O arquivo 13-13

Felipeto estava sentado diante do pacote, encarando–o como quem encara uma cobra venenosa. Ele sabia que aquele dia chegaria, afinal, ingressara na Ordem com a esperança de fazer a diferença. De combater os desmandos e a corrupção que ele via diariamente nos monastérios e abadias. Questões de vida e morte tornaram–se um grande comércio para a Igreja. E os padres que desejavam agir corretamente eram oprimidos, isolados, alguns até difamados.

Mas, agora que se defrontava tão... abruptamente... com o fato de que deixara de ser um mero aprendiz para se tornar guardião... Felipeto realmente não sabia o que fazer. Não se sentia à altura da tarefa.

–Não vai te morder, sabes? – soou uma voz divertida ao lado da mesa.

Felipeto ergueu os olhos distantes para o velho curador da biblioteca.

–O que disseste, Dom?

Teodoro, com seu rosto enrugado (a tal ponto que Felipeto julgou ter visto sulcos cortando–lhe a pele), observou–o com frio divertimento. Os cabelos branco–amarelados, tão eriçados, que pareciam nunca terem visto um pente na vida, projetavam–se da testa brilhante de suor. E havia manchas de musgo. Felipeto baixou os olhos para as mãos dele, constatando que estavam sujas de terra e limo. Aparentemente, o bibliotecário estivera bastante ocupado enquanto Felipeto corroía–se num misto de temor e indecisão.

Ao sentir–se observado, o velho monge demonstrou certo constrangimento; o que surpreendeu Felipeto. Segundo o que diziam, e por tudo que ele percebeu, ele não se constrangia com facilidade.

–Meu jovem guardião, é só fazendo que realmente se aprende – o monge tornou a encará–lo, já sem um resquício sequer de vulnerabilidade.

Pelo visto, estava tão habituado a viver só naquela ilha, que o contato com outras pessoas tinha o poder de perturbá–lo. Ao ver–lhe a expressão, Felipeto constatou que não era uma perturbação no bom sentido... O monge não gostava de visitas.

–Quanto mais adiares a tarefa, mais difícil há de te parecer – arrematou o bibliotecário, dando–lhe as costas.

Felipeto suspirou, e como quem está se dirigindo à forca, começou a desfazer os nós da trouxa de tecidos que envolviam a pasta.

A primeira coisa que ele percebeu foi a natureza do couro da pasta – extremamente duro. Deve ter sido feito com a pele de algum animal de grande porte, conjecturou, distraidamente. Ou passara por algum tratamento químico que ele desconhecia. A cor do couro era castanha e lisa. Lembrava a pele humana curtida pelo sol. Ele descartou a ideia em seguida. Seria absurdo! No entanto, havia um fecho de ouro oculto pelo lado de dentro das abas.

–Está trancado! – disse ele, em voz alta.

–Claro que está! Cabe a ti girar a combinação. Para isto, recebeste o código.

O rapaz ficou rígido na cadeira.

–Mas eu não sei qual é! – desabafou, horrorizado.

–Claro que sabe – retrucou o velho, impaciente. – No dia em que foste recebido em Bari para o treinamento, recebeste um código. Pois bem, é o mesmo que abre o arquivo que te foi confiado.

Ora, como Felipeto iria se lembrar de tantas coisas que foram ditas e feitas em seu primeiro dia de treinamento? Foi há cinco anos!

–Se não te lembrares do código, serei obrigado a acionar o protocolo de proteção da biblioteca – disse o monge, agora sombrio.

–Como assim? – Felipeto indagou, entre confuso e temeroso.

–Se não sabes o código, podes muito bem ser um espião plantado pela Santa Madre. Terei de expulsar–te daqui e soltar as feras.

Por essa, Felipeto não esperava. Ele engoliu em seco.

–Juro por tudo o que há de mais sagrado que não sou espião. Eu... só... esqueci... o código.

O velho se levantou e, com uma expressão pesarosa, respondeu:

–Lamento muito.

Ele se dirigiu à parede próxima, onde havia um sino de médio porte. Ou seja, de tamanho suficiente para soar badaladas potentes, a serem ouvidas por toda a ilha.

Num piscar de olhos, Felipeto compreendeu o que estava por vir... A situação era grave. A menos que ele se lembrasse do maldito código... Iria morrer!

Respirou fundo e fechou os olhos. Pense. Pense. Pense. Como foi o seu primeiro dia na Ordem? Ele foi entrevistado... Por quem? Pelo irmão Albino... O que o irmão Albino lhe perguntou? Se ele estava certo do que queria fazer... O que respondeu? Sim que estava pronto a servir a Ordem. Qual foi a reação do irmão Albino? Cruzou os braços e perguntou se Felipeto estava disposto a pagar com a própria vida. O que foi que respondeu? Certamente estava...

Mas não tão cedo. Não assim! Não agora! Agora ele.... Esqueça o agora. Volte para aquele dia.

O que Albino fez em seguida? Levantou–se, acionou a campainha e o irmão Alberto apareceu. Ele iria ser o seu mentor. Então, Albino dissera que era uma honra tê–lo como mestre, pois Alberto era o sucessor de Sabbatius, indicado pelo próprio monsenhor. Dissera, ainda, que o monsenhor insistira que Felipeto fosse treinado por ele. Qual o motivo? Não fazia ideia. Felipeto tinha conhecimento de uma ligação obscura entre o monsenhor e sua família. Mas não arriscava nenhum palpite de como um religioso tão importante conheceria seus pais, uma vez que eram pobres agricultores.

Que mais o irmão Albino dissera? Que seu status na Ordem, a partir daquele dia, era o mesmo da gralha... Que ele deveria assimilar as características e qualidades da ave e se comportar como tal.

Na hora, Felipeto não entendera o que isso significava, mas considerando as aulas que teve, e todo o sermão de como os membros da Ordem deveriam estar atentos aos detalhes, de como cada detalhe tinha o seu significado... Agora, Felipeto compreendia que aquele devia ser o código.

Gralha.

–Já sei – disse, em voz alta, mas o velho não lhe deu atenção. Começou a badalar o sino. O som alto e forte ecoou por toda a caverna. Lá fora, as feras começaram a rugir alvoraçadas, como se soubessem que logo provariam de carne humana fresca.

Felipeto virou para o pacote e começou a girar a combinação, atrapalhando–se e tendo que recomeçar do zero. Ele colocou as letras na ordem, dentro do tambor giratório do cadeado de ouro. As letras eram muito pequenas e custaram a se encaixar no alinhamento de dez quadrados. Ele completou seis letras e deixou os outros em branco. Rezou silenciosamente para estar certo.

O cadeado deu um clique e Felipe o abriu rapidamente. O velho parou de badalar o sino e se aproximou da mesa.

–Muito bem, guardião! – elogiou, observando atentamente o pacote aberto. – Acabou de aprender uma importante lição.

–Qual? – indagou Felipeto, ainda sob o efeito do susto e da raiva.

–Que tua vida depende dos detalhes.

O velho riu da expressão chocada do rapaz. Foi até a porta, abriu–a, então gritou para a escuridão da caverna.

–Hoje não, crianças! Muito em breve... Prometo!

Como é? O homem realmente queria alimentar aquelas feras com carne humana? Bem que Alberto dissera que o bibliotecário tratava as criaturas como seus bebês. O velho flagrou–o encarando–o com puro horror e desatou a rir.

–Garoto, é melhor te concentrares no arquivo.

Sim, ele estava certo. Os próximos dias deveriam ser de estudo. Ele não teria ninguém por companhia naquela biblioteca enorme e sombria. Exceto um velho maluco com seus monstros de estimação. E o barco só retornaria à Conta para buscá–lo no final da semana. Depois que tivesse memorizado todas as informações contidas no arquivo 13–13. Sobreviveria até lá? Ele esperava que sim.

Respirando fundo, Felipeto abriu a tampa de couro da pasta e começou a analisar o conteúdo. Deparou–se com vários pergaminhos. Aparentemente não estavam em ordem; pareciam fazer parte de um dossiê sobre determinados acontecimentos e pessoas. Ele percebeu um volume extra, de dentro da alça da pasta de couro. Puxou o embrulho de linho e surpreendeu–se ao ver sete pequenas pedras arredondadas, com símbolos estranhos gravados em um dos lados. Não eram lapidadas, nem pareciam especiais. Era apenas rochas ásperas com pictógrafos esculpidos.

Intrigado, ele tentou analisar as inscrições, quando ouviu um som inarticulado vindo da escrivaninha. Olhou naquela direção e surpreendeu–se com a expressão de ansiedade no rosto de Teodoro.

–As doze pedras da invocação – sussurrou o bibliotecário.

Confuso, Felipeto contou novamente.

–Não, são sete.

Teodoro ergueu–se lentamente e foi até sua mesa.

–São doze – explicou, com cautela. – Dizem que a Ordem procura por elas há séculos... Agora vejo que os boatos são verdadeiros.

–Quais boatos?

–De que só conseguiram recuperar parte do conjunto. Eu nunca as vi até hoje – olhou com severidade para o rapaz. – Não acredito que deram uma responsabilidade como esta a um guardião tão jovem... um aprendiz de rendimento mediano.

Felipeto não sabia se ficava ofendido, ou apenas concordava com a verdade nua e crua.

–O monsenhor deve ter tido seus motivos – Teodoro justificou como para convencer a si mesmo; então, avaliou–o com um novo olhar, sem o mesmo cinismo de antes.

Inclinou–se para o rapaz, com expressão grave.

–Presta atenção, filho. Tu não deves olhar para as pedras por muito tempo. Dizem que o poder contido nelas corrompe o mais sério dos monges.

Felipeto deu de ombros, desamparado. E agora?

–Mas eu nem sei o que fazer a respeito – sussurrou. – Alberto disse que eu deveria planejar minhas próximas ações depois que estudasse o arquivo. Mas eu não entendo sobre o que se trata, nem o que devo fazer.

Teodoro endireitou o corpo. O divertimento retornou ao seu rosto.

–Ah, a juventude. Tão apressada. Tu nem leste o arquivo! Como achas que conseguirás planejar–te?

Felipeto olhou para os documentos desordenados. Ouviu o velho monge dizer:

–Acho que sei qual é tua missão.

O rapaz virou a cabeça, ansioso.

–Qual?

–Não vês que faltam cinco pedras? – ele esperou que Felipeto dissesse alguma coisa. Como não o fez, Teodoro prosseguiu, exasperado: – Ah, eu já não tenho paciência para gente lerda, rapaz! Depois que leres o arquivo, se ainda não souberes, então, dir–te–ei.

E com isto, encerrou–se a conversa.

O rapaz virou–se para a pasta e colocou o conteúdo no que julgou ser a ordem cronológica correta... A começar pelos pergaminhos. Estavam em hieróglifo, mas os aprendizes da Ordem recebiam ensinamentos básicos em diferentes línguas, tais como o sânscrito, o sumério, e o egípcio. Ele começou a tradução... O que lhe custou a tarde inteira. Ao final, continuou tão confuso quanto no começo. Será que tinha se enganado? Não podia ser, não fazia sentido. O título solitário no alto da folha, acompanhado pelo símbolo de Maat – o olho que tudo vê, dizia:

"O necromante – um nome que não se deve pronunciar"...

Felipeto sabia que os egípcios valorizavam o nome. Acreditavam que carregava um poder incomensurável tanto no mundo invisível quanto no mundo físico. O nome determinava o destino das pessoas. Protegia seu dono de elementos nocivos que emanavam do lado oculto. O lado em que as criaturas malévolas vigiavam as ações dos vivos. O nome também era o salvo conduto para o pós–vida. Era o condutor de boas energias e sortilégios...

A pessoa continuaria viva, no mundo concreto, desde que o nome permanecesse vivo. Lembrado. Estimado. Por essa razão, quando se retirava o nome de uma pessoa dos escritos, era uma das piores coisas que poderia lhe acontecer. Era como receber a pena de morte.

Naturalmente, os monges copistas teriam mais conhecimentos para decifrar o significado da frase traduzida. Mas na qualidade de guardião, Felipeto não poderia pedir ajuda a ninguém. Nem mesmo ao bibliotecário. Teria que descobrir sozinho.

–Será que encontro um dicionário por aqui? – ele perguntou em voz alta. Sem ter certeza de que fora ouvido, procurou Teodoro com os olhos. – Para antigos pergaminhos egípcios?

A resposta foi uma risada maldosa.

–O que tu achas? Esta é a maior biblioteca de todos os tempos. Maior do que a de Alexandria – disse o velho sem esconder o orgulho.

Seus braços se abriram abraçando simbolicamente a extensão a perder de vista de estantes que seguiam em todas às direções – para cima, para baixo e para os lados. Felipeto contemplou as fileiras intermináveis de prateleiras – todas abarrotadas – e se perguntou, por um instante, como o bibliotecário dava conta, sozinho...

Resolveu que a resposta não seria agradável, caso ousasse proferi–la em voz alta. Por isso, voltou os olhos para seu arquivo e continuou a estudá–lo, em silêncio.

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