela quis arrancar vosso couro... Vi nos olhos dela. E vai tentar isso, mas cedo ou mais tarde.
Ele se limitou a sorrir.
-É... Estou sabendo.
Eles ficaram calados por algum tempo. Então, Guilhem olhou para Joana e perguntou:
-Quereis casar comigo?
Ela começou a rir e ele também.
-Não! – Foi a resposta já prevista.
Mesmo assim, ele ficou curioso. -Por que não? Tu estás na idade de se casar...
-E vós também, milorde. – Ela zombou. - Mas eu quero ser amazona, não esposa. As esposas não são felizes.
Craon riu de novo. Quantas vezes ele riu, durante um ano inteiro?
- As amazonas são apenas lenda – gesticulou, preguiçosamente.
-Prefiro entrar para um convento, se não puder ser uma lendária amazona – a garota revirou os olhos.
Divertido, ele teve uma súbita ideia.
-Se não queres casar comigo, então, posso treinar-te para que tu te tornes guerreira. Que tal? Entre os francos, as mulheres guerreiras são quase tão valorizadas quanto os homens.
-Quase? – Ela repetiu, ligeiramente ofendida. - E o que vós entendeis do assunto?
Ah, que audácia! Qual quê, ela não o viu ganhar o torneio?
-Entendo muito do assunto! – Sua voz soou como aço. - Avraed cuida muito do meu treinamento físico. Pascal me instrui sobre o funcionamento do mundo...
Guilhem franziu o cenho, lembrando-se do misterioso desaparecimento do mestre. (Ainda não acreditava no que o velho Ronet lhe informou... Devia haver algum engano).
-E daí? – Lá vinha ela de novo, com toda a sua insolência.
Guilhem sacudiu a cabeça, tentando se manter concentrado na conversa.
– Eu ganhei de vós, não ganhei? – Ela o alfinetou, outra vez.
-Num jogo limpo, com apenas um oponente, tu ganhaste. – Ele reconheceu, falando devagar. – Mas com mais outros onze oponentes tentando te derrubar, será que te sairias tão bem?
As sobrancelhas de Joana se levantaram no que poderia ser uma reação de espanto ou de desafio. Pela primeira vez, ele a deixou sem palavras.
-Eu não fiz outra coisa nos últimos tempos, senão me preparar para esse torneio. – Guilhem acrescentou, num tom insinuante: - Seria interessante ensinar uma garota a guerrear.
Ele estendeu a mão, oferecendo o pacto. Ela não hesitou em aceitar.
-Combinado.
-Eu te aviso onde, quando, e como. – Guilhem disse, levantando-se para partir.
***
Naquela mesma noite, os dois começaram a treinar no terraço noroeste - aonde ninguém tinha acesso. Craon lhe ensinou algumas técnicas de defesa e de escalada. Assim, ela aprendeu a se agarrar nas paredes e saltar da maneira mais fácil e adequada a sua compleição física.
Uma rotina se estabeleceu entre os dois, nos dias subsequentes. O treinamento, a diversão, as risadas e a cumplicidade... Tudo acabava invariavelmente com ele no quarto dela, ou ela no quarto dele. Juntos, eles contavam as estrelas; conversavam sobre sonhos e receios; trocavam impressões sobre o mundo... Então, Guilhem tornou a fazer o pedido.
-Agora é sério. Quero que cases comigo.
Ele estava esparramado sobre a cama dela. Ambos deitados lado a lado, contando as estrelas que apareciam na janela enorme. A brisa fria entrava silenciosamente, apenas balançando de leve as cortinas; mas, naquele instante, nenhum dos dois se importava com a queda da temperatura.
-Por quê? – ela perguntou, já avaliando o rapaz de uma maneira diferente. Nos últimos dias, passou a admirá-lo como nunca admirou outro homem, com exceção do pai.
-Porque agora vejo que tu eras quem eu esperava. – Ele falou com sua costumeira simplicidade, que tanto a encantava. – Só não tinha me dado conta disso até que me deparei contigo. Tu és o espelho da minha alma.
-Romântico... Muito romântico. – Ela zombou, para disfarçar a emoção. - Mas Vossa Majestade sabe que isso não é suficiente. – Ela o surpreendeu. Na verdade, despejou sobre sua cabeça um balde de água fria ao enfatizar título real.
-Mas pode ser um começo... – Guilhem argumentou, humilde.
Joana meneou a cabeça, sentindo um aperto no coração.
-É, pode... – reconheceu. - Se vosso terrível pai não tiver outros planos para vós.
À menção do pai, Craon fez uma careta.
-Não serei um fantoche nas mãos dele – respondeu, com convicção.
Joana se perguntou, por um instante, se ele queria convencer mais a si mesmo do que a ela.
-Se quiserdes subir ao trono, tereis de fazer coisas das quais, muitas vezes, vós não ireis gostar. Nunca sereis inteiramente livre; e esse tipo de vida não é o que quero para mim. Não desejo ser aprisionada – fez uma pausa, e olhou-o nos olhos. – Não desejo ser rainha.
Ele encarou as próprias botas, em silêncio. Não conseguia encontrar um argumento a altura, por mais insana que fosse a alegação de uma garota que dize não desejar viver como uma rainha. Mas Joana não era qualquer garota, ele sabia muito bem. De repente, alguém bateu na porta e ambos se sobressaltaram.
Só houve tempo para que Guilhem se jogasse pela janela, enquanto Geneviève invadia o cômodo tagarelando, como sempre.
-O que estás fazendo ainda acordada, filha? – foi a pergunta que Craon ainda teve tempo de ouvir, antes de descer atabalhoadamente pelas trepadeiras. A resposta de Joana, porém, ficou perdida na distância.
***
Na noite seguinte, alguma coisa havia mudado entre os dois. Guilhem podia sentir que o gelo tinha se derretido... Joana já não se sentia indiferente aos seus avanços.
Durante o treinamento, eventualmente os corpos se tocavam; foi impossível não sentir a atração a envolvê-los, cada vez mais forte. Logo, os resvalos acidentais tornaram-se propositais; e então, eles começaram a se conhecer, como só os amantes jovens e ansiosos desejam se conhecer.
O encontro mais íntimo aconteceu à beira do lago, na parte mais retirada, onde os dois ficaram completamente nus e fizeram experiências que lhes deram inesperado e intenso prazer. Joana, porém, teve medo de ir até o fim.
Guilhem riu e brincou:
-Então, existe algo que a destemida guerreira teme.
Ela fez uma careta, tentando disfarçar o constrangimento, então perguntou:
-Por acaso, vós...
Ele não fingiu que não entendeu sobre o que ela estava falando.
-Já...
-Muitas vezes?
-Bem...
Ela deu um tapa no ombro dele.
-Ai! – Guilhem riu. Já aprendera a ler as reações de sua pequena guerreira. Sabia muito bem que o constrangimento de Joana era mais por estar um passo atrás dele, do que pela virgindade em si. Repentinamente, sentiu uma imensa ternura. Esticou a mão e passeou o dedo despreocupadamente ao longo do braço dela. Sentiu quando ela se arrepiou e tornou a sorrir.
-Joana, creia-me, não senti nada comparado ao que estou sentido contigo. Foi tudo muito rápido. Nunca senti o que sinto contigo.
Ele a abraçou e a fricção de pele contra pele causou um frisson nos dois.
-Casa comigo. – Ele repetiu, sussurrando em seu ouvido.
-Sim – ela finalmente concordou. Sem acreditar, Guilhem a encarou, maravilhado.
Então, Joana ouviu a aia gritando o seu nome e começou a se vestir às pressas. Ele ficou escondido atrás dos arbustos, nu em pelo, enquanto observava a garota se recompor. De repente, ele viu uma mancha roxa na perna dela e a tocou, preocupado. Joana interrompeu os movimentos, intrigada.
-Acho que devo cuidar para que o teu treinamento não seja tão rigoroso. – Ele comentou baixinho, mais para si mesmo.
Ela deu de ombros, como quem diz que é bobagem. Segundos depois, estava diante da aia, que a olhou com desconfiança.
Também, pudera! Quem não ficaria desconfiado ao se deparar com uma Joana toda descabelada, com folhas secas emaranhadas no cabelo, e com as roupas amassadas? Nessas circunstâncias, só havia uma coisa que ela poderia estar fazendo... Tal informação não deixou de chegar aos ouvidos de Geneviève, que decidiu começar a seguir a filha.
***
Guilhem de Craon levou Joana para brincar com os outros garotos, em campo aberto, onde se podia jogar bola e/ou cavalgar, sem que os adultos interferissem. Por causa de seu novo posto, o de jovem herói dos clãs, não teve dificuldade para que os meninos aceitassem uma garota em suas brincadeiras.
A mãe de Joana os seguiu. De seu posto de observação, ela os vigiou por um longo tempo, fumegando de indignação. Concluiu que precisava contar a Isidoro o que estava acontecendo; não queria ter que fazê-lo, porque o marido fatalmente iria culpá-la pela situação... Mas, não havia outro jeito.
---
Isidoro estava na biblioteca, aguardando a ocasião em que seria chamado para uma entrevista com a rainha. O momento era decisivo, e ele estava preocupado com os próximos acontecimentos. Quando Geneviève veio lhe dizer o que Joana estava aprontando, ele não teve muito tempo para se enfurecer, ou culpar a esposa – para o alívio desta. Mas, a caminho da sala do trono, ele decidiu o que teria de ser feito com a filha.
E considerando as intrigas políticas em curso, na corte... Estava na hora de partir - o mais rápido possível - a fim de casar Joana com o filho do Marquês de Robitaille. Afinal, Craon já tinha o destino planejado por seu falecido pai; o que não incluía um casamento com Joana, e sim, com a primogênita de um clã antigo, considerado importante aliado da coroa - os Malherbe.
Se Isidoro apoiasse a união de Joana com o príncipe-herdeiro, todo o esquema desenvolvido com a finalidade de assegurar o trono a Guilhem iria ruir. Além do que, o ato de Isidoro poderia ser visto como alta traição.
Ele não era tolo. Faria a sua parte, cumpriria tudo o que o rei lhe ordenou em seu leito de morte, mas trataria também de proteger os próprios interesses, porque não tardaria para que a notícia da morte de Pierre viesse à tona.
Em hipótese alguma, ele atrairia para si, ou para os seus, a ira dos clãs que apoiavam Hilda. Já bastava a rixa com os Chapelle.
***
Conhecendo a filha, Isidoro não a avisou da partida iminente. Apenas ordenou à esposa que arrumasse malas e bagagens. Em seguida, mandou Camus e o chefe de sua guarda pessoal localizar Joana e trazê-la, se preciso à força. No entanto, recomendou que esperasse o momento mais propício, isto é, quando Guilhem de Craon não estivesse por perto.
Enquanto isso...
Joana sentia algo passar pelo seu nariz, fazendo-a espirrar. Ela abriu os olhos e localizou uma sombra pairando sobre a sua cabeça. Era Guilhem que, risonho, passava um ramo de capim pelo seu rosto.
Os dois estavam numa parte do lago onde ninguém poderia avistá-los, ou assim eles supunham.
-Que tal se a gente...? - Ela não completou a frase, mas sua mão desceu sugestivamente da camisa entreaberta do rapaz até o cinto da calça. Guilhem acompanhou o movimento com olhos velados; subitamente, segurou a mão dela.
-Eu prefiro esperar.
Ela franziu a testa - antes, ele queria ir até o fim, mas foi ela quem o impediu. Joana não entendeu porque ele agora tinha mudado de ideia.
-Vós estais bancando o difícil?
Guilhem deu uma gargalhada.
-Pode ser... Quero me certificar de que tu não irás me recusar como marido, depois da experiência.
-Eu já disse "sim"... E nunca volto atrás na minha palavra.
Ele levou a mão dela aos lábios.
-Prefiro prevenir.
-Tolo. - Ela sorriu. – Se fôsseis esperto, tiraríeis a minha virgindade agora, e assim, eu seria obrigada a me casar convosco para não ficar desonrada.
Ele estreitou os olhos.
-É mesmo, não é?
Guilhem baixou a cabeça em direção à dela, mas Joana rolou para o lado.
-Bem, bem... Agora não estou mais com vontade.
-Diabinha! - Ele riu. - Tenho que me lembrar, no futuro, de que tu és uma garota muito orgulhosa.
Ela arrumou as roupas e sorriu.
-Muito orgulhosa e muito malvada – tratou de corrigi-lo com voz suave. Então, jogou-lhe um beijo e seguiu pela trilha. -Tenho que ir, antes que minha mãe desconfie - falou por cima do ombro.
Guilhem suspirou, olhando para a flor que ela tinha segurado entre os dedos, mas deixou cair sobre a relva macia. Quando foi que ele se tornou tão sensível a outro ser humano? (Naturalmente, foi um processo que começou com as aulas de Pascal, seu amigo misterioso. E desaparecido, diga-se de passagem!) Entretanto, ele não pensava nas garotas além daquelas que conhecia - as prostitutas do bordellum de Quiot.
De repente, ele se permitiu pensar na mãe de maneira objetiva, sem rancor. Teria sido parecida com Joana, quando seu pai a conheceu? Teria sido realmente forçada a abandoná-lo, conforme Denise não cansava de repetir? Se ela foi forçada a deixá-lo ir, então, porque nunca o procurou? O que a impediu?
Guilhem concluiu que estava na hora de tirar a história do seu nascimento a limpo. Procuraria Denise e Avraed para descobrir a verdade. Eles teriam que lhe dizer, ou ele os ameaçaria de buscar a verdade na fonte – ou seja, direto no palácio de Aachen. Não era lá que diziam viver a saxã que enfeitiçou seu pai?
Pensando nessa possibilidade – isto é, de viajar para Aachen, ele nem notou quando Joana estendeu a mão desesperadamente, do outro lado da margem. Alguém lhe tapava a boca, para que ela não gritasse. Quatro braços foram necessários para contê-la, especialmente agora que ela conhecia os golpes de defesa que Guilhem lhe ensinou.
Depois de dominada, seu irmão Camus e o chefe da guarda a carregaram silenciosamente por entre as árvores até alcançarem a carruagem, que já esperava na rampa de trás do palácio.
***
Guilhem seria surpreendido por uma sorridente Zenóbia, à hora do jantar.
-Soube que não tereis mais vossa amiguinha para brincar...
Ele franziu a testa, sem entender.
-Joana du Saint-Martin... – A irmã explicou, lambendo a gordura de frango dos dedos. - O Grão-duque Isidoro partiu, levando toda a família para o castelo Robitaille, na Baviera. Ele pretende casar a filha rebelde com o filho do marquês.
Guilhem não se mexeu, mesmo depois que Zenóbia se afastou - deixando para trás uma nuvem enjoativa de perfume misturado com fritura. (Todos sabiam que ela não era afeiçoada a banhos, portanto...). Contudo, o cheiro da irmã pouco interessava a Guilhem, no momento. Joana havia partido, sem uma palavra...
O salão ao seu redor pareceu girar e desaparecer. Imaginou ter ouvido, por um instante, a voz de Pascal. Claro, era só a sua imaginação... Mas fez com que algo mudassem em seu íntimo.
Se Vossa Majestade fosse o herdeiro legítimo do trono, ninguém além de vós disporia do vosso destino. Fatidicamente, não é o caso... Por isso, não esqueçais: a inteligência é superior à força física. Mas, um bom líder sabe se servir de ambas.
O olhar de Guilhem endureceu.
Foi um Guilhem muito diferente que se sentou à mesa das crianças, naquela noite. Hilda entretinha o emissário do Papa e mal o notou. Contudo, de seu posto, o atento Avraed percebeu que o garoto estava mudado... Ele tinha aquele olhar característico de um jovem que acabou de se tornar homem; e Avraed estava certo de que não foi por causa das provas de bravura enfrentadas no torneio.
Foi a perda da garota, concluiu o saxão, pesaroso. Deveria lhe contar que ela partiu contra a vontade? Talvez fosse melhor deixá-lo acreditar que Joana não se opôs ao destino que a aguarda na Baviera. Guilhem tinha muito a enfrentar; o destino da Coroa estava em jogo.
A filha do Grão-duque Isidoro era uma distração indesejável.
***
No dia seguinte, Guilhem de Craon fez o que ninguém esperava: apresentou-se ao conselho tribal, munido de ideias para liderar os jovens guerreiros que ele agora representava.
Ninguém poderia imaginar que o príncipe já tinha estruturado um plano político que colocaria o governo de Hilda em xeque. Estava declarada a disputa pelo trono!
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