Dedos acusadores pesam mais (que boas ações)

Lenora apelou para a boa vontade das mulheres do povoado, a fim de que a ajudassem a tratar dos francos feridos, mas foi inútil... Mesmo diante do argumento de que seria a única chance de sobrevivência delas - e de seus filhos, maridos e familiares, as saxãs pareciam não temer a ira do "Impiedoso", ou não se davam conta do real perigo que o imperador franco representava... E quando finalmente percebessem, poderia ser tarde demais.

No pouco tempo que teve para tanto, Lenora avaliou o imperador franco. Já conhecia sua fama... Diziam que ele empalava os inimigos em praça pública, que mandou queimar uma vila inteira com os aldeões dentro; que decidiu uma batalha entre dois exércitos de milhares de homens apenas duelando com o rei da Trácia - conhecido como o maior espadachim do Ocidente. Segundo contam, foi um duelo que durou horas e horas... Quando o rei da Trácia caiu morto, o exército traciano debandou em silêncio, e as fronteiras dos francos voltaram a ficar seguras. Dizem, ainda, que Pierre já executou traidores da própria corte... Sumariamente, sem sequer um julgamento. Teria dito, na ocasião: "Eu sou a Justiça".

Mas o que era verdade, o que era mito?

Vê-lo frente a frente, todos os dias, era algo perturbador. Tratava-se, sem dúvida, de um homem impressionante, com uma indiscutível aura de poder que poucos ousariam desafiar e sair vivos... O rei da Trácia era um exemplo disso. O adjetivo "agressivo" quase poderia defini-lo, mas seria simplista demais. Sim, a agressividade estava lá, nos detalhes. O homem era econômico em seus movimentos, como um felino grande que não gasta suas energias até o momento em que é necessário. Não apenas agressivamente belo, mas gracioso... Seus olhos eram dois lagos gelados. Olhos de quem já matou muita gente sob o fio de sua espada. Impossível evitar um estremecimento, toda vez que se deparava com aquelas íris azuis a observá-la. Lenora já tinha visto na natureza um predador observar a presa e era exatamente igual.

Chegou a conclusão de que um rei que luta lado a lado com seus homens no campo de batalha, ao invés de assistir do alto de seu trono... Capaz de manter tantos territórios e não temer afastar-se da corte, ou ser vítima de um golpe por parte dos inimigos... Este, sim, era um homem para se temer. E se respeitar. Ele, certamente, não tinha conquistado o título de Impiedoso a troco de nada.

Como nenhuma justificativa convenceu as mulheres da aldeia, Lenora decidiu agir sozinha. De modo que os camponeses rapidamente se voltaram contra ela, acusando-a de trair o próprio povo. A devoção que nutriam pela sacerdotisa de Bremen revelou-se efêmera, tendo em vista as reações exaltadas. As crianças da aldeia foram as únicas que não a abandonaram... Mas logo as mães proibiram-nas de se aproximarem.

Lenora contou apenas com a ajuda de sua velha dama de companhia, até que conseguiu a adesão de algumas mulheres consideradas párias da comunidade. Prostitutas, deficientes, viúvas, e até as leprosas... Lenora não selecionou a mão que lhe era estendida. Toda e qualquer ajuda foi bem recebida. Não ousou pedir a elas que ajudassem com os inimigos, porque sabia muito bem que essas mulheres, já tão rejeitadas socialmente, sofreriam as consequências mais tarde.

Ela deixou os feridos saxões aos cuidados delas, antes de sair em direção ao acampamento franco. Foi, então, que começaram as pedradas...

Surpresa, a sacerdotisa percebeu o impacto depois de sentir a dor e de registrar a presença de sangue em seus braços e costas. Era o seu sangue. Estava sendo atingida por pedras arremessadas de todos os lados. Contudo, ela não fugiu, nem baixou a cabeça. Seguiu cambaleante até o poço e puxou um balde cheio de água - o qual necessitaria para os curativos dos inimigos francos.

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Pierre não estava alheio aos padecimentos que a mulher vinha sofrendo. Assistia de longe, com olhos astutos... E contra a sua vontade, começou a sentir uma certa admiração por ela. Ingratos!, ele reagiu com uma raiva que o surpreendeu. Lenora suportava estoicamente, mesmo que o próprio povo esquecesse rapidamente tudo o que ela fez por eles. A admiração que ele sentia estava começando a romper seu preconceito e antipatia naturais pelos saxões. Não que tivesse alguma compaixão por aquela gente!

Apenas por ela.

Diante dele, estava uma mulher formidável, tratando da melhor maneira possível os doentes inimigos. E ele sabia que não era por causa de sua ameaça, mas porque para a sacerdotisa, toda a vida humana valia a pena ser salva.

Enquanto seus homens organizavam o acampamento e as tropas, Pierre tentava planejar a realização de uma sondagem em torno do Castelo Oberland. No entanto, seus sentidos estavam focados nas ações da bela sacerdotisa. Pierre logo se flagrou acompanhando os menores gestos da mulher. Imaginou se ela não teria lhe lançado algum encantamento, que o mantinha cativo e distraído das tarefas que exigiam sua atenção. Por fim, concluiu que a falta de companhia feminina era a responsável pela sua perturbação.

Todos os dias, ele via a bela saxã caminhar de um lado a outro - limpando utensílios, desinfetando machucados, dando de comer e beber aos doentes... Parecia jamais se cansar.

Até o dia em que ela cambaleou...

Pierre se conteve para não ampará-la. Chamou dois dos seus homens e, discretamente, mandou que a ajudassem nas tarefas e a protegessem da ira dos camponeses que tentavam atacá-la.

-Saxões estúpidos! – resmungou o rei.

Não sabiam valorizar seus homens, quanto mais suas mulheres! Mereciam ser dominados, não dominadores. E algo dentro do peito de imperador começou a crescer e a rasgar de dentro para fora, embora ele não quisesse reconhecer ou dar crédito. Se havia algo que Pierre aprendeu era temer o próprio coração mais do que o inimigo.

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Passada uma semana, Leon começou a se recuperar visivelmente do ferimento grave. A notícia provocou imenso alívio em Pierre. A inquietação substituiu o alívio, porém, quando o imperador flagrou o amigo em conversas amistosas com a "feiticeira" saxã. Nos olhos de Leon, Pierre percebeu um brilho de adoração e gentileza que nunca tinha visto antes. Isso fez com que o o sangue do rei fervesse, inexplicavelmente. Estava com ciúmes , ele reconheceu o fato, com frieza.

Ele, que nunca teve ciúmes de uma mulher. Desde a adolescência, estava acostumado a dividir suas conquistas com o amigo. Mas só de imaginar Lenora nos braços de Leon, Pierre se sentia capas de uma atrocidade.

Certo dia, agoniado, Pierre não aguentou mais e foi até a cabana reservada ao doente. A saxã entrara lá dentro há muito tempo. Tempo suficiente para que os dois... O rei estacou do lado de fora, ouvindo o riso cristalino da mulher, entremeado pelos sussurros masculinos. Ele se sentiu tentado a invadir a cabana. Naquele meio segundo de hesitação, Lenora saiu despreocupada pela porta.

Ao se deparar com ele, a sacerdotisa deixou cair a cesta de ervas, tamanho o susto que levou. Pierre não pensou duas vezes, agarrou-a rudemente pelo braço e avisou, num sussurro:

-Dá instruções a um dos meus homens. Tu não irás mais tratar de Leon, a partir de hoje.

Uma expressão de desalento surgiu no rosto dela, o que fez a raiva de Pierre só aumentar. Era óbvio, para ele, que a saxã já dedicava algum tipo de afeição pelo doente. Sem parar para pensar, o imperador a sacudiu.

-Lembra-te do que eu te disse sobre teu castigo? Pois bem, deverás te submeter a mim, a partir desta noite.

Os olhos da mulher dardejaram.

-O senhor me prometeu que meu castigo não seria pior do que a morte. Pois é preferível deixar este mundo a me submeter a ti.

Pierre sorriu, sarcástico. Mas, por dentro, ele fervilhava de ódio. Sentiu como se ela o desprezasse... Ousava rejeitá-lo, a maldita. Pois bem, ele iria lhe mostrar quem ele era. Antes que perdesse a cabeça ali mesmo, diante de todos, fez com que ela girasse bruscamente. A tentação de incliná-la e possui-la na frente dos homens foi brutal. Queria humilhá-la, mas algo o conteve. Algo que nem ele saberia dizer o que era... No fundo, se parasse para pensar, reconheceria que era medo. Medo de que ela de fato o rejeitasse. Segurando-a firmemente pela cintura, aproximou os lábios de sua nuca e observou com desejo aquele pedaço de pele.

Permitiu-se aquele momento, antes de dizer:

-Olha ao redor, senhora. Teu povo a renegou – a voz dele soou rouca e implacável. - Eles te desprezam, porque acreditam que tu te vendeste para nós.

Deixou que ela assimilasse as palavras, antes do golpe final.

-Hoje cedo, recebi uma resposta de teu marido à mensagem que enviei ao clã. Quer saber o que ele mandou me dizer? – Esperou por um momento, sentindo-a estremecer. Uma pontada de arrependimento ameaçou dominá-lo, mas ele tratou de afastá-la. – Teu marido prefere que eu te mate, ao invés de barganhar o teu retorno em segurança.

"Aparentemente, Sunna considera a tua morte mais honrosa do que a rendição. O curioso é que ele não considerava menos digno tramar pelas minhas costas, enquanto concordava com os termos estabelecidos durante as negociações de paz. Termos que ele assinou utilizando o emblema dos Oberland, no tratado de Hamburgo".

Seus lábios tocaram de leve a pele de Lenora, provocando-lhe um arrepio. Conhecedor, ele percebeu a reação da jovem e sorriu. Ela não lhe era tão indiferente quanto queria demonstrar.

O rei se forçou a prosseguir:

-Se ele queria guerrear, que o fizesse abertamente. Acho que podemos concordar que a coragem do líder saxão é dúbia, minha cara. Especialmente, no que diz respeito às mulheres de seu povo...

Ela tremeu diante de tais palavras; reação que também não passou despercebida a Pierre.

Só de pensar em Sunna e tudo o que sabia a respeito do chefe de clã, o semblante de Pierre se fechou. Suas mãos apertaram brevemente os braços de Lenora, deixando-a em alerta, sem saber o que esperar ou o que lhe passava pela cabeça. O rei quedou-se silencioso por longos minutos.

Vencido pela curiosidade, Pierre comentou:

-Pelo que fui informado, milady, o teu marido te brutalizava. Desejas permanecer fiel a ele?

Lenora conseguiu se virar e encará-lo. Precisou de todas as suas forças para sustentar o olhar. Havia algo perturbador não só no jeito como ele a olhava, mas no teor do comentário... Como Pierre sabia sobre as circunstâncias do seu casamento? Haveria espiões em seu castelo? De fato, Pierre fazia jus à fama que tinha - era extremamente bem informado e perigoso.

-Desejo ser fiel ao meu povo! - Ela o corrigiu, de queixo erguido. - Mesmo que não me queiram mais... – acrescentou, ainda com a voz firme.

E mais uma vez, Pierre a admirou.

-É o que veremos... – sussurrou junto ao seu ouvido, antes de soltá-la.

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Desde a chegada dos francos, Lenora vinha dormindo no celeiro, acompanhada de sua aia, e vigiada por dois soldados. (A medida visava mais a sua proteção contra a fúria dos aldeões, do que impedir uma possível fuga). Agora, Pierre ordenara que ela se mudasse para a barraca real, o que implicava em deixar para trás a aia e conviver de perto com o inimigo. Lenora esperava fervorosamente que sua permanência na tenda do rei fosse curta... E que ele logo se cansasse dela.

Só de pensar no que estava prestes a acontecer, seu estômago se contraiu... Mas havia lá no fundo - no fundo! - uma sensação a mais, que ela não conseguia, ou não ousava distinguir... Expectativa? Excitação? Pierre era reconhecidamente um homem viril; diziam as más línguas que era conhecedor das mulheres. E que elas caíam perdidamente apaixonadas por ele.

Lenora fechou os punhos. Não se permitiria ser manipulada pelo crápula. Ingressou na tenda, resoluta – apenas para encontrá-la vazia. Ela respirou fundo, tentando se acalmar... Foi como um anticlímax. Ela se preparou para uma batalha de vontades em meio às privações que lhe seriam impingidas. Não para um ambiente tão acolhedor, depois de dias fustigada pela falta de conforto em seu dormitório improvisado.

Ao centro da tenda, a fogueira trepidava, emanando luz e calor agradáveis; o que ajudou a acalmar um pouco as emoções conturbadas que a afligiam. Tão logo ela se acomodou nas almofadas, Pierre chegou, dispensando o vigia com um gesto distraído.

Sem dizer palavra, o rei encheu uma taça de vinho e lhe ofereceu. Lenora ignorou a taça, desviando o olhar. Pierre sentou-se entre as almofadas e a encarou com expressão entre divertida e insolente. O silêncio perdurou até que Lenora sentisse à beira do insuportável. Desejando se ocupar com algo, estendeu a mão para pegar a jarra de água.

-Não. – Pierre disse, baixinho. - Quando estiver em minha presença, tu só podes beber e comer das minhas mãos.

Ela ficou rígida. Tal costume era um direito do marido sobre a esposa. Mas Pierre não podia se autoproclamar seu marido, já que ambos eram casados com pessoas diferentes. Lenora sabia muito bem o que a atitude dele significava: ele a tornara sua propriedade, sua mulher, sua amante. Ainda sob o impacto desta súbita compreensão, ela recolheu o braço, disposta a morrer de fome e de sede antes de se submeter.

Pierre riu, suavemente. Ele conseguia ler os pensamentos que transpareciam na expressão da mulher. Levantou-se; pegou a jarra de água; foi até ela; e ofereceu-lhe a caneca cheia.

Lenora virou o rosto.

Passaram-se alguns segundos críticos, e de repente, ela foi agarrada pelos cabelos. Com a cabeça dolorosamente inclinada, ela sentiu a caneca forçando os seus lábios de uma forma nada delicada. A água escorreu pelo seu queixo enquanto dedos calejados e rudes forçaram-na a abrir a boca. Ela se debateu, engasgando, sentindo o ar lhe faltar.

-Aconselho-te a não me desafiar - alertou-a o rei, em tom perigosamente ameno. – Posso ser bem vingativo, quando quero... – Como ela continuasse a se debater, desta vez emitindo um gemido surdo, ele indagou: - Considera-me tão repulsivo assim? – Como resposta, ela o encarou com olhos brilhantes de fúria.

Com um sorriso lento, ele mesmo respondeu:

- Não... Acredito que não. Sei que, no fundo, não me és indiferente.

A mesma mão que agarrava seus cabelos, passou a massagear o couro cabeludo, aliviando a dor e causando uma sensação involuntária de prazes. Lenora endureceu as costas.

-Deixa-te levar, feiticeira. Permita sentir prazer em minha companhia - ele sussurrou junto ao seu ouvido. - É só isso que quero de ti. Garanto-te que não vais te arrepender.

Como ela nada dissesse, ele continuou, em tom persuasivo:

-Se souberes como lidar comigo, podes me ter aos teus pés. Caso contrário... Sofrerás as consequências da tua própria irreflexão.

Lenora avaliou as palavras, observando atentamente o homem parado a sua frente. Ele era atraente, não podia negar, mas dono de um temperamento cruel e perigoso - algo que transparecia no aço de seu olhar.

Um guerreiro, um assassino, um soldado.

Captando seus receios, entrevistos através do exame a que era submetido, ele respondeu:

-Não sou um monstro, senhora. Não vou te machucar, como teu marido fazia. Reservo minha fúria para o campo de batalha.

Lenora reconheceu que não teria escapatória. Além do mais, no íntimo, queria se render a ele e conhecer algo diferente do relacionamento que teve com Sunna.

-Que dignidade terei quando... – Ela começou a dizer, num impulso. Arrependeu-se a seguir, porém, ele entendeu muito bem aonde queria chegar.

-Quando tudo terminar? - ele assentiu com a cabeça e respondeu: - Terás a mesma dignidade de uma lady da corte franca. Meu nome e minha lei serão a tua proteção. Garanto-te!

Ele colocou a jarra de lado e puxou-a para si. Lenora não lutou. Deixou-se ficar entre o círculo de seus braços poderosos.

Aquela noite seria de grandes descobertas... Para ambos.

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Leon já tinha se recuperado o suficiente para supervisionar as tropas. Entretanto, perguntava-se constantemente onde teria se escondido o anjo que o tratou com tanta meiguice e desvelo. Estava certo de que não demoraria a descobrir... E quando isso finalmente aconteceu, o desapontamento foi enorme, embora soubesse que não tinha nenhum direito de se sentir assim.

Pierre agiu primeiro. Era seu amigo. Além do mais, era seu rei. Devia-lhe total lealdade – servindo e acatando suas ordens, não as questionando. Os soldados, contudo, não se sentiam da mesma maneira. Queriam também "desfrutar" das mulheres saxãs. Leon teve que silenciar os descontentes, que ameaçavam se insubordinar por causa das atenções que o soberano dispensava à sacerdotisa.

Leon puniu-os exemplarmente. Aplicou-lhes a dura disciplina, para que os demais refreassem os ímpetos... Mas estava cada vez mais difícil contê-los, já que o próprio rei fornicava dia e noite, como se comentava entre as tropas, enquanto que, aos soldados, era proibido tocar nas mulheres da aldeia.

Havia dias que Pierre nem deixava a barraca.

O descaso do monarca para com a missão de guerra, aliado ao jejum sexual dos soldados (ainda por cima saudosos das esposas e filhos), era como uma flecha cravada no peito de cada um deles. Uma revolta iminente se avolumava diante dos olhos de Leon, que se viu obrigado a interromper o idílio romântico de Pierre a fim de relatar o que estava se passando.

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Embora dissesse a si mesmo que estava preparado para a cena que poderia encontrar dentro da tenda, nada conseguiu aplacar a dor ao se deparar com a realidade: a sacerdotisa deitada na cama de Pierre, com o corpo oculto apenas pelas peles de animais. Ele desviou o olhar, tentando se controlar.

Morta de vergonha, Lenora escondeu o rosto sob a cortina de seus cabelos negros.

Leon logo localizou o rei. Pierre permanecia sentado em um banco de madeira, vestindo apenas a calça íntima. Ele aparentemente passava os olhos por um pergaminho; ao passo que ela tentava ocultar a nudez afundando-se ainda mais entre as peles. Era óbvio que, se tivesse entrado minutos antes, teria flagrado os dois fazendo sexo.

Constrangido. o Duque pensou em dar meia volta, mas de repente Pierre ergueu os olhos do pergaminho, impelindo-o a se explicar. Leon não teve alternativa a não ser contar o motivo de sua presença.

O general percebeu que o rei encarava-o com um olhar estranho, procurando analisar detidamente a sua reação. Era um olhar que nunca existiu entre dois homens que cresceram juntos, compartilharam diversas mulheres, e se tratavam como irmãos. Leon conhecia bem demais o brilho cruel na expressão de Pierre, nunca antes usado contra ele, e teve a certeza de que a amizade entre os dois não seria mais a mesma.

Deixando de lado seus pensamentos conturbados, ele tratou de relatar os fatos ao seu rei. Enquanto Pierre ouvia, a sacerdotisa aproveitou a oportunidade para se vestir.

Quando Leon parou de falar, Lenora percebeu que o silêncio perdurou alguns segundos até que Pierre dispensasse o general com um gesto, sem um comentário sequer em relação às tropas. Aparentemente, Pierre pretendia lidar com elas pessoalmente.

-Leon... - Pierre lembrou-se de dizer, esperando que o amigo se voltasse para ele novamente. - Nunca mais torna a entrar em minha barraca sem te fazeres anunciar.

Para o Duque, foi um tapa na cara. Nunca precisou se anunciar para ver o rei. Mas ele entendia perfeitamente as razões de Pierre e as respeitava. Com uma inclinação de cabeça, o Duque deixou a tenda. Ainda estava perto da entrada, quando ouviu Lenora dizer:

-Não posso deixar os doentes sem assistência tanto quanto tu não podes deixar tuas tropas.

Leon sorriu, diante do argumento, um pouco surpreso com a intimidade com que foi dita. Pierre não permitia tais ousadias de suas mulheres. O seu anjo curador era esperto... Em tão pouco tempo, já tinha descoberto uma maneira sutil de lidar com a intransigência de Pierre. Não conseguiu entender o resmungo mal humorado do imperador.

Sorriu pela primeira vez, naquele dia.

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Duas vontades férreas passaram a se digladiar, na mesma medida em que a atração os fez sucumbir aos caprichos do destino. O rei exigia da sacerdotisa que se submetesse a todas as suas vontades, sem exceções e sem tréguas. Ela, por sua vez, debatia-se a cada etapa, lutando para ter um mínimo de controle sobre a própria vida (embora, no íntimo, soubesse que a liberdade estava fora de alcance).

O destino das mulheres era servir aos homens. Um destino escrito por eles, naturalmente... Não por Deus. Se o Senhor criou seres tão diferentes entre si, era porque não queria pessoas iguais umas às outras. Não cabia a lógica de que havia gêneros ou etnias privilegiadas, as quais recebiam mais atenção de Deus do que outras. Portanto, as mulheres não deveria ser escravas das vontades masculinas. Se Ele estabeleceu o livre arbítrio, não seria um disparate dizer que Ele teria determinado que poucas etnias e, dentre elas, apenas os homens poderiam senhorear-se sobre outros seres humanos? Que poderiam escravizá-los? Que a mulher deveria prestar obediência ao homem, por ser um receptáculo impuro - sem alma - servindo apenas aos propósitos reprodutivos?

Pois uma elite de autoproclamados sábios – entre líderes nobres, e religiosos com o poder sobre a pena - apreciava colocar palavras na boca de Deus para obter vantagens... Por essa razão, Lenora nunca seria favorável a cristianização de seu povo. Para ela, Deus não era aquilo que queria fazê-los acreditar.

Em face à natureza reprodutiva da mulher, havia uma justificativa bem comercial para a perpetuação de linhagens a ser negociada e vigiada de perto. As mulheres eram propriedades e mercadorias de troca – por vezes, valiosas; por vezes, baratas – dependendo da estirpe e/ou da casta. Naturalmente impuras, e carregando o peso do pecado original, elas poderiam nascer destinadas à prostituição ou à devoção... De uma maneira ou de outra, eram as mulheres desgastadas pela exposição social, ao longo da vida (para seus pais, maridos, amantes, patrões, e para a sociedade como um todo).

Lenora lembrou-se de ter ouvido uma antiga lenda, sobre uma linda mulher - a mulher mais linda do mundo antigo - chamada Helena de Troia. Era apenas uma mulher – de beleza invulgar, verdade seja dita... Mas, ainda sim, uma mulher que ousou fugir do jugo do marido. Ela escapou da corte com outro homem, um príncipe que a escondeu em sua cidade, mediante a aprovação do pai, o rei de Troia. A situação exigia do marido uma resposta à altura, claro, considerando seus interesses e o contexto político de suas relações com Troia.

Comparando a sua situação à de Helena, Lenora chegou a conclusão de que os nobres do clã de seu pai pensariam de um jeito não tão romântico... Se o marido optou por não resgatá-la, o invasor franco sentiu-se no direito de reivindicá-la para si. Isto era fato. Esta era a lógica, sendo ela uma reles mulher... E mulheres são apenas objetos de barganha. No fundo, no fundo, porém, ela sabia que o oposto parecia mais verdadeiro: o invasor franco a reivindicou para si, e Sunna Oberland nada pode fazer a respeito. Não porque se tratasse de uma mulher qualquer - longe disso, ela pertencia à respeitada nobreza de Bremen -, mas porque seu marido era, em essência, um covarde. E Lenora foi uma das pouquíssimas pessoas que conheceu a verdadeira natureza de Sunna Oberland. Para seus homens, bem como para o povo, ele podia ser o grande herói. A promessa de libertação da Saxônia. Para Lenora, ele era um desgraçado.

Deveras, Sunna Oberland sabia disfarçar muito bem sua covardia sob o elmo.

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Conquistar apenas o corpo de Lenora, não bastava.

Pierre já admitia para si mesmo que o seu desejo por ela era muito maior – como ele jamais sentira por outra mulher, antes. Precisava dobrar o seu espírito indômito. O que seria impossível de se conseguir pela força.

Pierre era experiente demais para não perceber que estava diante de uma mulher de fibra. Se a obrigasse, se a castigasse, se a torturasse ou se a estuprasse, seria como aprisionar um falcão. Ela jamais cederia; jamais se renderia. Tal como o pássaro-caçador: debater-se-ia, as asas quebrariam, no desespero de se libertar.

Seria uma morte em vida, lenta e inexorável. Ele não queria isso. Queria aquele espírito indomável ardendo por e para ele; aqueles olhos verde-aveludados, ele os queria brilhantes - brilhando por e para ele. Queria que ela lhe desse um filho... O tão ansiado Herdeiro do trono, cuja têmpera teria o melhor de seus pais.

Poucas opções lhe restavam, nessa questão. Pierre não estava disposto a deixá-la partir, pois não conseguia se imaginar vivendo sem tê-la por perto. Ao mesmo tempo, preocupava-se com sua segurança, já que o povo saxão não a aceitaria de volta; especialmente agora que se tornaram amantes. Precisava criar uma "gaiola" mais flexível para abrigar o seu doce falcão; enredá-lo sua trama, mesmo que ilusória, com a promessa de alguma liberdade e independência. E isso exigiria toda a sua astúcia como estrategista militar. Intimamente, tinha certeza de que estava lutando a maior de todas as batalhas: a do coração.

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Pierre levantou acampamento, deixando os aldeões sãos e salvos, como prometeu à sacerdotisa. Entretanto, ele a levou consigo.

O imperador franco continuou eliminando os focos rebeldes ao longo de sua marcha impiedosa. Em cinco meses, tomou toda a Colônia; isso foi pouco antes de Sunna refugiar-se com seus homens junto ao sogro, em Brêmen. Contudo, tanto os Oberland quanto os Schümer sabiam que era apenas uma questão de tempo para que Pierre fechasse o cerco e invadisse o castelo.

Os anjos pareciam conspirar a seu favor.

Se o líder Oberland decidisse enviar uma mensagem oferecendo rendição, ou pedindo a esposa "bem-amada" de volta, Pierre não aceitaria nem uma coisa, nem outra.

Estava decidido a esmagá-lo. E a todos os seus.

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A história iria contar que Pierre obteve pleno êxito onde seus antecessores falharam. Ele restituiu o controle franco sobre a Saxônia, refortalecendo o império. Mandou enforcar todos os membros do clã de Bremen e do clã Schümer. Mesmo as crianças e os velhos não foram poupados.

Contudo, inesperadamente, notícias se espalharam entre os povoados e correram por todo o território saxão: Pierre - o impiedoso, o imbatível, o implacável, teria modificado o decreto de morte, em atenção ao pedido de clemência feito por Lenora. Todavia, nenhuma outra localidade receberia a mesma consideração. Dizia-se que o rei franco estava enfeitiçado pela sacerdotisa pagã; boato que correu entre as tropas insatisfeitas de Pierre, tomando o rumo da corte franca (e aos ouvidos da rainha Hilda).

Pierre reformulou o decreto, permitindo que o chefe do clã Schümer, pai de Lenora, partisse de Bremen para cumprir exílio no norte gelado, levando consigo o neto, filho de Lenora com Sunna Oberland.

Lenora implorou para ficar com a criança, mas Pierre não permitiu. Não queria ter por perto o primogênito de seu maior inimigo. Seria como criar uma víbora em seu próprio lar. Pensando assim, o imperador mandou um grupo de homens seguirem Christoph Schümer e emboscá-lo em algum ponto do território dos povos eslavos. Pierre pretendia que Lenora jamais soubesse da morte do pai e do próprio filho. Ela não o perdoaria se soubesse.

O que Pierre não podia prever era que o saxão e o neto escapariam miraculosamente da armadilha (mais por uma intervenção do destino do que propriamente pela astúcia do velho Schümer). Avô e neto acabaram se refugiando entre os vikings dinamarqueses, os quais "apreciavam" os francos quase tanto quanto os saxões.

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Lenora foi enviada à Aachen, a fim de que não presenciasse a execução do marido. O enforcamento de Sunna ocorreu no instante em que a escolta que conduzia sua esposa deixava a marca da Francônia. Embora ela conscientemente não soubesse quando o marido seria executado, pôde intuir o exato momento em que ele expirou pela última vez. Não obstante, se dependesse de Leon e Pierre, ela jamais tomaria conhecimento a respeito das cenas lúgubres que antecederam à execução.

O líder saxão encarou Pierre com ódio, amaldiçoando a "esposa traidora" e toda a linhagem real franca. Enquanto blasfemava, Pierre mandou amordaçá-lo. A corda foi colocada em torno do pescoço de Sunna; o que não impediu que os olhos cintilassem assustadoramente, poucos instantes antes de seu pescoço estalar e quebrar, pendurado sobre o patíbulo.

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Tão logo chegaram à Saxônia pacificada, os nobres francos convocados pelo imperador para governarem a região, em seu nome, Pierre finalmente iniciou a longa marcha de volta ao seu reino. Mas, ao invés de seguir diretamente para a sede oficial do governo, em Paris, ele instalou uma nova corte em Aachen (reabrindo o antigo palácio de Carlos Magno).

Para os cortesões, o fato de Pierre dispor do santuário onde repousavam os restos mortais do grande conquistador, consistia em óbvia pretensão de reviver ou igualar o seu poderio ao dele. De fato, Pierre acalentava o sonho não só de reunificar o império de Carlos, como de superá-lo. Para isso, tinha pleno apoio do Vaticano. Afinal, ele estava trazendo de volta a ordem religiosa ditada pelo ilustre antepassado, e contribuído para aumentar o poderio da Igreja entre as fronteiras e além delas.

A vitória sobre a insubordinada Saxônia marcou o início do Império Perovíngio.

Meses após a incursão vitoriosa pela Saxônia, Pierre desejou ousar um pouco mais, fazendo de Lenora a sua companheira de fato; ou melhor dizendo, a rainha de seu coração. Essa decisão criou forma quando ele recebeu a notícia de que Lenora estava grávida.

Como Pierre ainda não obtivera um herdeiro do sexo masculino, apenas filhas, ele exultou diante da possibilidade de que nascesse um filho varão. Além disso, a gravidez lhe dava as armas necessárias para acorrentar o seu precioso falcão ao ninho.

As decisões do imperador, por serem inéditas e independentes dos interesses de Paris, provocaram frêmito na corte. Mas o escândalo só explodiu quando a notícia da gravidez chegou aos ouvidos da rainha Hilda. Para ela, que descendia de uma das famílias mais antigas do reino franco... E, portanto, leal servidora da estirpe de Carlos Magno e de todos os reis que depois dele vieram... A atitude do marido foi uma indubitável afronta. Na verdade, era um insulto pessoal que ameaçava a sua posição, como corregente do império. Por essa razão, Hilda mobilizou os clãs mais fortes, reuniu os grão-duques e duques a fim de convencê-los a pressionar o imperador para que retornasse à Paris. Afinal, as concessões que ele estava fazendo à saxã - uma inimiga da nação franca - poderiam comprometer o direito de suas filhas ascenderem ao trono; especialmente se a feiticeira e prostituta saxã desce à luz um filho do sexo masculino.

Hilda procurou mostrar aos chefes de clã que o império franco estava ameaçado com a possível coroação de um herdeiro bastardo – para piorar, de origem meio saxã. Ela se sentia segura do apoio do Conselho dos Grão-duques e duques... Já que há algum tempo, vinha costurando as alianças a seu favor.

Ela já tinha o apoio dos clãs.

Assim, o Conselho exigiu que o imperador retornasse à antiga sede de governo; e que renegasse a amante e a criança bastarda. Do contrário, estaria se arriscando a enfrentar um levante entre os próprios súditos.

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O imperador não se surpreendeu com o ultimato da rainha.

Sabia do que Hilda era capaz; e não iria subestimá-la justo agora, num momento tão delicado. Algumas gotas de veneno, sutilmente misturadas ao vinho, e Pierre encontraria seu doce falcão morto no ninho.

Assegurar que o seu reino permanecesse vitorioso, e que sua amada estivesse em segurança, exigia estratégias finamente tecidas. Por isso, no que dizia respeito ao ultimato, Pierre protelou qualquer decisão até o nascimento da criança.

Quando Guilhem veio ao mundo, o imperador exultou – porque, então, o céu tinha respondido as suas preces. A notícia do nascimento de uma criança do sexo masculino irrompeu pela corte de Paris como o prenúncio de uma tempestade. A rainha soube, então, que teria de eliminar o filho bastardo de seu marido, custasse o que custasse; caso contrário o seu poder e o de suas filhas estaria ameaçado.

Pierre fez um pronunciamento em que assumia a paternidade da criança, bem como estabelecia oficialmente a condição de refém da mãe. Tal condição assegurava a Lenora, a proteção das leis francas. Na mesma ocasião, o imperador nomeou o filho como seu herdeiro e sucessor.

Pierre estabeleceu um prazo de dois anos para retornar à antiga sede do governo. Até lá, comandaria todo o império direto do palácio de Aachen. Qualquer opinião contrária a sua decisão seria considerada alta traição – passível de levar os descontentes à execução.

As ações do imperador, de fato, foram a resposta ao ultimato da rainha.

Hilda compreendeu que o seu ultimato havia desencadeado outro, por parte do rei, infinitamente mais perigoso. Ela não subestimava Pierre e sua fúria implacável. Teria de esperar uma oportunidade propícia para executar o plano que havia arquitetado.

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