A verdade por vir
Se INCONVENIENTE, requer o uso do Poder
Se ANUNCIADA, emana do próprio Poder
A
lberto locomovia–se com dificuldade ao longo da caverna estreita e úmida. Em parte, devido ao peso do hábito religioso; em parte pelos desníveis traiçoeiros do solo. Felipeto vinha logo atrás, abraçado ao seu embrulho precioso – todo em lâminas de couro, cujo tamanho relativamente pequeno não denunciava seu real peso. O suor que brotava em sua testa era o único sinal do esforço que estava empregando para carregar o arquivo 13–13.
Repentinamente, um rugido metálico ecoou pelos subterrâneos, seguido por um rosnado mais baixo. Não menos ameaçador. Os dois jovens monges estacaram, ligeiramente... apavorados.
–Jesus Cristo! – Felipeto fez o sinal da cruz, desajeitadamente, quase deixando cair o embrulho.
Ele lançou um olhar desesperado por sobre o ombro, na direção do barco. Eles o deixaram atracado na minúscula baía, entre o píer feito de pedras e a faixa estreita de areia, em forma de "u". Parte da proa ainda estava visível através da boca da caverna. Como que a dizer: "Ainda dá tempo! Dê meia volta e corra sem olhar para trás!"
Felipeto sentiu–se tentado a fazer exatamente isto, mas se conteve.
–Esqueci que esta é a tua primeira vez em Conta. – disse Alberto, acompanhando o olhar do rapaz. Sorriu, demonstrando seu divertimento. – Não posso suavizar a gravidade da situação para ti, aprendiz. Esta ilha não é um local de passeio. Não deixes que a placidez da paisagem te engane... Conta é perigosa. E qualquer descuido pode ser fatal ao visitante desavisado. Mas se tu seguires as instruções à risca, nada precisarás temer. Lembra–te das instruções, pois tua vida depende disto.
Felipeto apenas assentiu, contrito.
Continuaram caminhando pelo corredor escuro e úmido. Alberto levantou o lampião, projetando a luz mais à frente.
–Oh! – Felipeto não pôde conter uma exclamação de espanto diante das colunas cinzeladas e do soberbo pórtico que surgiram ao final do caminho.
Atravessaram a exótica construção e, adiante, a caverna alargou–se vertiginosamente. Felipeto sentiu um arrepio; não sabia para onde olhar. O espaço gigantesco continha entrâncias e reentrâncias que lembraram–no do mítico labirinto do Minotauro.
Ao final, ele julgou ter visto uma murada de contenção, toda feita em pedras encaixadas.
–Lá adiante, ficam as catacumbas de Conta. – Alberto explicou, desnecessariamente. Afinal, quem não ouvira falar das catacumbas malditas?
Os dois monges prosseguiram na direção leste, contornando a parede lisa e úmida da caverna. Em dado momento, entretanto, Alberto percebeu que estava sozinho. Olhou para trás e deparou–se com Felipeto petrificado, encarando uma pilha de ossos humanos.
–Felipeto, lembra–te das instruções, ou acabarás exatamente como eles!
O alerta bastou para que o rapaz corresse para junto do seu superior. Após alguns minutos de caminhada silenciosa, ele não conseguiu mais conter a curiosidade.
–Senhor, o que contém este pacote?
–O arquivo treze–treze das "Verdades Inconvenientes".
Silêncio.
–E–e o que contém o arquivo treze–treze? – Felipeto não resistiu à tentação de decifrar o mistério.
O outro suspirou, impaciente. No entanto, o tom humilde do aprendiz o convenceu a fornecer uma explicação.
–É o arquivo das Pedras da Invocação. Contém as pedras da invocação e os pergaminhos conjurantes. – Ele percebeu que as informações soaram enigmáticas, deixando o aprendiz mais confuso do que antes. Balançando a cabeça, ele arrematou:– Longa história. Bem, já ouviste falar da lendária Juna, a pirata?
Felipeto forçou a memória e, enfim, teve um vislumbre dos seus tempos de criança.
–Claro! Meu avô me falava de uma lenda bárbara, criada para perpetuar valores hereges e desafiar a verdade de Deus. Afinal de contas, a mulher jamais poderia ser como o homem. O homem veio de Deus, e a mulher é apenas produto de sua costela.
–Com certeza, tu não duvidarias da existência do rei Guilhem de Craon, que governou o império franco no século X.
–Absolutamente! Os registros históricos comprovam sua existência.
–É verdade... Os registros oficiais. – O outro riu. – Craon ampliou e consolidou o império de seus ancestrais. Saibas, tu, que Juna foi contemporânea do rei Craon. Está tudo aí, no embrulho que tu carregas.
Os monges pararam de conversar, pois o caminho converteu–se numa descida íngreme. Um mero descuido com aqueles degraus úmidos e escorregadios, e ambos rolariam pela escuridão abaixo. As tochas não venciam a negritude muito além dos próprios pés, rodeando–os como se estivesse prestes a engoli–los.
Não se podia ver nada a frente, abaixo ou atrás.
Os monges suavam em profusão devido à atmosfera sufocante; e após uma hora de caminhada, Felipeto começou a se questionar se estavam descendo ao centro da Terra. Então, de repente, os degraus deram lugar a um terreno plano de pedras regulares.
As tochas logo revelaram um surpreendente desdobramento da caverna, com um lago enorme ao centro, e uma praia estreita composta de areia muito fina e branca. Podia ser uma invasão marítima; podia ser um lençol de água doce. Felipeto não saberia dizer. Ele parou um instante, extasiado com a beleza silenciosa e um tanto sombria do cenário. Notou que, acima e adiante, havia outra sucessão de degraus escavados na parede lateral da caverna; que convergiam para as águas escuras, formando a ilusão de estarem pairando sobre o lago.
O aprendiz percebeu que Alberto já estava a caminho dos degraus e se apressou para não perdê–lo de vista. À medida que as tochas se afastavam, a pequena praia, as águas do lago e as paredes rochosas desapareciam, dando lugar ao breu.
Antes que pudesse alcançar o seu superior, porém, deparou–se com um par de olhos flamejantes. Ouviu um rosnado baixo. O rapaz ficou paralisado ao constatar que estava diante de uma das feras. Não conseguiu nem mover os pés – hipnotizado pela aproximação horrenda, que se avolumava, vinda das sombras, para se revelar lentamente em todo o seu grotesco aspecto. Era peludo, muscular... Erguia–se lentamente nas patas traseiras até atingir uma altura duas vezes maior do que o pobre rapaz. A saliva abundante da bocarra pingava em profusão, e o monge teve a certeza de que seria devorado.
–Felipeto, as instruções! – gritou Alberto, do alto da escada.
Como que sacudido por uma descarga elétrica, o rapaz largou o embrulho e a tocha no chão, desenrolou rapidamente a manga do hábito e estendeu a mão fechada, com o anel da irmandade à frente. A fera parou abruptamente diante das luzes multicoloridas do anel, que emanavam de sua pedra, graças ao reflexo bruxuleante da tocha. A fera imediatamente deitou–se diante dos pés do monge, e assim permaneceu, com os olhos indóceis e atentos.
Muito devagar, o rapaz pegou o embrulho do chão, tendo o cuidado de manter o anel diante dos olhos da fera. Então, disparou em direção às escadas, quase se chocando contra Alberto. Quando olhou para baixo, percebeu que a criatura havia desaparecido, silenciosamente.
Eles respiraram, aliviados, e continuaram a subir.
No alto da escada havia uma porta de madeira maciça. Para surpresa de Felipeto, dava acesso a um recinto amplo e repleto de estantes, com prateleiras que iam do chão ao teto – todas em madeira trabalhada, abarrotadas de códices, pergaminhos, papiros enrolados, pacotes e peças variadas. Logo, o rapaz percebeu tratar–se de uma espécie de biblioteca.
Sentado a um canto, diante de uma magnífica escrivaninha entalhada, estava um velho monge. O homem nem levantou a vista de seus estudos para cumprimentá–los, pois sabia de antemão que estavam a caminho.
–Salve, Teodoro! – cumprimentou Alberto. – Trouxe–te o arquivo treze–treze, das verdades inconvenientes, conforme a vontade do falecido monsenhor.
O velho não fez nenhum comentário. Apenas fechou o pergaminho que estava examinando à luz do lampião, para então encarar os dois jovens monges.
–Então, ele se foi... – comentou, em tom resignado. – Ainda bem que vós viestes logo. Não podemos permitir que mais documentos caiam nas mãos da Pax et Óbito Draco... Segui–me!
Enquanto caminhavam atrás dele, Felipeto sussurrou:
–Ele vive aqui?
Alberto assentiu.
–É o grande protetor da biblioteca secreta. Em nossa Ordem, cada grupo fica responsável por uma tarefa. E cada um dos iniciados eleitos, em cada grupo, é responsável por determinado arquivo, entre os que estão aqui catalogados – ele gesticulou, abrangendo a grande biblioteca. – No entanto, a função do protetor é cuidar e manter a biblioteca como um todo. Ou seja, a missão de Teodoro é proteger nossos tesouros e manter os invasores longe desta ilha. Para isso, ele se encarrega da restauração dos artefatos, constrói armadilhas pela praia, e alimenta as feras... Mas não chame as criaturas de "feras" na frente dele. – Alberto baixou a voz. – Teodoro as considera como seus... bebês.
Felipeto revirou os olhos.
– O que exatamente quer dizer com cada um se torna responsável por um arquivo? Se existem inúmeros...
Ele não chegou a completar a frase. Alberto logo foi dizendo:
–Dentro da irmandade existem três grupos, como você já sabe. Os guardiões, os soldados, e os vigilantes. Cada guardião deve proteger com a própria vida o arquivo que lhe for designado. De tempos em tempos, um guardião faz a transferência de arquivo para seu sucessor... E sim, Filipetto, existem inúmeros obreiros espalhados pelo mundo.
– Hmmm...
Felipeto começou a fazer as conexões.
–É por isso que passamos por um treinamento rigoroso antes de recebermos o anel que nos torna "obreiros da luz"... – conjeturou, erguendo a mão para tocar os nomes em latim gravados nas prateleiras parcamente iluminadas pelos archotes. Ele percorreu aleatoriamente as fileiras. Sua atenção se prendeu por alguns instantes nos "arquivos das origens" – os Casos Chifeng e Anunnaki, particularmente. Ele estava ansioso por se aventurar entre aquelas prateleiras... Quando lhe fosse permitido, claro. Embaixo de cada pasta de couro, havia o nome do monge encarregado de proteger e ampliar o seu conteúdo. Ele teria que pedir permissão ao guardião do arquivo para poder lê–lo. E o mesmo valia para o treze–treze em suas mãos...
Que ele ainda nada sabia a respeito.
–––
O principal objetivo da irmandade era difundir entre o povo o conhecimento livre. Para isso, OBREVEC valia–se de pistas, charadas, e mensagens estratégicas... Alimentava lendas e boatos que tinham o poder de cativar a mente humana, instigando–a ao estudo das verdades inconvenientes. A curiosidade era a principal arma para a propagação do conhecimento, independente dos interesses instituídos.
Já a instrução secreta dos obreiros visava preservar os valores de épocas remotas. Mas, para que tal sucedesse, os monges precisavam despistar todos os "agentes" que tentassem se apoderar das informações arquivadas na biblioteca da OBREVEC.
Fazia–se necessário que os irmãos estudassem arduamente o seu conteúdo, investigassem as origens de cada arquivo, e cuidassem para que jamais caíssem em mãos erradas.
Quanto aos seus antecessores, os que criaram a Ordem, ninguém sabia ao certo quem eles foram. Eis um mistério que alvoroçava os novatos. Muitos tentaram desvendá–lo, sem sucesso. A única certeza que aprendizes como Felipeto tinham era que um guardião veterano repassava a "guarda" de seu arquivo para um sucessor escolhido a dedo. Antes de receber o arquivo, o sucessor deveria ser testado em seu caráter, da mesma maneira como foi São Bento, o patrono espiritual da Ordem. Ritualisticamente, o portador do arquivo precisava triunfar como o Santo triunfou sobre as artimanhas do Demônio.
Infelizmente, o monsenhor desencarnou durante a primeira fase de treinamento do seu sucessor para o arquivo treze–treze: o das verdades inconvenientes.
–São treze guardiões? – o aprendiz retornou ao seu questionamento, deduzindo que a numeração da pasta fosse a mesma para a quantidade de protetores.
Alberto negou com a cabeça.
–São setenta e sete vezes sete verdades inconvenientes. Setenta e sete vezes sete origens. Setenta e sete vezes sete explicações sábias. Setenta e sete vezes sete revelações. Setenta e sete vezes sete profecias. – Ele deu de ombros. – Então, estamos falando de dois mil, seiscentos e noventa e cinco guardiões.
Com satisfação, ele viu o queixo de Felipeto cair. Por outro lado, preocupava–o imensamente o fato de que o escolhido do monsenhor ainda estivesse tão cru, em termos de conhecimentos. Ele precisaria orientar e acelerar o treinamento do rapaz, daqui para frente. Devia isso ao monsenhor.
–Então, quem é o guardião do arquivo treze–treze? – Felipeto indagou, curioso. Ele ergueu os olhos para Alberto e se assustou com a descrença que encontrou em seu rosto.
–Tu – foi a resposta cortante.
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